Público e o estatal
Fernando Schüler: ‘Precisamos aprender a diferença entre o público e o estatal’
No Brasil as ideias de “público” e “estatal” se confundem. Não se reconhece a possibilidade de uma esfera pública não estatal; de que o Estado possa garantir o direito à educação sem ter de gerir todas as escolas.
Estado da Arte 01 Outubro 2017
O Estado da Arte dá início a um Especial sobre os caminhos para educação no Brasil. Quais os modelos mais bem sucedidos ao redor do mundo? Quais as vias possíveis para as nossas políticas públicas? Quais são os diagnósticos, prognósticos e terapêuticas mais avalizados à nossa disposição?
Abrindo a série, o cientista político e professor do Insper Fernando Schüler critica o modelo de gestão estatal no Brasil e avalia alternativas, como os sistemas de contratualização com escolas privadas e de vouchers para educação, como o ProUni, em que os estudantes subsidiados podem escolher a instituição em que desejam se formar.
O senhor vem argumentando que o núcleo do problema da educação brasileira é o modelo estatal de gestão das escolas e do sistema de ensino. Em um artigo para a revista Época, o senhor caracterizou isso como “o lobby da educação estatal”. O que explica a força desse lobby?
O artigo parte de um reconhecimento: não há uma crise genérica da educação, no Brasil. O que existe é uma crise do Estado na educação. Nossa rede privada de ensino está longe de ser de excelência, mas seus resultados, em média, são próximos aos dos estudantes norte-americanos, no Programa Internacional para a Avaliação Internacional de Estudantes. O que existe no Brasil é a brutal falência do modelo de gestão estatal do ensino. Reconhecer isto é o primeiro passo para mudar a realidade. Há um problema endógeno afetando nossas escolas estatais. Ele provém da forma como estruturamos a gestão pública brasileira na Constituição de 1988. Escolas são repartições públicas; professores têm estabilidade total no emprego; a burocracia impera e tudo tem de ser feito via lei de licitações (a Lei 8.666/93), que é lenta e inadequada para gerenciar escolas. Os diretores de escolas são eleitos, sujeitando-se a toda sorte de pressões corporativas; os governos mudam a cada quatro anos, afetando qualquer ideia de planejamento de longo prazo. Em boa medida, é o mesmo problema que afeta a saúde pública e outras áreas de prestação de serviços pelos governos. O resultado é previsível: a classe média fugiu do Estado e migrou para as escolas particulares. Com isto geramos, ao longo do tempo, uma brutal desigualdade educacional. Me espanta que nossos gestores públicos e boa parte da academia brasileira não reconheça nada disso. Imagino que isto ocorra por comodismo político, pressão das corporações ou simplesmente por ideologia. É esse o lobby da escola pública. Os sindicatos são apenas sua cara “visível” e barulhenta.
O Brasil tem um grande número de movimentos, institutos e fundos dedicados ao tema da educação. Se esse tema da gestão não está na pauta, qual é, então, o foco desses grupos que atuam em defesa de melhorias na educação?
Há muitas instituições fazendo um ótimo trabalho. Elas ajudam a treinar gestores escolares, propor inovações didáticas, combater o preconceito e a intolerância, premiar boas práticas, e tudo isto é sumamente importante. A única coisa que ninguém parece se permitir é o questionamento do “modelo”. No cânone brasileiro, as ideias de “público” e “estatal” se confundem. Não se reconhece a possibilidade de uma esfera pública não estatal, a simples ideia de que o Estado pode garantir o direito à educação sem necessariamente gerir todas as escolas. O Brasil, neste ponto, é um país curioso: reconhece-se que o governo não é competente para gerir estradas, portos ou aeroportos; mas para gerir escolas imagina-se que sim. Lá no fundo, imagino, ninguém realmente acredita nisso. É apenas uma situação confortável. A mesma elite que promete melhorar a educação no “longo prazo” há muito tempo recorre à rede privada de ensino para educar seus próprios filhos. Este é o lado mais cruel de nosso apartheid educacional. Ele tem um componente ético: nega-se aos mais pobres um tipo de direito (estudar em boas escolas, ou simplesmente escolher onde estudar) do qual nenhum de seus defensores, sob hipótese alguma, abriria mão. Este é um ponto que enfatizo em meu artigo: há um pacto silencioso. Não digo que ninguém desejou criar um sistema de exclusão educacional, no Brasil. Mas ela está aí. É uma “consequência indesejada” do modelo estatal. E é uma situação a que todos nos acostumamos, sempre contando com a infinita paciência dos mais pobres para esperar que o “longo prazo” um dia apareça.
