Para piorar a educação pública
Instruções para piorar a educação pública brasileira
Existem diversos métodos para se alcançar a deterioração da qualidade do ensino público. Ultimamente, alguns governos estaduais brasileiros (encabeçados por São Paulo, Goiás, Minas Gerais, Pernambuco e Paraná) têm se empenhado bastante nessa tarefa, lançando mão de procedimentos como fechamento de escolas, subordinação dos currículos aos sistemas de bonificação docente, terceirização e militarização da gestão escolar, empobrecimento nutritivo da merenda, repressão e perseguição contra professores e estudantes, entre outros.
Países como Estados Unidos e Chile vêm oferecendo importantes modelos para o Brasil, especialmente no que tange às diversas formas de escamotear lucros privados obtidos por meio de negócios com o setor público. Nesse sentido, as consultorias privadas (nacionais e estrangeiras) têm sido formuladoras indispensáveis de políticas para as secretarias estaduais de educação, garantindo tanto a privatização disfarçada do ensino público, quanto, claro, os seus próprios lucros, usualmente obtidos à revelia do título “sem fins lucrativos” que costumam carregar em suas razões sociais (1).
O papel das consultorias privadas e o PISA
Tais consultorias consistem em grandes empreendimentos financeiro-educacionais, responsáveis por transmitir as inovações da “educação global” para todos os cantos do país. Desde a virada do século, o principal trunfo destes grupos tem sido a credibilidade construída em torno do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes, popularmente conhecido como PISA, que avalia meio milhão de estudantes em mais de 70 países da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico).
Aos poucos, com o trabalho bem feito das tais consultorias, o PISA se tornou um parâmetro para diretores, coordenadores, professores, pais, alunos, jornalistas e até pesquisadores daquilo que tem sido chamado de “qualidade de ensino”. Os conteúdos das provas são pautados por critérios externos, homogeneizantes e condizentes com as demandas mínimas de um mercado globalizado. Trata-se de uma grande tábula rasa que, ao desconsiderar a realidade e as demandas locais de cada comunidade escolar, se instala como um mecanismo de poder discricionário e estrangeiro sobre as políticas educacionais de todos os níveis da União (2).
Em tempos de PISA, dois interesses corporativos se engajam: por um lado, a necessidade de garantir, em escala global, os patamares mínimos para a formação da mão-de-obra; por outro, a exploração de novas fronteiras do mercado educacional, harmonizadas com a atual etapa da revolução industrial que atravessamos. A união de tais interesses originou um mito extremamente bem difundido, de que as novas tecnologias vieram para redimir a educação, refém de um padrão antiquado em que o professor só dispõe da lousa e de si próprio para se relacionar com seus alunos. Na medida em que há um traço de verdade nesse diagnóstico, ele foi facilmente convertido a fetiche (3).
Enfim, o PISA tem sido o instrumento da OCDE para disseminação de políticas educacionais de cunho empresarial, marcadas pela ideologia da corresponsabilidade (que transfere a atividade educativa do Estado para o mercado); pela eliminação da autonomia pedagógica dos professores, reduzidos à função de “fabricar” alunos bem sucedidos nas avaliações externas, muitas vezes submetidos a contratos cada vez mais precários; pela ideologia da flexibilização dos currículos, não para torná-los mais democráticos, e sim para adequá-los às novas exigências de um padrão de acumulação específico.
Nessa engrenagem, porém, há pedregulhos: professores que não abrem mão de sua autonomia, formados em um paradigma educacional que desagrada aos grupos empresariais. Seja por conservadorismo, seja por criticidade, tais professores não são adequados para a “nova educação” e o plano global carecia de um novo método de formação docente que combinasse eficácia ideológica e eficiência econômica.
