Crianças fora da escola
Gestores municipais batem de porta em porta atrás de crianças fora da escola
Perfil dos 3,8 milhões de excluídos mostra que maioria é negra, vive no campo e tem pais com pouca ou nenhuma escolaridade
Fonte: iG 24 de junho de 2014
Gestores de municípios na Bahia, Amazonas, Pernambuco e Rio de Janeiro estão empenhados em garantir um direito básico de toda criança brasileira: a educação. São poucos, mas bons exemplos de redes municipais que decidiram enfrentar a exclusão escolar, que mantém cerca de 3,8 milhões de crianças e adolescentes brasileiros em todo o País fora da escola.
Os municípios de Borba (AM), Teresópolis (RJ), Saloá (PE), Coaraci e Serrinha (BA) mostram que, apesar das dificuldades, é possível levar para a escola quem nunca esteve em uma e ou quem desistiu dos estudos. Essas redes estão em diferentes estágios de sucesso na empreitada, mas decidiram se mobilizar fazendo buscas ativas dos alunos.
A tarefa não é simples. O perfil dos excluídos mostra que a maioria, em qualquer faixa etária, é formada por negros, mora no campo, é pobre ou vem de famílias em que os pais tiveram pouca ou nenhuma escolaridade. As crianças e os jovens quilombolas, indígenas, com deficiência ou em conflito com a lei também são grandes vítimas da exclusão.
Por essas características, vencer os desafios não é fácil. Grande parte (45%) dos 3,8 milhões de crianças e adolescentes que estão fora da escola tem entre 15 e 17 anos. Eles representam 1,7 milhão de pessoas. E, especialmente para eles, a escola muitas vezes não faz sentido.
“A escola precisa mudar, ser mais interessante e atrativa para os jovens. A promessa da educação como salvação está se perdendo, não está se cumprindo e o jovem percebe”, aponta Iracema Nascimento, coordenadora executiva da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. Para ela, a cada ano, os dados mostram que o Estado e a sociedade brasileira precisam avançar na compreensão dos problemas educacionais e na proposição de soluções.
Primeiros passos
Para encontrar estratégias para incluir as crianças e os adolescentes na rede escolar, é preciso saber quem são eles. Em Coaraci, a secretária de educação, Rosilene Cavalcante, tomou uma decisão ousada. Pediu apoio dos vereadores para fazer um recenseamento da população. Ela contratou 12 pessoas para aplicar um questionário em todas as casas da cidade.
Para ajudar os gestores que não têm condições de fazer o mesmo, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e a Campanha Nacional pelo Direito à Educação criaram o site www.foradaescolanaopode.org.br. Lá, há informações sobre a quantidade de excluídos e seu perfil, traçados a partir dos dados do Censo Demográfico de 2010, em todos os municípios.
Marcelo Marzzoli, coordenador de educação do Unicef, elogia a simplicidade da campanha. “Ela dialoga com qualquer pessoa. Tiramos o sono dos secretários, que precisam tomar uma decisão imediata. Damos ferramenta para os gestores mudarem”, destaca.
O portal também é um convite de adesão à campanha do órgão contra a exclusão: “Fora da escola não pode! E na escola sem aprender também não pode”. Apesar de os números oferecidos não serem tão recentes, são um bom começo. Assim avalia Gelcivânia Silva, secretária de educação de Serrinha, que pretende fazer censo semelhante ao de Coaraci. A diferença é que Serrinha tem 80 mil habitantes e Coaraci, 20 mil.
Sensibilizar toda a comunidade para o problema é das providências mais importantes, comum a todos os projetos bem sucedidos ouvidos pelo iG. Os gestores admitem que, sozinhos, não conseguirão solucionar a exclusão.
Sem certidão
Em Serrinha, houve um lançamento oficial da campanha de combate à exclusão. Gelcivânia convidou padres da igreja católica, pastores da igreja evangélica, líderes da ubanda e do candomblé, representantes do judiciário e da assistência social, além das famílias, para o grande dia. Mostrou que aquela era uma responsabilidade de todos.
