Desafios e limites para a justiça
Comissões da verdade: desafios e limites para a justiça de transição no Brasil
Em artigo exclusivo para o Café História, o historiador João Teófilo, pesquisador do Programa de Pós-Graduação em História Social da PUC-SP, fala sobre memória, história e justiça no contexto das Comissões Nacionais da Verdade no Brasil.
Por João Teófilo (PUC/SP)*
O ano de 2014 foi marcado pela efeméride dos 50 anos do golpe civil-militar de 1964. Pela primeira vez, desde que tais efemérides passaram a adquirir evidência (quando se completou 30 e 40 anos do golpe), o tema ganhou força na agenda política nacional, devido, em grande medida, aos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade (CNV), criada em 2011 através da lei nº 12.528, pela presidenta Dilma Rousseff, e pelas demais comissões instauradas em outras instituições, em vários Estados do Brasil. Essas comissões ajudam a constituir uma conjuntura favorável para se ir a fundo na pesquisa, descoberta e esclarecimento dos crimes contra a humanidade perpetrados pela ditadura e seus agentes, embora, é preciso deixar claro, estudiosos e organizações de familiares e de direitos humanos já o tenham feito (e o façam).
Imagem: Site da Comissão Nacional da Verdade. Clique na imagem para acessar.
O objetivo das comissões da verdade é examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos, como mortes, torturas, desaparecimentos etc. ocorridas durante o regime militar, a fim de efetivar o direito à memória e a verdade histórica, buscando recuperar anos de negligência por parte do Estado brasileiro, que após o fim da ditadura, praticamente ignorou o recente passado autoritário do país (Os governos de José Sarney e Fernando Collor de Mello e Itamar Franco exemplificam tal ponto). Tais comissões, entretanto, não têm caráter punitivo; o que significa que quaisquer que sejam as descobertas sobre os crimes e a identificação de seus autores, as comissões não têm poder para puni-los.
Estas comissões constituem o elemento mais marcante no sentido de encaminhar no Brasil uma agenda de justiça de transição, embora, cumpre lembrar, não sejam as únicas ações encaminhadas, seja pelo Estado, seja por outros segmentos organizados da sociedade civil, no sentido de contribuir com atos de reparação, aqueles vitimados pela ditadura. Organizações de direitos humanos e de familiares dos mortos e desaparecidos pela ditadura, e também iniciativas como a criação da Comissão Especial dos Mortos e Desaparecidos Políticos (1995) durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça (2002) e o projeto Memórias Reveladas (2009), durante os governos de Luiz Inácio Lula da Silva, já lutavam (e lutam) para dar visibilidade a essa pauta.
Os temas e polêmicas que tais comissões ensejam têm revelado os desafios e os limites para uma efetiva justiça de transição no Brasil, que venha, a exemplo de outros países que sofreram num passado recente com ditaduras militares, como a Argentina e o Chile, promover, efetivamente, a tríade verdade-memória-justiça.
O trato com este passado não é apenas uma questão histórica ou ética, mas, também, política. Embora muito dos militares e demais agentes que atuaram durante o período estejam mortos ou idosos demais, as Forças Armadas (FFAA) brasileiras têm sido relutantes quanto à política oficial, e mesmo ultrajantes, pouco contribuindo com os trabalhos das comissões. O caso do oficial da reserva José Conegundes, que ao ser convocado para prestar depoimento na CNV, respondeu “Não vou comparecer. Se virem. Não colaboro com o inimigo”, e a postura do comandante do Exército, Enzo Martins Perri, que proibiu os quartéis de colaborar com as investigações sobre as violências praticadas em suas dependências durante a ditadura, ilustram a dimensão dessa postura ultrajante, não restando dúvidas de que as FFAA boicotam não somente os trabalhos da CNV, mas, também, são um grave empecilho para concretizar uma efetiva justiça de transição no Brasil. Outro agravante em relação à postura da instituição está no fato de que o acesso aos arquivos cruciais referentes ao período é restrito. Muitas vezes, a justificativa é que muitos documentos não existem ou foram destruídos, quando na verdade essa postura nada mais é que um mecanismo para ocultar as ações ilegais do governo e das FFAA cometidas durante a ditadura.
Entretanto, talvez a mais grave postura adotada pelas FFAA, que não é apenas um insulto à verdade histórica e à memória dos mortos, desaparecidos e torturados, mas, sobretudo, à democracia brasileira, está no episódio ocorrido em agosto deste ano, quando, diante da solicitação da CNV para se averiguar se houve tortura nas dependências das FFAA (ou, no eufemismo medroso utilizado pela CNV: se houve “desvio de finalidade”), a sociedade brasileira foi respondida, numa atitude sonsa e insolente, com um “nada consta”, contrariando, aliás, a postura do Estado brasileiro que, desde 1995, reconhece as condutas criminosas praticadas durante o período. Esta contradição institucional, e mesmo ética, nos revela os desafios e limites para se efetivar no Brasil uma política de justiça de transição, ainda que tardia.
