O homem que plantava árvores
O homem que plantava árvores
Marco Weissheimer
“As pessoas não utilizam estas árvores no Gasômetro”. A frase saiu da boca do prefeito de Porto Alegre, José Fortunati (PDT), no dia 6 de fevereiro, ao defender o corte de árvores em uma praça situada ao lado da Usina do Gasômetro, um ponto tradicional da capital gaúcha. O corte promovido pela Secretaria Municipal de Meio Ambiente provocou um protesto quase imediato. Na tarde do próprio dia 6, algumas das árvores ainda não cortadas foram “ocupadas” por jovens que subiram em seus galhos para evitar a destruição. Conseguiram temporariamente. Diante dos protestos e da repercussão provocada pela frase de Fortunati sobre a “utilização das árvores”, a Prefeitura foi obrigada a recuar e suspender a operação. O próprio prefeito admitiu no dia seguinte que houve um “problema de comunicação”.
Trata-se, aparentemente, de um problema de comunicação antigo a julgar pela facilidade com que árvores são derrubadas pelos mais variados motivos. No caso em questão, a justificação é a duplicação de uma avenida de Porto Alegre, que integra o pacote das chamadas “obras da Copa”. A desastrada tentativa de recorrer ao argumento do “uso” das árvores serve ao menos para atualizar uma questão tão óbvia quanto desprezada por uma parcela significativa dos administradores das nossas cidades: para que é mesmo que “serve” uma árvore? A pergunta em si mesma já é atravessada, podendo se questionar em que medida as árvores precisam “servir” para alguma coisa ou para alguém como condição de sobrevivência. Apesar desse questionamento, as árvores servem mesmo para muitas coisas, provavelmente bem distintas daquelas que o prefeito de Porto Alegre estava pensando ao proferir a curiosa frase.
A história de Elzèard Bouffier
Há várias possibilidades de respostas à pergunta: para que serve uma árvore? Uma delas pode ser encontrada no desenho animado “L’homme qui plantait des arbres” (O homem que plantava árvores, de 1987), vencedor do Oscar de Melhor Animação de 1988. Baseado em um conto do romancista francês Jean Giono, de 1953 (há tradução em português disponível), e dirigido por Fréderic Back, o desenho conta a história de Elzéard Bouffier, um pastor de ovelhas silencioso e persistente, que dedicou sua vida ao plantio de milhões de árvores, durante mais de 30 anos, em uma grande área dos Alpes franceses, na região de Provença (não por acaso terra natal do autor). O trabalho silencioso de Bouffier não só deu origem a matas e florestas onde havia um deserto, como modificou toda a paisagem humana da região, trazendo paz e alegria onde antes havia dor, rancor e sofrimento.
A história de Elzéard Bouffier é narrada por um jovem viajante (na voz de Philippe Noiret) e atravessa as duas grandes guerras que devastaram a Europa sem conseguir perturbar, porém, o trabalho diário do pastor. Escrito na década de 50, o conto guarda extraordinária atualidade neste momento onde a crise ambiental assumiu proporções planetárias. E um de seus elementos mais atuais consiste justamente em mostrar os efeitos multiplicadores em uma comunidade humana de um gesto tão simples como plantar uma árvore. Não há nenhuma retórica, nenhum discurso ambientalista explícito no filme que, aliás, é repleto de silêncio. Bouffier trabalha e vive em silêncio. Sabe o que tem que fazer e faz, sem aguardar recompensa, sem nenhuma publicidade. O seu público é unicamente o testemunho do viajante narrador que, mesmo assim, troca apenas umas poucas palavras com ele durante suas visitas.