Ela queria que todos sentissem o mesmo impacto que ela sentiu ao ver a instalação artística feita pelo Unicef no fórum da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) de 2013. Diversas carteiras foram dispostas como em uma sala de aula. Em cima de cada uma, havia uma com a história de uma criança ou jovem que está fora da escola.
“Foi um choque. As cadeiras vazias e as frases me provocaram. Fiquei pensando sobre quantas crianças estavam nessa situação e não fazíamos nada”, conta. Gelcivânia também convidou secretários de municípios vizinhos para participar do projeto: 21 toparam. “A gente percebeu que não conhecia o município”, conta.
A mobilização se tornou um compromisso. Vestidos com camisetas iguais, carregando cartazes, eles percorreram as ruas da cidade. Professores gritaram no megafone que crianças não deveriam estar fora da escola e convocaram os pais a rematriculá-las. Bateram de casa em casa e descobriram que muitas não tinham nem certidão de nascimento.
A secretária diz que o número de crianças matriculadas na creche e na pré-escola saltou de 172 (o dado do censo de 2010) para 986 agora. “Agora queremos qualificar os dados”, diz. Para ela, o grande resultado do movimento até agora foi dar visibilidade à exclusão e responsabilizar todos pelas mudanças.
De porta em porta
A iniciativa de Coaraci começou com o censo, mas ganhou novo fôlego com as visitas dos professores e diretores das escolas da cidade a todas as residências consideradas “alvos” da campanha. Agora, a secretaria precisa encontrar formas de garantir o acesso e a permanência dos futuros (novos) alunos na rede escolar.
A visita dos funcionários contratados pela prefeitura (com recursos aprovados pela Câmara de Vereadores) para levantar dados sobre os moradores e suas trajetórias escolares já chamou a atenção da população. A secretaria, mesmo sem a adesão formal do município à campanha do Unicef, confeccionou camisetas com o mote da iniciativa, em cor laranja, bem chamativa.
Depois, Leninha, como a secretária é conhecida, tabulou os dados e fez questão de apresentá-los durante a jornada pedagógica dos professores, em janeiro. O encontro é realizado para formação dos docentes antes do início do ano letivo. “Queria chocá-los e mostrar que a responsabilidade também era deles”, conta.
Os números mostravam que 350 crianças poderiam, mas não estavam, estar matriculadas na creche e na pré-escola. Outros 172 deveriam cursar o ensino médio. Mais 3.361 poderiam ter concluído o ensino fundamental e o programa de aceleração de aprendizagem (jovens e adultos). Os analfabetos somavam 935. Além deles, 46 deficientes não estudavam.
“Chegamos ao número de 4.864 que poderiam estar na escola e não estavam. Minha rede tem 4 mil matriculados. Eu precisaria dobrar minha rede para atender a todos!”, admite. O próximo passo foi fazer com que professores e diretores fossem visitar as famílias para se envolverem nesse processo de convencimento e escuta da comunidade.
A primeira conquista foi a matrícula de 150 das 350 crianças de zero a três anos que ainda estavam fora da rede. “Ainda falta muito, mas foi um bom começo”, ela afirma. O grande problema do município, segundo ela, está em trazer jovens e adultos para a escola. São 2,8 mil que não concluíram sequer os anos iniciais do ensino fundamental.
Leninha acredita que a prefeitura precisa dar exemplo e facilitar o processo. Pediu uma análise das folhas de pessoal dos órgãos municipais para avaliar quantos dos funcionários são semianalfabetos. “Eu acho que teremos de dar algum incentivo para que eles voltem. Minha proposta é reduzir a jornada de trabalho ou conceder auxílio financeiro”, diz.
Nas ondas do rádio
Em Borba, cidade localizada a 150 km de Manaus, capital do Amazonas, o convite para as matrículas das crianças e dos adolescentes nas escolas começa nas ondas das rádios. Depois, diretores, professores e coordenadores saem visitando as famílias, junto com os servidores da assistência social, para lembrá-los da importância da matrícula.
