Competências para o século 21

Competências para o século 21

Base Nacional reacende debate de competências para o século 21

por Sergio Pompeu - Porvir - 09/09/2015 - São Paulo, SP


Um debate recorrente no meio educacional chegou a um momento decisivo. No dia 16 o Ministério da Educação divulga para a sociedade o documento que vai subsidiar o debate sobre a Base Nacional Comum Curricular (BNC). Prevista no PNE (Plano Nacional da Educação), a base é uma tentativa de definir o que deve ser ensinado no país, partindo de um pressuposto básico: quais são as competências e habilidades que um estudante brasileiro deve ter para navegar com autonomia no século 21? Mais do que isso, quais são os conhecimentos e competências que os sistemas de ensino (públicos e privados) têm a obrigação de garantir, como um direito dos alunos, um pré-requisito para a cidadania plena?

Para estimular a discussão da BNC, o Porvir lança hoje uma série de reportagens que vai levantar aspectos relevantes a serem debatidos depois da divulgação do texto do MEC, com foco especial nas competências para a vida no século 21. Nossa equipe ouviu duas dezenas de especialistas em educação, gestores, empresários e formadores de opinião do Brasil e do exterior para entender o que a sociedade espera que os alunos aprendam e que competências devem ser incluídas no projeto final da BNC.

Dependendo do ponto de vista de quem a analisa, a BNC tem outros usos, para além da questão dos direitos. Um deles é colocar o ensino brasileiro de fato no século 21, um debate que está ocorrendo em boa parte do mundo. Países que lideram rankings de qualidade do ensino, como Finlândia, Estados Unidos, Canadá e Austrália, passaram por processos recentes de definição do seu currículo nacional. Outros, como a Coréia do Sul, já admitem promover uma discussão semelhante para reorientar suas políticas educacionais – no caso coreano, o modelo é visto como excessivamente competitivo e conteudista, indutor do individualismo e da mera repetição de fórmulas, o que não prepara jovens para as demandas de um mundo no qual o trabalho em equipe, o espírito colaborativo e a criatividade são cada vez mais valorizados dentro e fora do mercado de trabalho. A BNC, portanto, pode representar uma oportunidade para o Brasil cortar caminho e usar um atalho para se aproximar de sistemas de ensino consolidados há muito mais tempo e de performance superior ao brasileiro.

Outro possível efeito positivo de uma BNC de qualidade é o de “editar” e dar foco ao currículo, considerado extenso demais, particularmente no ensino médio. A grade engessada de disciplinas (o número de matérias varia de 14 a 19) é uma queixa recorrente de gestores escolares, ainda que, paradoxalmente, não exista um currículo oficial, mas Diretrizes Curriculares, meros indicativos, do ponto de vista formal.

A Lei de Diretrizes e Bases (LDB), a “Constituição” da educação brasileira, é clara ao dizer que a escola tem autonomia para definir seu projeto pedagógico. Trocando em miúdos: a crítica à grade engessada procede, mas até hoje, para se mudar isso, bastava vontade, digamos, “político-pedagógica”. A questão é que poucas escolas assumiram o desafio de propor soluções mais radicais, como o Projeto Âncora, em São Paulo, que aboliu aulas tradicionais e provas e dá ao aluno liberdade para decidir seus caminhos de aprendizagem, ajudado por um tutor.

Na verdade, a BNC será uma ferramenta que vai ajudar a orientar a construção do currículo das mais de 190 mil escolas de Educação Básica do país, espalhadas de norte a sul, públicas ou particulares. Pelo menos essa é a atribuição legal prevista para ela no PNE. Ao contrário das Diretrizes Curriculares, a BNC terá força de lei, o que torna seu debate ainda mais relevante.

Ex-presidente da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), Cleuza Repulho acredita que o processo de discussão da BNC e do peso das competências para o século 21 será tão relevante quanto “difícil”. “A construção de consensos na educação é um processo complicado. Vai levar tempo, mas é algo do qual não podemos fugir”, diz.