Professores para o novo mercado: o triunfo do ensino instrumental
Desde meados dos anos 1990, tem sido regulamentada no Brasil a educação à distância (EAD) nos cursos de licenciatura. Mas foi nos anos 2000, com a ampliação do papel da Secretaria de Ensino à Distância (SEED) do Ministério da Educação e criação da Universidade Aberta do Brasil (UAB) que estes cursos foram expandidos em escala sem precedentes. Na virada do século, o Banco Mundial passou a condicionar empréstimos à adoção de estratégias de EAD para formação de professores nos países “em desenvolvimento”. No Brasil, vivíamos a aurora de um governo aparentemente de esquerda e os críticos da UAB foram prontamente acusados de “elitistas” ou “conservadores” (4).
O debate se abriu então para diferentes modalidades de ensino: educação para presos, formação continuada, ambiente virtual secundário e complementar à formação presencial, cursos de atualização profissional, cursos livres para populações distantes de qualquer universidade, especializações e pós-graduações...
De fato, é preciso considerar que em alguns casos específicos o EAD poderia ocupar um espaço vazio, substituir a ausência de políticas de formação para determinados segmentos da população brasileira. Mas os problemas da formação principal de professores em licenciaturas a distância continuam sendo apontados por pesquisadores e movimentos sociais de educação.
Em primeiro lugar, o EAD descartava a filosofia largamente construída pelos educadores críticos no Brasil de que a educação é uma prática social viva, dinâmica, dialógica e irrepetível (5). Ao reduzir a formação inicial de um professor a uma rede de relacionamentos predominantemente virtuais, mediados por uma tecnologia aparentemente neutra, assegurava-se um ensino mais homogêneo, que poderia ser realizado em escala industrial, sem necessidade de grandes infraestruturas universitárias para além de polos informáticos. Evitava-se também o encontro nos corredores universitários, nas assembleias, nos cafés e restaurantes, nas bibliotecas, convívio frequentemente politizante e efervescente.
No enquadramento ideológico da educação entendida como mercadoria competitiva e não como investimento social, garantia-se a redução dos custos para produção de uma nova leva de “diplomas baratos”, que entrariam rapidamente no mercado.
Em segundo lugar, por seu caráter instrucional e sua proximidade com a linguagem instrumental dos manuais, os professores formados em EAD não entravam em contato com textos clássicos e polêmicas canônicas, mas com apostilas para adultos. Tal fato ampliaria potencialmente a afeição dos novos professores por sistemas de ensino apostilados, assemelhados com os oferecidos nos Ambientes Virtuais de Aprendizagem (AVA) com os quais tiveram contato, gerando mais um substancioso mercado cativo para os grandes grupos editoriais.
Tais sistemas de ensino básico, por sua vez, correspondiam aproximadamente às exigências de condicionamento mínimo dos alunos para realização de testes (como o PISA), evitando a particularização das trajetórias escolares que costuma ocorrer quando os professores dão vazão às curiosidades e autonomias dos seus alunos, constituindo com eles uma relação democrática e livre.
Em terceiro lugar, os novos produtos e recursos das TIC (tecnologias da informação e comunicação) seriam escoados e massificados com o EAD, prometendo uma virtuosa relação entre a indústria em expansão e os setores educacionais. A serviço desta demanda puramente mercantil, o fetiche já mencionado pelas “novas tecnologias da educação” faz destas o centro e não o instrumento do aprendizado.
A mediação educacional da tecnologia, que poderia tornar-se uma verdadeira ferramenta para emancipação social, se converte predominantemente na materialização de paradigmas empresariais de ensino, com fórmulas didáticas pré-concebidas e repetíveis.
Tais objetivos vêm sendo cada vez mais explicitados, como mostra a mensagem do Instituto da Corresponsabilidade Educacional (ICE), que inspirou o governo de São Paulo em seu derrotado projeto de reorganização em 2015.Estimulando a mobilização da sociedade em geral e da classe empresarial, em particular, o Instituto produz e aplica soluções educacionais inovadoras e replicáveis em conteúdo, método e gestão através de parcerias com instituições governamentais e privadas, sempre guiado pela ética da corresponsabilidade (6).
Públicas e privadas
Embora as universidades públicas costumem ocupar o centro das controvérsias das políticas educacionais, são as particulares que abrigam 72% dos alunos de ensino superior no Brasil. No estado de São Paulo alcançam 84% do corpo discente e na cidade de São Paulo, impressionantes 91% (7). Ao mesmo tempo, as universidades particulares representam 64% dos cursos de EAD do país, revelando uma expansão do setor público mais intensa na modalidade a distância em relação ao ensino presencial (8).
