Mudança geográfica no Brasil
Há uma mudança geográfica no Brasil, aponta Marcio Pochmann
A realidade social brasileira melhorou expressivamente durante a última década e o país diminuiu o grau de exclusão social. A desigualdade regional, contudo, continua marcante, aponta o segundo volume do Atlas da Exclusão Social no Brasil lançado agora pela Cortez Editoria. Marcio Pochmann, um dos coordenadores da obra, em conversa com o JB, destacou a necessidade de políticas que possam ser adotadas regionalmente, de acordo com distintas realidades. Não há, ainda, garantia para esses avanços. Enquanto isso, o país ainda precisa lidar com os efeitos das conquistas, que geraram, entre outras coisas, mudanças geográficas no país, com reflexo no sentimento de representação de novas elites, por exemplo.
Por Pamela Mascarenhas, do Jornal do Brasil
“O Brasil convive com uma mudança no próprio regime migratório. Antes, havia uma atração muito grande da população para as regiões Sul, e houve uma migração reversa, de pessoas que voltaram para os seus estados de origem. Então, há uma mudança geográfica no Brasil”, destacou Pochmann. “Em função desse processo de transformação que o Brasil vem vivendo, nós temos o surgimento de novas elites, elites regionais, elites do interior do Brasil, em outros estados, e essas elites, no nosso modo de ver, elas também não encontram muita repercussão nas estruturas de representação que nós temos hoje.”
Para o professor, o mundo inteiro enfrenta agora um quadro dramático, com países de grande peso na economia mundial crescendo bem menos do que cresciam, o que impõe maiores dificuldades. Uma saída pelos países ricos, então, parece improvável. A solução poderia vir de outros como o Brasil, por intermédio de medidas adotadas no âmbito do Brics, por exemplo. “A criação desse banco, do fundo de reserva e agora a possibilidade de criar uma agência de avaliação de risco também no âmbito dos Brics revela o fato mais importante ocorrido, ao meu modo de ver, desde o acordo de Bretton Woods de 1944. Mas ainda é um processo lento.”
O Atlas da Exclusão Social no Brasil Volume 2, diferente da versão lançada em 2014, que se reportava somente aos dados censitários do ano de 2010, apresenta um panorama geral das mudanças sociais que aconteceram no país durante a primeira década do século 21. Os autores, André Campos, Daniel Castro, Ricardo Amorim, Marcos Paulo Oliveira e Rodrigo Coelho analisaram uma década (2000-2010) falam sobre a realidade social brasileira. O livro tem coordenação de Pochmann, Alexandre Guerra e Ronnie Aldrin Silva.
Confira a entrevista com Marcio Pochmann:
JB – Vocês lançam agora o volume 2 do atlas da exclusão social, para atualizar estudos anteriores e dar um filme do 2000-2010, em complemento à fotografia oferecida no volume primeiro. Que filme é esse?
Marcio Pochmann – Os dados que nós dispomos e trabalhamos de forma temática são, na sua grande maioria, fundamentados pelo censo demográfico. Nós tivemos a oportunidade de aplicar essa metodologia pela primeira vez no início dos anos 2000, com base no senso de 2000. Depois, até retroagimos no tempo utilizando sensos anteriores. Então, nós tínhamos mais ou menos uma imagem do que era o Brasil nas regiões fundamentais do século 20, e era uma imagem de desconexão entre o comportamento econômico e o progresso social, mais evidente disso foi em 1980. O Brasil era considerado 8ª economia do mundo e situava no terceiro posto do ranking internacional de desigualdade. Então, essa é uma marca do século passado.
No ano 2000, nós já havíamos observado um retrocesso inclusive do índice econômico e social, porque o Brasil havia sido a 8ª economia nos anos 1980 e no ano 2000 havia retroagido à posição de 13º país, e havia um quadro social mais alarmante do que em 1980 em virtude da expansão do desemprego. Tínhamos em 1980 uma taxa de desemprego de 2,7% da força de trabalho e no ano 2000 uma taxa de desemprego de 15% da força de trabalho. Havia tido uma piora da participação da renda do trabalho na renda nacional, enfim, foi isso que foi exposto naquela publicação.
Agora, é a oportunidade de atualizar essas informações. Se percebe, na verdade, uma inflexão, tanto econômica, quanto social, porque o comportamento de economia da primeira década do século, falando até o ano de 2010, o comportamento econômico foi favorável, digamos assim, e se combinou, inclusive, com uma melhora generalizada nos indicadores sociais.
Nosso entendimento é que o Brasil conseguiu registrar pela primeira vez, nos últimos 50 anos, uma tríade convergente. O que eu quero dizer com isso? Nessa primeira década do século 21 a gente conseguiu ter um crescimento econômico importante, forte, significativo, combinado com democracia e política de distribuição de renda, de maneira geral. Esses três elementos, o regime político, o econômico e o social, não se combinaram dessa mesma forma nos últimos 50 anos.