Outro limite, e esse ainda engendrado durante a ditadura, em 1979, consiste na Lei de Anistia. Além de buscar impor o silêncio e a amnésia social sobre os anos do arbítrio, tal Lei representa, de certa forma, o ponto nevrálgico do pacto de conciliação imposto no período da abertura política. Amparando torturadores e negligenciando a existência dos mortos e desaparecidos políticos, a Lei de Anistia fez valer a força do arbítrio, sufocando histórias e memórias, mas, também, forjando-as, rumo a uma conciliação nacional, capitaneada por um acordo entre as elites que naquele momento saíam e entravam no poder. De modo que, um dos grandes desafios da justiça de transição no Brasil contemporâneo é rever a Lei de Anistia, permitindo que, para além da memória e da verdade, haja também justiça. No entanto, não há perspectivas nos quadros da política institucional brasileira para tal. Além de a presidenta Dilma ter demonstrado falta de força e vontade políticas para levar o assunto adiante, o atual congresso brasileiro, eleito em outubro deste ano, é o mais reacionário desde 1964, nos permitindo antever um espaço no qual as correlações de força não serão favoráveis para pôr a pauta em discussão.
Embora haja casos isolados na justiça brasileira - como o da família de Amelinha Teles, que conseguiu no Tribunal de Justiça de São Paulo condenar o coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra, declarando-o oficialmente um torturador - o que prevalece, no entanto, é que as ações movidas são barradas por conta da Lei de Anistia, imperando a impunidade. Mesmo o famoso caso do atentado à bomba no Riocentro, que ocorrera em 1981 e não estaria coberto pela Lei de Anistia, tampouco poderia prescrever, pois se trata de um crime contra a humanidade, teve a ação penal contra os militares envolvidos trancada pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2), que declarou o crime prescrito, em julho último (outros dois inquéritos, de 1981 e 1999, também foram arquivados). Por comparação, a vizinha Argentina condenou recentemente à prisão perpétua 15 ex-militares, policiais e oficiais envolvidos em sequestros, torturas e assassinatos naquele país. Essa comparação revela a diferença abismal que há entre Brasil e Argentina em termos de justiça de transição.
Apesar dos inegáveis avanços em relação ao tema, prevalece ainda no Brasil a insistência na construção do silêncio e do esquecimento quando se trata de olhar para o passado e dá as respostas para as perguntas que o presente impõe. A memória social da ditadura no Brasil não pode estar constantemente ameaça por qualquer ranço autoritário, ainda presente nas práticas e nas instituições. Já avançamos consideravelmente em termos de memória e verdade, mas permanecemos demasiadamente lentos no que se refere à justiça. A democracia brasileira tem como dever ético, histórico e cidadão, ir a fundo nos debates sobre o tema, afrontando as forças políticas autoritárias ainda presentes em nossa sociedade.
Recentemente, a Comissão Especial dos Mortos e Desaparecidos requereu o direito de continuar com os trabalhos de investigação da CNV. O curto período de atuação da CNV, apesar de prolongado por mais seis meses, não dá conta, evidentemente, de toda a demanda que o período impõe. “O encerramento do período legal das atividades da CNV não pode ser considerado, em hipótese alguma, o término do trabalho de apuração das violações de direitos humanos ocorridas durante a ditadura civil-militar brasileira”, argumenta o texto encaminhado à CNV. Entre as solicitações encaminhadas, está a mudança na legislação para ampliar o conceito de “vítimas do regime”, podendo incorporar não somente aqueles que participaram da resistência, armada ou não, mas que também foram diretamente atingidos pela repressão, como os indígenas.
Prestes a encerrar seus trabalhos, as conclusões e encaminhamentos que partirem da CNV, e também das demais comissões, não devem constituir, de maneira alguma, um ponto de chegada. É preciso garantir que elas sejam somente um ponto de partida, e que o Brasil, a exemplo de outros países, possa definitivamente concluir a tríade memória-verdade-justiça, questão intrínseca e indispensável aos processos de justiça de transição.
* João Teófilo é historiador, e pesquisa atualmente o tema da imprensa brasileira durante a ditadura civil-militar. É mestrando em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), e membro do Núcleo de Estudos Culturais: História, Memória e Perspectiva de Presente (NEC-PUC-SP), atuando na linha de pesquisa "Memória, Imprensa e Hegemonia". Email: joaoteofilo.hist@gmail.com
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