Ensino religioso confessional
STF decide que ensino religioso confessional é legítimo. E agora?
Por 6 votos a 5, ministros rejeitaram pedido da PGR pela garantia da independência da disciplina em relação a qualquer religião específica
O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, na tarde desta quarta-feira (27/09), que a disciplina de Ensino Religioso nas escolas públicas pode ser confessional. Na prática, a posição garante que instituições educacionais possam oferecer aulas de religião vinculadas a uma credo específico - contanto que sejam facultativas. A decisão, tomada por 6 votos a 5, declarou improcedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) da Procuradoria Geral da República (PGR), que corre desde 2010.
À época, o órgão reagia ao acordo diplomático entre o Brasil e a Santa Sé (representação oficial da Igreja Católica), em 2007. O artigo 11 do acordo prevê que “o ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental”, o que gerou muita polêmica. Isso porque o texto abre a possibilidade de vincular o conteúdo das aulas a uma religião específica, o que fere, no entendimento da Procuradoria, a laicidade do estado garantida na Constituição e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), que veda “quaisquer formas de proselitismo”.
O relator do processo, ministro Luís Roberto Barroso, deu voto favorável à ação da PGR, e foi seguido pelos colegas Celso de Mello, Luiz Fux, Marco Aurélio Mello e Rosa Weber. No entanto, ao longo das cinco sessões, os ministros Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes votaram contra o parecer do relator. No fim, a presidente do STF Cármen Lúcia deu o voto decisivo, também contra a ação. Não cabe recurso.
Os argumentos
Para o STF, a laicidade do estado não pode impedir que alunos e professores manifestem suas ideias, mesmo em ambiente público. “A liberdade religiosa também se exprime por meio da comunicação das ideias religiosas, que é vertente da liberdade de expressão e como tal como pode ser exteriorizada tanto no ambiente privado como no público”, argumentou Toffoli. Cármen Lúcia acrescentou que o caráter facultativo da disciplina garante a liberdade religiosa de alunos que não desejam receber esse tipo de formação.
Já o relator Luís Roberto Barroso, que deu voto favorável ao pedido da PGR, defendeu que a escola pública deve oferecer um ensino neutro, que aborde a religião sob aspectos científicos, históricos e antropológicos. “A escola pública fala para o filho de todos, e não para os filhos dos católicos, dos judeus, dos protestantes”, disse. Celso de Mello concordou e entendeu que introduzir na escola o ensino confessional fere a neutralidade absoluta: “Estado não tem nem pode ter interesses confessionais, ao Estado é indiferente o conteúdo das ideias religiosas que eventualmente venham a circular e a ser pregados por qualquer grupo confessional”.
Muitas perguntas, poucas respostas
Diante da decisão tomada hoje, a pergunta que fica é: o que pode acontecer daqui para frente? Há um mar de incertezas pela frente.
Segundo a advogada Daniela Tonholli, doutora em Educação pela PUC-Minas e presidente da Comissão de Direito Educacional da OAB-MG, a posição do STF não proíbe a existência do ensino não-confessional, mas pode impor às escolas uma demanda por aulas de caráter confessional que será difícil de suprir. “O acordo do Brasil com a Santa Sé deixa claro que o ensino pode ser católico ou de outras confissões religiosas. Mas como garantir que todos serão atendidos?”, argumenta.
O próprio ministro Luiz Fux, em seu voto, levantou esse problema. “Qual será a autodeterminação religiosa de uma criança que estuda desde a infância num colégio doutrinada para uma determinada religião, sendo certo que é absolutamente impossível o estado contratar professores para 140 religiões hoje consagradas pelos órgãos federais?”, questiona. Também fica sem definição que tipo de critérios e de formação que as redes deveriam procurar na hora de contratar educadores para falar de cada religião. Um professor de catolicismo teria que apresentar que tipo de currículo, por exemplo?
Outra questão em aberto: quem vai determinar o currículo que será trabalhado nas salas de aula? Atualmente, já existe um vácuo da administração pública em relação a isso. Como o Ministério da Educação (MEC) nunca deliberou sobre o assunto, as diretrizes para o Ensino Religioso foram estabelecidas por consenso em discussões promovidas na academia e na sociedade civil, como o Fórum Permanente para o Ensino Religioso (Fonaper). Elas defendem um currículo não-confessional e laico.
Também não se sabe se a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) dará alguma direção para isso, nem qual. O trecho do documento que estabelecia as diretrizes (não-confessionais, diga-se) para a disciplina foi eliminado da terceira versão.
Em Brasília, havia uma forte expectativa de que o Conselho Nacional de Educação voltasse atrás e colocasse o texto sobre Ensino Religioso de volta à Base. Pelo menos quatro dos nove conselheiros da Câmara de Educação Básica estariam dispostos a tomar essa medida. A expectativa nos bastidores do CNE era de que o STF decidisse pelo modelo não-confessional. “Todos ficaram muito surpresos com o placar final e agora não temos ideia do que pode acontecer”, conta Lusival Antonio Barcellos, vice-coordenador do Fonaper que acompanhou de perto toda a elaboração da BNCC.
“Até que ponto a decisão vai mudar a cultura do chão da escola e das secretarias de Educação? É uma pergunta que fica em aberto. Só a prática é que vai respondê-la”, diz Carlos André Cavalcanti, professor do curso de ciência da religião da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e líder do Grupo Videlicet - Estudos em Religiões, Intolerância e Imaginário.
Carlos criticou a decisão do Supremo: “É um enorme retrocesso, especialmente num momento em que a intolerância religiosa cresce no país. Mas a ciência da religião avança no Brasil e certamente haverá resistência em amplos setores da Educação brasileira, que vem construindo uma tradição pedagógica laica nas últimas décadas”.
Com a decisão, o STF apenas garantiu que o ensino confessional é legítimo à luz da Constituição brasileira e não fere a laicidade do estado, mas não definiu como a disciplina deve ser ministrada, nem o que o poder público terá que fazer daqui para frente. Portanto, essa é uma questão que ainda está longe do fim.