O senhor menciona em seu artigo mais recente para a revista Época duas alternativas ao sistema estatal: as charter schools e o voucher educação. Esses modelos, no entanto, têm apresentado resultados muito desiguais, com resultados positivos (que o artigo ressalta bem) e negativos, como apontou o relatório do Departamento de Educação norte-americano no último mês de
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, que mostrou resultados negativos para os vouchers no distrito de Columbia. O que tem dado errado? O que deve ser evitado, caso se busque implementar esse modelo no Brasil?
A avaliação feita no sistema de voucher do Distrito de Colúmbia refere-se apenas ao primeiro ano de funcionamento do programa. No processo das charter schools tem sido registrado o mesmo fenômeno. Quando há a migração de um estudante de uma escola pública tradicional para uma escola privada de maior performance, é necessário um tempo de adaptação. Isto aconteceria no Brasil ou em qualquer lugar. O Estado de Wisconsin tem o mais antigo programa de voucher dos Estados Unidos, com 27 anos de funcionamento, e os resultados são bastante positivos. Estudo feito pelo Center for Research on Educational Outomes, da Universidade de Stanford, mostrou que os alunos que fazem a transição para charter schools apresentam, logo de partida, uma pequena piora em relação aos que permaneciam no sistema estatal. Mas a partir do segundo ano seus resultados já são ligeiramente superiores. No quarto ano, é notável o avanço em seu desempenho. Mas é preciso cuidado neste tipo de análise. Nenhum modelo, por si só, tem o poder de mudar a educação. É preciso que seu design institucional seja bem feito. No Chile, por exemplo, houve equívocos na implantação do voucher. Permitiu-se que as famílias adicionassem dinheiro à bolsa recebida, de modo a contratar escolas mais caras e sofisticadas. Reproduziu-se um modelo de desigualdade. Em 2008 isto foi corrigido, em boa medida, com excelentes resultados. Você vai encontrar bons e maus resultados em diferentes modelos de gestão educacional. O ProUni, no Brasil, que é um programa de voucher, é um sucesso. O ponto é: nossa educação estatal tem produzido péssimos resultados e precisamos buscar alternativas. Precisamos de um sistema plural. Temos que fazer isto à luz do que a experiência internacional tem para nos ensinar. E temos que agir rápido.
Não é a primeira vez que você menciona o caso bem-sucedido do ProUni como um exemplo de programa de voucher. Os dados acerca do desempenho dos alunos confirmam o êxito do programa. Ao mesmo tempo, são muitas as críticas à proliferação de universidades e faculdades de baixa qualidade que surgiram ou cresceram no mercado graças ao ProUni. Como equilibrar qualidade e acesso em grande escala em um programa como esse?
É difícil que uma Universidade tenha crescido graças ao ProUni. Talvez isto tenha acontecido graças ao FIES, que é um modelo de crédito educativo, seguramente mal desenhado. Sobre o ProUni, a questão é simples: se o programa contribui para a piora da qualidade das universidades, como explicar que o resultado médio obtido por seus bolsistas integrais, no ENADE, seja superior ao dos estudantes de Universidades Públicas? Os números indicam que os alunos do ProUni têm contribuído para melhorar a qualidade das Universidades, não o contrário. Mais: o Brasil é o país que mais gasta com ensino superior, na proporção do PIB, em todo o mundo. Este recurso é quase todo gasto para manter uma malha caríssima de universidades estatais. Vamos aos resultados: não há nenhuma universidade federal brasileira entre as trezentas primeiras do mundo. Entre as quatrocentas, apenas uma, a UFRJ. É evidente que há um problema aí, e que há também um problema com a malha privada de educação superior. Nós erramos muito neste terreno. O ponto é que a existência de um programa de voucher altamente inclusivo e bem estruturado, como é o ProUni, nada tem a ver com esta situação. Ele é, diga-se de passagem, um raro exemplo de programa público inequivocamente bem sucedido de que dispomos.
Pela dimensão do número de alunos, o risco de rebaixamento na qualidade da educação ofertada não seria ainda maior no ensino fundamental e médio?
