Os Direitos Humanos além das fronteiras

TEXTO LUÍS RENATO VEDOVATO

Artigo VI: "Todo ser humano tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei."

Artigo VII: "Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação"

(Declaração Universal dos Direitos Humanos)

Em 1945, a Carta das Nações Unidas reconheceu que a proteção da dignidade humana exigia o trabalho conjunto das já existentes, porém cambaleantes, estruturas internas do Estado e de uma necessária,  mas ainda a ser elaborada, construção internacional de normas e instituições de proteção de tais direitos. De fato, apesar de uma longa caminhada interna, que para muitos começa com a limitação da vingança do Código de Hamurabi, passando pela Bill of Rights das ilhas britânicas, no século XVII, e chega no constitucionalismo social das Constituições do México (1917) e de Weimar (1919), o avanço interno dos direitos humanos não foi resistente o suficiente para impedir o massacre de milhões de pessoas durante a Segunda Guerra Mundial.

Terminado o conflito, em 1945, as fragilidades do direito interno eram evidentes, e a saída internacional indicava ser a única alternativa viável para que se permitisse a garantia de um rol mínimo de direitos. Não foi por outro motivo que a citada Carta das Nações Unidas reafirma, em seu preâmbulo, “a fé nos direitos fundamentais, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de direito dos homens e das mulheres”.

Nos anos que se seguiram, a atuação da ONU visou a construção de um conjunto de normas internacionais de direitos humanos, que passou a ser chamado de Carta Internacional de Direitos Humanos, formada pela Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH), pelo Pacto de Direitos Civis e Políticos, e pelo Pacto de Direitos Econômicos Sociais e Culturais, ambos de 1966. Todavia a construção normativa internacional avançou, vendo surgir as Convenções das Nações Unidas sobre direitos, chamadas de big conventions. Ao mesmo tempo se estruturaram organismos para fiscalização dos Estados no tocante à proteção desses direitos. Em paralelo, sistemas regionais foram se erguendo, como aconteceu com o Sistema Americano, que teve seu primeiro documento aprovado em maio de 1948, portanto antes mesmo da votação, na Assembleia Geral da ONU, da Declaração de Paris (conhecida como DUDH), em 10 de dezembro de 1948.  

O sistema global, comandado pela ONU, tem em sua estrutura o Alto Comissário de Direitos Humanos, idealizado na II Conferência Mundial de Direitos Humanos (Viena, 1993) e o Conselho de Direitos Humanos, criado em 15 de março de 2006. Destaca-se na sua atuação a conhecida Revisão Periódica Universal (RPU), que tem como função apontar os possíveis contextos de violação a direitos humanos enfrentado pelos países. No segundo trimestre de 2017, o Brasil passou pelo Mecanismo de Revisão Periódica Universal (RPU) do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas. Foi a terceira vez que o país se submeteu a tal mecanismo, que busca expor os temas que devem ser melhorados e permite ao país fazer sua rendição de contas no campo dos direitos humanos perante a sociedade interna e internacional. Um importante papel do Ministério dos Direitos Humanos, no Brasil, é organizar  as respostas do país aos apontamentos internacionais, que devem servir de guia para políticas públicas de promoção dos direitos internamente.

No âmbito regional, comandado pela OEA nas Américas, é conhecida a atuação da Comissão (CIDH) e da Corte (Corte IDH) Interamericana de Direitos Humanos. Na primeira, destacam-se as funções de receber petições individuais, investigar violações e produzir relatórios sobre a situação dos direitos humanos nas Américas. Enquanto que a segunda tem a incumbência de julgar os pedidos apresentados, essencialmente, pela Comissão, quando essa não consegue solucionar a pendência diretamente com o Estado supostamente violador do direito.

Historicamente, o Brasil tem sempre figurado como parte do sistema interamericano, tendo se vinculado definitivamente à jurisdição da Corte no ano de 1998, na data em que a DUDH completaria 40 anos. Apesar das condenações ao Brasil na CIDH serem mais antigas, destacando-se o caso Maria da Penha, que deu origem à lei interna homônima, por conta da violência doméstica (tentativa de homicídio que deixou a vítima paraplégica), a primeira condenação do país na Corte IDH se deu apenas em 2003, no caso Damião Ximenes Lopes, que foi morto numa casa de repouso no Ceará, depois de sofrer tortura por longas horas. Desde então, o Brasil sofreu várias condenações, o que desencadeou uma sucessão de ações internas de construção de sistemas de proteção a direitos humanos, desde uma fiscalização mais efetiva até alterações legislativas.

A resistência aos direitos humanos, no entanto, é grande, fazendo que os acertos de rumos demorem a acontecer, por mais que eles venham a se efetivar, apesar de em prazos diversos, a depender do poder interno dos envolvidos. Recentemente, em fevereiro de 2018, a Corte IDH terminou o julgamento interpretativo do caso Favela Nova Brasília vs. Brasil, em que reconhece a violação dos direitos humanos por conta da violência policial no Complexo do Alemão, na cidade do Rio de Janeiro, em meados da década de 1990. Em tal julgamento, a Corte IDH deixou claro que a polícia militar do Rio agiu, naquele caso, de forma contrária aos direitos humanos. Uma adequação de conduta poderia ter evitado muitas das condutas violentas que aconteceram desde então, todavia, a despeito de ser um caso com longo caminho interno a ser percorrido, o sistema de direitos humanos não deixa dúvidas sobre quais providências devem ser tomadas.

O sistema internacional de proteção dos direitos humanos, tanto na sua vertente global (ONU) quanto na sua estrutura regional (OEA), fortalece em muito as normas internas de direitos humanos, pois não basta haver um consenso nacional (por exemplo, visando sacrificar pessoas para manter privilégios) contra tais direitos para que haja seu negligenciamento. Mudar o direito interno para violar a dignidade humana (normalmente de minorias) não dará tranquilidade para os violadores, que continuarão sujeitos às normas internacionais. De forma bastante prática, se houvesse uma nova lei de anistia, para acobertar possíveis violações de direitos cometidos na intervenção federal no Rio, ela não seria suficiente para afastar a responsabilização dos agentes públicos que atuassem na violação a direitos, pois ainda existiriam as normas internacionais.

Nesse sentido, o Tribunal Penal Internacional, integrante do sistema global, deve ser visto como um grande avanço, ainda nos seus primeiros passos, mas inegavelmente uma efetiva proteção aos direitos humanos, o que desmistifica a suposta dissociação entre direitos humanos e direito penal.

Até 2018, o Brasil já passou, no sistema global, por 3 RPUs, figura como parte (réu) em 73 casos na Corte IDH. Na CIDH, já enfrentou e teve que se defender de variados casos apresentados por petições individuais, solucionados amistosamente (como o dos meninos emasculados) ou com decisão de mérito pela CIDH (como o do 42o Distrito Policial, Parque São Lucas, São Paulo). Nesse contexto, não se pode dizer que a proteção internacional é inócua. O Brasil é um exemplo de que as decisões internacionais podem ser um impulsionador para construção interna de debates, políticas e leis de proteção aos direitos humanos, como são exemplos, respectivamente, a temática da liberdade de expressão, do combate ao trabalho escravo e da lei de combate à violência doméstica.

Não é surpresa que haja ataques aos direitos humanos internamente, pois a proteção internacional traz esse embate entre o poder interno e as normas internacionais. Dessa forma, ao contrário de indicarem um enfraquecimento dos direitos humanos, os ataques constantes por eles sofridos são a principal demonstração de sua força e efetividade, que, ainda que seja lenta, traz desconforto àqueles que sempre conviveram com posições internas intocáveis.