A busca por crianças fora da escola nas áreas rurais e indígenas fez os números de matriculados aumentarem significativamente. Segundo Francisco Ferreira das Chagas filho, secretário municipal da cidade, em 2013, a rede possuía 7,3 mil alunos. Este ano, pulou para 9,1 mil. A solução foi construir mais escolas, próximas das comunidades rurais e indígenas.
“Havia crianças que moravam a três dias de lancha da escola mais próxima. A primeira providência foi criar polos na zona rural. Construímos 18, que abrigam cerca de 300 estudantes cada. Oferecemos da educação infantil ao ensino fundamental. Agora, estamos buscando parceria com a secretaria estadual para oferecer o ensino médio”, afirma.
Até 2006, quando o projeto começou, Chagas conta que a rede municipal não oferecia atendimento especial a alunos com alguma deficiência. Para ele, o compromisso da equipe em encontrar soluções fez a diferença para a mudança no município. “Buscamos encarar as dificuldades dos alunos e encontrar recursos para melhorar o que é preciso”, ressalta.
Oficinas de trabalho
Diminuir a evasão de jovens e adultos da escola é a maior preocupação da secretaria municipal de educação de Teresópolis, Rio de Janeiro. Carla Rabelo, diretora do Departamento de Educação, conta que as mudanças no perfil dos alunos, especialmente da Educação de Jovens e Adultos, o antigo supletivo, fez com que a escola oferecesse mais do que “ensino”.
Além das aulas regulares, os estudantes matriculados no EJA podem se inscrever em oficinas de trabalho e de arte (como grafite, dança, curso para garçom, manicure, cabeleireiro, cursos de inglês e espanhol, de técnicas de secretariado). A condição para participar do projeto é ter boa frequência nas aulas regulares.
As parcerias estabelecidas com conselho tutelar e Ministério Público também têm sido importantes, segundo ela. Se as crianças faltam muitas vezes sem justificativa, a Promotoria da Infância logo é acionada. Agora, uma nova aliança está sendo desenhada com o Ministério Público do Trabalho. Ainda há muitas crianças trabalhando nas lavouras da região.
Carla diz que os resultados são positivos. “Só a educação não resolverá esses problemas. É preciso envolver o Poder Judiciário, a assistência social, as secretarias de mulheres, de saúde e a sociedade civil como um todo”, admite.
“A escola pública no Brasil está passando por um momento de muita fertilidade. Apesar de toda a campanha de que a educação não é de qualidade, que os professores são ruins, eu vejo pessoas se envolvendo, se movimentando, combatendo problemas do dia a dia”, avalia. Carla acredita que a escola deve ser “ponto de partida para receber a diversidade das famílias e não só ser ponto de transmissão de conhecimento acumulado”. “É um desafio”, define.
Ajuda da saúde
Em Saloá, localizada a 240 km de Recife, capital de Pernambuco, Josevalda Cavalcante de Albuquerque, grande parte da população que ainda não frequentava a escola eram crianças de 4 e 5 anos de idade. Com o apoio dos agentes de saúde, que visitam muitas casas, especialmente das áreas rurais e mais pobres, a secretaria identificou quem não estudava.
Muitos alegaram falta de transporte ou quem levasse as crianças até a escola. O transporte foi providenciado e as matrículas, feitas nos colégios de tempo integral. Outros usavam os filhos mais velhos para ficar com os mais novos. Os professores visitaram todas as famílias da área rural para conscientizar os pais da importância de manter os filhos na escola.
“Ainda não fizemos um balanço dos dados, mas estamos conseguindo mudar. Das 300 crianças que não estavam estudando em 2010, muitas já voltaram”, afirma Josevalda. Para ela, o importante agora é oferecer uma escola “com significado” a esses alunos. “Precisamos sair do discurso e ir pra prática”, ressalta.