A ideia de que estudantes mais pobres tenham necessariamente um pior desempenho relativamente aos mais ricos é algo que não encontra sustentação empírica. É evidente que se você simplesmente comparar os resultados obtidos por estudantes mais ricos e mais pobres, hoje no Brasil haverá uma nítida vantagem para o primeiro grupo. Por uma razão bastante óbvia: porque eles estudam nas melhores escolas, enquanto os estudantes de famílias com menor renda concentram-se nas escolas estatais, com menor desempenho. Esta é a sina brasileira: primeiro se oferece uma péssima educação aos mais pobres; ato contínuo defende-se a tese de que a razão de seu menor desempenho está associada à pobreza. É uma espécie de crueldade estatística. Afora isto, há um problema ético aí: não faz nenhum sentido a ideia de manter escolas de elite “livres dos mais pobres” apenas por que imaginamos que sua presença possa fazer declinar a qualidade de ensino. A África do Sul terminou com o seu apartheid há mais de duas décadas. É hora de terminarmos com o nosso também.
O interesse do mercado privado de educação superior na expansão de vagas graças ao ProUni foi evidente, para o bem ou para o mal. Por que não parece haver interesse das escolas privadas na implementação de sistema semelhante para a Educação Fundamental e Média?
O mercado de educação superior tinha o mesmíssimo interesse pelo ProUni, antes que o programa viesse a existir, que as escolas de ensino médio e fundamental têm agora. Isto é: nenhum. O mercado de escolas privadas, no Brasil, vive confortável com o sistema de exclusão, como todos nós. E imagino que ninguém perca seu sono esperando que os governos, em nível federal, estadual ou municipal, tomem alguma iniciativa inovadora. O Brasil é o país da inércia, da procrastinação, do incrível conservadorismo estatal, devidamente ancorado no mando corporativo dos sindicatos. É interessante registrar que há um enorme universo de escolas de ensino básico que tem seus próprios sistemas de bolsas para alunos com menor renda. E penso que boa parte das escolas participaria de bom grado de um programa bem desenhado de voucher ou charter. Basta que os governos tomem a iniciativa.
A conta fecha? Quer dizer, levando-se em consideração a transição entre o modelo estatal de gestão com seus custos e o modelo de vouchers semelhante ao ProUni, por exemplo, os municípios e estados teriam condições de fazer essa migração com o dinheiro disponível? Afinal, o gasto com a rede estatal continuaria por um bom tempo…
Como disse antes, não defendo a simples substituição do modelo estatal pelo modelo contratualizado, ou baseado na livre escolha educacional. Defendo a ideia de sistemas plurais. Que ofereçam novas alternativas, para que o País aprenda e possa fazer escolhas melhores ao longo do tempo. Nos Estados Unidos, as charters schools existem há 27 anos, e respondem por 7% das escolas do País. É um número considerável, que deve crescer nos próximos anos. Os resultados estão aparecendo, os pais querem, e eu diria que a revolução tecnológica em curso exige a mudança. O que defendo é que sejam abertos espaços de inovação na educação brasileira. Quanto aos custos, não há nenhuma razão para imaginar que uma boa escola contratualizada, no modelo das organizações sociais, deveria custar mais do que uma escola estatal, no atual modelo. Para começar, os estados e municípios deixariam de engrossar os gastos com a previdência pública de novos professores estatutários. Passariam a controlar uma rede de contratos de gestão, mais flexível para se adaptar à mudança demográfica em curso, e com metas e indicadores bem definidos.
A única tentativa de implementar um modelo não estatal de gestão das escolas públicas em grande escala nos níveis Fundamental e Médio parece ser a do governador Marconi Perillo (PSDB), em Goiás. No entanto, a educação infantil (até 5 anos) nos municípios é fartamente conveniada ou contratualizada com organizações privadas sem fins lucrativos. Por que o modelo da contratualização não encontra resistência para a educação infantil, mas sim para os demais níveis (Fundamental e Médio)?