Nas particulares, o EAD chegou como alternativa para ampliar o “mercado consumidor da educação” para alunos com mais baixo poder aquisitivo, que na modalidade a distância poderiam pagar mensalidades menores. Além de cursos novos de licenciatura a distância, em algumas licenciaturas presenciais as disciplinas relacionadas ao ensino (didática, metodologia, política educacional, legislação) passaram a ser convertidas para o modelo a distância, como se fossem “menos importantes” que as outras disciplinas “de conteúdo”. Hoje, existem mais de 3,8 milhões de alunos matriculados em diversos cursos a distância no país, dos quais cerca de 15% correspondem a matrículas de licenciaturas ou bacharelados totalmente a distância (ABED) (9).
A mentalidade da educação instrumental torna-se ainda mais poderosa, pois corresponde à certa exigência do mercado de trabalho. Assim, é comum que o EAD se sintonize com o sentimento de uma população que quer melhorar suas chances de empregabilidade sem que isso demande um processo formador muito longo. Alicerçado nesse compreensível pragmatismo, a ideia da “conquista do diploma” tem triunfado culturalmente sobre a defesa da formação educacional como processo contínuo de reflexão e estudo sobre suas próprias práticas profissionais e sociais no mundo.
O que vem por aí?
O EAD das licenciaturas no Brasil ainda tem uma larga fronteira de expansão, oxigenada pela velocidade com que as novas tecnologias podem permitir novas plataformas a serem vendidas como pacotes educativos para as instituições públicas ou privadas. Com a perspectiva de cortes drásticos na educação superior brasileira apontada pelo programa Temer, a intensificação desta estratégia fará da crise uma oportunidade de negócios, como costuma ocorrer com certos capitalistas “bem posicionados”.
Resta aos pesquisadores e movimentos sociais reinventarem o seu programa de formação docente, incorporando as novas tecnologias de maneira emancipadora, como muitos professores já estão fazendo no seu cotidiano por conta própria. Quando a tecnologia não substituir o protagonismo do sujeito, mas sim potencializá-lo, estaremos num caminho transformador.
Notas
1. É marcante a intimidade do governo do Estado de São Paulo com as consultorias McKinsey, Falconi, Fundação Lemann, Itaú Social e Instituto de Corresponsabilidade pela Educação (ICE), que lhes têm prestado serviços contínuos, por vezes com direito a escritório dentro da secretaria de educação. Ver Observatório da Ação Educativa e blog Avaliação Educacional do prof. Luiz Carlos Freitas (FE-Unicamp).
2. Recentemente, o PISA passou a considerar novas áreas no escopo da formação básica obrigatória: Competência Financeira e Resolução Colaborativa de Problemas. Não é difícil perceber como os horizontes das “franquias educacionais” são retroalimentados pela chamada “flexibilização curricular”, operada por reformas que colocam a empregabilidade no centro das necessidades da formação básica. Ver O que é o PISA para Brasil e About PISA para a OCDE.
3. Fetiche eficazmente difundido pela imprensa aliada do mercado da educação, a exemplo da coluna de Claudio Sassaki na revista Nova Escola da editora Abril.
4. É o que problematiza a dissertação de Julia Malanchen, As políticas de formação inicial a distância de professores no Brasil: democratização ou mistificação? (Mestrado em Educação, UFSC, 2007)
5. Ver por exemplo, Paulo Freire, Pedagogia da Autonomia.
6. Grifo nosso. Ver ICE.
7. Ver Relatório de Gestão da Unifesp 2015.
8. Censo da Associação Brasileira de Ensino a Distância (ABED), 2014.
9. Já estão sendo implementados ensinos fundamental e médio a distância em nível experimental, que correspondem a quase 1% da oferta.
Joana Salém Vasconcelos é doutoranda em História na Universidade de São Paulo.
Publicado originalmente em Se a Universidade Fosse Nossa.