Cleuza ressalta que não está acompanhando de perto a elaboração do texto-base, preparado por um grupo de 116 especialistas indicados por universidades federais, sistemas de ensino e entidades como a própria Undime. Mesmo de longe, porém, já alerta para o risco de “retrocessos”. “Alguns grupos querem usar o debate que o MEC está iniciando como pretexto para reabrir a discussão sobre se a Base Comum é válida, desejável ou não. Isso é inadmissível: a construção da Base está prevista em lei, não tem como voltar atrás. Precisamos olhar daqui para a frente.”

E olhando daqui para a frente, Cleuza, qual a competência não-cognitiva específica que você gostaria de ver ressaltada na BNC? “Não gosto de dizer que uma é mais importante do que a outra, todas são bastante revelantes. Mas eu diria que é a autonomia, formar pessoas que vão poder fazer escolhas corretas ao longo da vida – e não falo só da vida escolar, acadêmica”, diz. “Precisamos formar gente autônoma que consiga identificar quais são suas verdadeiras paixões e correr atrás do que for necessário para concretizá-las. Sejam ocupações bem-remuneradas ou não, isso importa menos do que elas fazerem sentido para o projeto de vida daquele indivíduo.”

Psicóloga, consultora de carreiras e colunista do site do jornal O Estado de S. Paulo, Cláudia Gonçalves acha que o pensamento crítico e a capacidade de se adaptar à diversidade (de gênero, étnica e religiosa) e a situações novas de trabalho serão a chave para o sucesso profissional neste século. “O sujeito precisa ter fundamentos de lógica, saber pensar. O que você tem atualmente é uma avalanche de notícias rápidas, superficiais. Isso só não basta e é justamente aí que o jovem de hoje em dia rateia um pouco.”

Quanto à capacidade de adaptação, Cláudia afirma que as empresas esperam dos funcionários que saibam navegar em um mundo mais complexo, no qual as fronteiras entre áreas antes estanques se diluíram. “Você já vê isso acontecendo na formação em cursos clássicos de MBA como o de Yale. Lá, a organização do curso ainda mantém algumas disciplinas tradicionais, como Finanças e Marketing, só que o enfoque mudou completamente. Agora os alunos aprendem Marketing, por exemplo, do ponto de vista de diversos atores, do fabricante, do consumidor, do distribuidor”, diz. “Você precisa ter clareza de qual é o seu jogo, é tudo mais integrado. Mesmo um profissional liberal, como um médico, precisa saber mais do que seu conhecimento técnico. Ele precisa conhecer o perfil do paciente, as grandes tendências do mercado no qual se especializou.”

Nessa diluição de fronteiras entre as áreas, a consultora ressalta a importância da empatia, do saber se colocar no lugar do outro. “Vamos pensar nas eternas brigas entre áreas, departamento de marketing versus o de finanças”, diz. “Sempre foi quase como um clássico Corinthians e Palmeiras, havia muita rivalidade. Hoje não cabe mais isso, é preciso ter pessoas dos dois lados capazes de entender o que é importante para um e para outro e chegar a uma solução que contente a todos.”

Professor do Instituto de Física da USP (Universidade de São Paulo) e consultor da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), Luís Carlos de Menezes é um entusiasta da discussão das competências para o século 21 no contexto da BNC, mas prefere passar ao largo das características normalmente associadas e elas (trabalho em grupo, empatia e resiliência para superar adversidades) e falar de aspectos – ou nomenclaturas – já incorporados há mais tempo ao cotidiano da escola. “Sem garantir que a criança ou jovem tenha alegria de pertencer à escola você não chega a lugar nenhum”, afirma. “Da mesma forma que uma criança cuja autoestima é massacrada nos anos iniciais de formação terá muito mais dificuldade de se tornar um adulto pleno.”