10 mil carvalhos: uma gota no oceano
O viajante compartilha conosco as poucas informações que obteve sobre a vida do pastor: Tinha 55 anos e se chamava Elzéard Bouffier. Outrora, possuía uma fazenda na planície onde vivia com a esposa e um filho. Mas uma tragédia se abate sobre sua vida. Perdeu o filho único e, depois, a esposa. Ele se retira então para as montanhas e para uma vida silenciosa na companhia de seu cão e de um rebanho de ovelhas. Em um determinado momento, Bouffier constata que a região estava morrendo por falta de árvores. E a morte aparecia não apenas na paisagem desértica e desolada da natureza, mas também no ambiente de brutalidade que passou a marcar as comunidades humanas da área. Ele começou seu novo trabalho selecionando e plantando sementes de carvalho. Quando o viajante o encontrou pela primeira vez, já havia plantado dez mil carvalhos. Em uma de suas poucas falas, o pastor diz ao viajante que se Deus lhe permitisse viver, dentro de trinta anos “já teria plantado tantas outras que estas dez mil não seria mais do que uma gota de água no oceano”. Além disso, naquele momento, já planejava o início do plantio de faias, bétulas e outras espécies, o que acabou efetivamente fazendo nos anos seguintes.
Dez anos depois do primeiro encontro e após ter sobrevivido à Primeira Guerra Mundial, o narrador volta à região na esperança de reencontrar Bouffier. E fica espantado com o que vê:
“O espetáculo era impressionante. Eu estava literalmente privado de palavras e como ele não falava, passamos todo o dia em silêncio a passear na floresta. Ela tinha, em três seções, onze quilômetros de comprimento e três quilômetros na maior largura. Se tudo tinha saído das mãos deste homem – sem meios técnicos – compreende-se que os homens possam ser tão eficazes quanto Deus em domínios que não a destruição”.
“A criação parecia operar em cadeia”
O viajante constata que o surgimento dessa floresta havia repercutido em outras áreas também. “A criação parecia operar em cadeia”, observa. “Vi correr água nos regatos que estavam secos desde que havia memória (…) O vento também dispersava algumas sementes. Ao mesmo tempo em que a água reaparecia, reapareciam os salgueiros, os choupos, os prados, os jardins e as flores e uma certa razão de viver”. E o mais incrível, acrescenta, é que toda essa transformação ocorria “tão lentamente que entrava no hábito, sem provocar espanto”.
A última vez que o viajante viu Bouffier foi em 1945, quando este contava já com 87 anos. Ele relata um novo espanto que teve com a transformação radical da paisagem humana e natural da região:
“Precisei de um nome de uma aldeia para concluir que estava mesmo nesta região outrora tão arruinada e desolada. Em 1913, essa área tinha dez ou doze habitações. Eram selvagens, detestavam-se, viviam da caça com armadilhas. As urtigas cresciam em volta das casas abandonadas. A sua condição era desespero. Tudo estava mudado. O próprio ar. Em lugar do vento seco e brutal que me tinha acolhido nesse tempo, soprava uma brisa suave carregada de aromas (…)”.
“Um ruído semelhante ao da água descia das alturas: era o do vento na floresta. Enfim, a coisa mais espantosa, foi ouvir o verdadeiro barulho da água correndo para uma bacia. Tinham feito uma fonte, e ela era abundante e, aquilo que mais me tocou, tinham plantado ao pé dela uma tília que devia ter quatro anos, já crescida, símbolo incontestável de uma ressurreição. A esperança tinha renascido. Tinham-se limpo as ruínas, deitado abaixo os muros quebrados e reconstruído cinco casas. As casas novas, rebocadas de fresco, eram rodeadas de hortas e jardins, misturados mas alinhados, os legumes e as flores, as couves e as roseiras, as pereiras e as bocas-de-lobo, a salsa e as anêmonas. Era um lugar onde apetecia morar”.
Bem, não é preciso nenhum discurso normativo sobre como as coisas devem ser em relação às arvores. A história de Elzéard Bouffier é autoexplicativa e mostra que, no caso de Porto Alegre, quem parece que não está “utilizando” as árvores, na verdade, é o prefeito da cidade. Para isso, é preciso saber para que, de fato, elas servem. O nosso viajante narrador resume assim a “cura” que presenciou:
Não foram precisos mais de oito anos para que toda a região resplandecesse de saúde. Sobre as ruínas que eu tinha visto em 1913, elevam-se agora limpas fazendas, que denotam uma vida feliz e confortável. As velhas nascentes, alimentadas pela chuva e pela neve que a floresta retinha, puseram-se de novo a correr.
É para isso que servem as árvores. Elas servem à vida.