A educação infantil era, em grande medida, uma rede inexistente. Ela já foi criada ou ampliada no novo modelo. Por isso não houve resistência dos sindicatos. Os sindicatos representam o status quo. Eles são a grande força conservadora da educação brasileira. E esta força simplesmente não existia na educação infantil. Vale aqui uma observação: o modelo de convênios, existente na maior parte dos municípios brasileiros, na educação infantil, está longe de corresponder às exigências do modelo charter school. Os convênios foram uma saída prática e operacional encontrada pelos prefeitos, de todos os partidos, para implementar a educação infantil. Em boa medida, a nova lei 13.019/14, que cria a figura dos termos de colaboração com organizações da sociedade civil, e estabelece critérios mais rígidos de avaliação de resultados, veio para sanar este problema. Penso que, para um modelo de contratualização funcionar, é preciso que o governo crie mecanismos de regulação e controle de resultados. O governo precisa mudar sua forma de agir. Precisa de quadros competentes para gerenciar contratos de gestão. Por isso é preciso que tudo isto seja feito com cuidado. A academia brasileira poderia ajudar, nesta direção, mas antes precisa sair da zona de conforto e estudar novos modelos de gestão sem preconceito.
Voltando ao caso de Goiás, a tentativa do governo de implementar o modelo de gestão através das Organizações Sociais, houve uma judicialização da questão e, até 2017, não tinha sido possível começar a implementação. Há espaço real para municípios e estados seguirem esse caminho da gestão contratualizada?
Não tenho conhecimento detalhado sobre o caso de Goiás. Minha única observação é de que os processos de contratualização devem ser conduzidos de modo articulado entre as instituições de estado, e isto envolve o poder judiciário, o Ministério Público, os conselhos de Educação e os tribunais de contas. É claro que haverá resistências. Há muita ideologia, e por certo muita incompreensão. Só há um remédio para resolver estas questões: o exemplo. O Brasil precisa, hoje, de gestores obstinados e muito bem formados capazes de formar coalizões públicas em defesa dos interesses dos estudantes mais pobres. Líderes que sejam capazes de implantar projetos piloto bem sucedidos, e particular utilizando a Lei 13.019/14, e a partir daí gerando um aprendizado crescente para novos prefeitos e governadores. Não há outra forma de conduzir este tema. Em meu artigo, citei Max Weber: a política é um lento perfurar de tábuas duras.
São Paulo, com João Doria, Porto Alegre, com Nelson Marchezan (ambos do PSDB) e Salvador, com ACM Neto (DEM) têm prefeitos frequentemente classificados como “liberais”. Alguma dessas administrações parece disposta a tentar um modelo não estatal de gestão de sua rede de ensino?
Não acho que modelos de voucher ou de organizações sociais sejam particularmente “liberais”. O maior programa de voucher do mundo foi criado pelo PT, na gestão do ex-Ministro Tarso Genro, que é o ProUni. As organizações sociais de cultura e saúde, em São Paulo, que são um incrível sucesso, foram criadas por Mário Covas, um reconhecido socialdemocrata. Nos Estados Unidos, um dos grandes defensores do modelo foi o ex-Governador de Nova York, Mario Cuomo, tradicional político democrata. Obama foi um apoiador das charter schools, também. Na cidade de Nova Iorque, foi Michael Bloomberg quem fez avançar o modelo. Resumindo: não se trata de uma questão ideológica. Trata-se de pensar nos estudantes. Na melhor educação que possamos oferecer a eles. Há um ponto interessante aqui: no atual modelo estatal, os governos perderam o controle sobre os resultados da educação. Qual o prefeito ou governador brasileiro que pode fechar uma escola de baixo desempenho, demitir um professor que não trabalha, ou mesmo interferir de maneira consistente no tipo de educação que é oferecido? Nos sistema de organizações sociais o governo pode cobrar resultados, via contratos de gestão; no modelo de voucher, pode permitir que as bolsas sejam utilizadas apenas para escolas que atinjam um desempenho mínimo. Para finalizar: programas de voucher são, antes de tudo, uma política de igualdade. Eles permitem que estudantes de origens sociais distintas estudem nas mesmas escolas. A base de relações sociais que as crianças e jovens dispõem na escola afeta suas perspectivas de vida, no longo prazo. Se nós aceitamos manter um sistema de educação segregado, como temos hoje no Brasil, estaremos apenas contribuindo para aumentar ainda mais a desigualdade social. Então eu diria que programas de voucher ou charter são essencialmente socialdemocratas. Oxalá sejam desenvolvidos por gestores de diferentes partidos no Brasil.
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