Se a gente pegar, por exemplo, entre os anos de 1960 e 1970, que foram anos inclusive que o crescimento econômico foi muito mais forte do que o verificado na primeira década deste século, esse crescimento econômico muito mais forte dos anos 60/70 se deu num quadro de regime autoritário, sem participação social, e ao mesmo tempo ausência de políticas de redistribuição de renda. Então, o resultado de crescimento acabou sendo um crescimento econômico bem desassociado de avanços sociais.
Já nos anos 1980 e 1990, que são anos em que o Brasil recupera a democracia e, portanto a participação social mais alongada, lamentavelmente, o Brasil praticamente não cresceu. Então havia democracia, havia contribuição de políticas distributivas que a constituição de 88 estabeleceu, mas não havia o que distribuir porque a economia praticamente não cresceu. Então, somente nesses primeiros anos 2000 é que você terminou tendo a oportunidade de combinar crescimento, democracia e distribuição de renda.
Os resultados finais são resultados bastante interessantes, especialmente numa década, década dos anos 2000, que apontou para, sobretudo, os países ricos, que eram inclusive referência para o Brasil, que eram Estados Unidos, a Europa, de maneira geral, países que havia conseguido reduzir desigualdade, pobreza, crescer de forma sustentada com pleno emprego, eram referência para o Brasil, mas já nos anos 2000 são países que apresentam um sinal inverso, são países que apresentam aumento da pobreza, desigualdade, o crescimento é relativamente muito baixo. Então, de certa maneira, o Brasil assumiu uma posição singular porque conseguiu oferecer resultados que anteriormente se verificava apenas por países ricos, quando agora eles mesmos não conseguem mais oferecer.
Há uma inflexão na trajetória, pelo menos nos últimos 50 anos, que a gente tem condição de analisar com dados oficiais.
O livro fala que é um bom começo ter claro que o Brasil avançou na última década, mas que fez isso de uma maneira desigual, e fala na importância de “enfrentar desigualmente as diferentes misérias”. Como é isso? O país tem ferramentas ou é um caminho ainda distante para acabar com essa marca da desigualdade?
A desigualdade não é uma desigualdade apenas social, mas uma desigualdade territorial. Os indicadores melhoraram, pelo menos aqueles que nós tomamos como referência. Só o indicador de violência que cresceu e coloca o Brasil realmente numa situação internacional bastante desfavorável em relação ao problema da violência. O que o livro quer chamar a atenção é que no Brasil nós não temos experiência de política públicas que seriam adotadas de maneira regional, elas, de maneira geral, são de caráter nacional, olham o Brasil como um todo. E o que nós percebemos é que essas políticas nacionais têm um impacto diferenciado no país em função de realidades distintas.
Mas nós não temos, infelizmente, uma boa capacidade dos estados fazerem uma intervenção mais adequada à realidade em que eles se encontram. Os estados do Brasil tinham uma capacidade de intervenção maior, praticamente, até os anos 1990, e eles foram perdendo capacidade de intervenção, seja por um processo de centralização política seja por programas nos anos 1990, que foram de certa maneira reduzindo a capacidade de intervenção do estado pela centralização que ocorreu especialmente no âmbito da política econômica. Até os anos 1980, por exemplo, cada estado tinha seu banco de desenvolvimento. Hoje, não temos mais banco de desenvolvimento nos estados. Então, a nosso modo de ver, o Brasil precisaria ter um olhar mais regional mais diferenciado, do que tem atualmente a partir das políticas nacionais.
De qualquer forma, foi grande a intensidade das mudanças ocorridas na última década, principalmente na região Norte e Nordeste?
O mais importante é essa inflexão que conseguiu realizar nos anos 2000. Mas, obviamente, como nós partimos de uma base tão grande de desigualdade, é absolutamente necessário que se mantenha essa unidade da democracia, de crescimento econômico, políticas distributivas, para poder fazer com que o Brasil se estabeleça num patamar minimamente civilizado. Porque nós temos ainda indicadores de sociedade muito primitiva.
Um artigo seu do mês passado dizia que esse Brasil menos desigual parece não agradar alguns. Que cenário é este que está montado?
Nós somos um país que se constituiu em cima da desigualdade. Nós somos um país herdeiro de quatro séculos de escravidão. A desigualdade é uma marca do Brasil. Na medida em que essa desigualdade começa a ser atacada, de certa maneira, ela termina expressando certo desconforto. Porque há vários sinais de manifestação em relação a essa circunstância. Nós até estamos fazendo um outro estudo que mostra a mudança no regionalismo brasileiro. O novo federalismo, que aponta justamente certa inversão de protagonismo.
Nós tínhamos, praticamente, a região Sul, São Paulo como protagonistas do Brasil. O que ocorreu, nessa primeira década do século, pelo menos, foi uma expansão econômica mais consistente, com melhores resultados no Nordeste, no Centro-Oeste. O Brasil, inclusive, convive com uma mudança no próprio regime migratório. Antes, havia uma atração muito grande da população para as regiões Sul, e houve uma migração reversa, de pessoas que voltaram para os seus estados de origem. Então, há uma mudança geográfica no Brasil.
Há uma disputa, até porque, em função desse processo de transformação que o Brasil vem vivendo, nós temos o surgimento de novas elites, elites regionais, elites do interior do Brasil, em outros estados, e essas elites, no nosso modo de ver, elas também não encontram muita repercussão nas estruturas de representação que nós temos hoje, sejam eles sindicatos, partidos, enfim, agremiações que são elementos fundamentais para o processo democrático.
O senhor acha que essas conquistas podem ser perdidas?
Não há garantia que elas sejam para toda a vida, até porque a referência que nós tínhamos aqui no Brasil, que eram os países europeus, sobretudo, mesmo os Estados Unidos, convivem com sinais de retrocesso. Então, do meu modo de ver, não há garantia que não seja essa combinação que se mostrou bastante efetiva, de você ter democracia, ter política distributiva e ter crescimento econômico. A falha de uma delas pode certamente comprometer essa trajetória.
Este segundo volume do Atlas também fala de um desgaste próprio desse caminho adotado nos últimos anos. Isso determina a necessidade de uma mudança?
O desgaste se dá pelo fato de que o êxito traçado, pelo menos no nosso modo de ver, nesses primeiros 10 anos do século, é um êxito que encontra limites, porque são avanços que de certa maneira não colocaram em xeque questões históricas mais importantes. Ao nosso ponto de ver, a distribuição das oportunidades seria mais efetiva se nós tivéssemos condições de fazer algumas reformas. São reformas já defendidas há muito tempo, sem que o Brasil tenha tido oportunidade de realizá-las. A mais inegável delas é a própria reforma tributária, que há uma desigualdade enorme na forma com que o Brasil arrecada seus recursos.
Certamente, o que aconteceu na primeira década foi uma certa progressividade no gasto, mas não há progressividade na arrecadação, isso distorce certamente a capacidade do Estado ser mais eficaz nas suas políticas públicas. Nós temos, se a gente olhar o universo de políticas públicas brasileiras, há políticas de corte mais voltadas para a renda. As políticas de assistência social, por exemplo, estão mais voltadas para as regiões mais pobres. Mas quando a gente começa a olhar a política pública, por exemplo, no âmbito da Cultura, os principais teatros, os principais equipamentos culturais não estão nas regiões mais pobres. Não estão nas regiões onde a população mais carente mora. Em geral, os equipamentos de cultura estão nos centros das grandes cidades, nos principais centros onde mora a população com maior poder aquisitivo, de certa maneira privilegiada pela situação que nós temos no Brasil.
Então, nós estamos chamando a atenção para a necessidade de avanços maiores que esses que até o presente momento a gente conseguiu realizar.
O governo estaria estudando a possibilidade de taxação de grandes fortunas também. Isso seria uma forma de contrabalancear essas medidas de política fiscal que afetariam só o trabalhador e o empresário?
O que nós temos visto é que as medidas tomadas até o presente momento elas afetam mais o setor produtivo brasileiro, em particular os trabalhadores e agora numa segunda rodada também os empresários, mas há uma série de outros segmentos que até então não foram atingidos, segmentos em que, de certa maneira, há uma ausência de tributação. Pela questão da justiça fiscal, certamente, seria importante que outras modalidades viessem a ser tomadas.
O livro resgata o diferente posicionamento adotado pelo Brasil em relação a outros países com a crise de 2008, e um esgotamento do Consenso de Washington. O Brasil ainda tem condição de continuar a ser referência, considerando, por exemplo, o novo Banco de Desenvolvimento e o Acordo Contingente de Reserva do Brics? Seria uma alternativa a esse neoliberalismo que não deu certo?
Eu acredito que sim. Eu quero lembrar que nós estamos diante de um quadro dramático. O ambiente internacional é um ambiente de crise fomentada desde 2008, não há saídas ainda sustentáveis. Os países estão crescendo menos. O Brasil cresce hoje 45% do que crescia até 2008. Os Estados Unidos crescem 30% do que crescia até 2008, a China cresce 75% do que crescia até 2008. Então, é um quadro de maiores dificuldades. Entendo ser difícil uma saída pelos países ricos. Até porque eles estão com problemas mais profundos. Então a solução Brics pode ser de fato uma alternativa, até porque parte importante dos fluxos comerciais de investimento vem se dando na região Sul do planeta. O fato da criação desse banco, do fundo de reserva, e agora a possibilidade de criar uma agência de avaliação de risco também no âmbito dos Brics revela o fato mais importante ocorrido ao meu modo de ver desde o acordo de Bretton Woods de 1944, mas ainda é um processo lento, mas pode, em termos médios de longo prazo, ser de fato uma realidade, uma alternativa pro mundo que ainda vive em forte crise.
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