Quando menciona autoestima, Menezes fala em processos abrangentes, que devem estar no cerne do currículo nacional. Um sujeito com autoestima, por exemplo, se reconhece como dono de sua trajetória, como ator de sua vida. Isso tem efeitos mais profundos no processo de ensino do que pode parecer à primeira vista. “Uma pessoa assim não encara o conhecimento como algo gerado pelo outro, algo externo a ela, que precisa ser decorado, memorizado. Ela valoriza sua história de vida, a dos seus pais e avós, do seu bairro ou cidade e coloca essas vivências no centro do seu processo de formação”, diz. “Os chamados conteúdos cognitivos deixam de ser um fim em si mesmo para se tornarem ferramentas, instrumentos para aquela pessoa atingir seus objetivos.”

O que Menezes propõe é um resgate dos primórdios da educação. Os tutores gregos não eram contratados pelas famílias abastadas para formar filósofos (ainda que poucas ocupações possam ser tão relevantes quanto esta). Estavam lá para garantir que futuros políticos, administradores ou mesmo líderes militares tivessem uma formação ampla, capaz de fazê-los pensar com profundidade por si mesmos.

Ao contrário do que possa parecer, a argumentação de Menezes não exclui a necessidade de enfatizar na BNC as competências para mundo do trabalho. “Pelo contrário, acho até que esse aspecto costuma ser subestimado aqui no Brasil, muito por conta da nossa tradição excessivamente teórica. Sou totalmente a favor de que o estudante saia do ensino básico capacitado para trabalhar ou seguir na carreira acadêmica.”

Apesar do seu apoio incondicional à inclusão de competências que extrapolem os conteúdos acadêmicos no “anteprojeto” da BNC, Menezes teme que o documento do MEC acabe de alguma forma engessando o debate. “Meu medo é de que saia de lá um tratado de 200 páginas. Acho que o texto-base deveria conter princípios que todos pudessem assimilar, abrindo de fato um debate o mais aberto possível.”

Coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Daniel Cara é ainda mais cético do que Menezes sobre o debate da BNC. Daniel elogia, com ressalvas, o modelo adotado pelo MEC na preparação do texto-base, que juntou especialistas de referência do ensino superior com professores envolvidos no cotidiano escolar, além de outros atores, como representantes de estudantes. “O modelo é melhor do que o testado em iniciativas anteriores, embora eu tenha informações de que os professores acabaram sendo menos ouvidos do que o pessoal do ensino superior. Mas minha principal preocupação diz respeito à implementação do que for decidido, ao efeito que isso vai ter na sala de aula”, diz.

Daniel credita parte dessa dificuldade de engajar os professores à “desconfiança” dos educadores em relação à pauta “competências para o século 21 e/ou competências socioemocionais”. “Tanto uma quanto a outra acendem um sinal de alerta na cabeça dos professores. Muito deles veem ambas como uma prioridade exclusiva das grandes fundações privadas, associada a métricas e padrões de desempenho que os educadores enxergam como algo concebido sem consistência pedagógica”, diz.

Daniel acha que a resistência ao termo “competência socioemocional” é até maior, porque os educadores consideram que há uma tentativa de apresentar o tema como se fosse algo inédito. “Quem é professor há anos já viu esse filme, com outros nomes. Nos Parâmetros e nas Diretrizes já se falava na formação valorativa, algo que está na origem mesma da instituição escola. Não digo que não haja contribuições novas nesse campo, mas desconsiderar tudo que já foi discutido antes só realça o pé atrás de parte dos educadores.”

Para o diretor geral do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), Rafael Lucchesi, mais importante do que escolher algumas competências para serem ensinadas é atualizar os métodos de ensino. Lucchesi comanda uma estrutura que trabalha hoje no país de forma transversal as competências para o século 21, com a metodologia do ensino baseado em projetos e alto poder de engajamento. Prova disso é o sucesso da recente edição brasileira do World Skills, realizada no mês passado em São Paulo. O evento mais parecia uma sucessão de reality shows, com jovens atarefados correndo de um lado para o outro para terminar as provas a tempo – e tudo isso em clima de Copa do Mundo, com direito a torcida organizada de cada país e, pelo menos no caso da competição de jardinagem, transmissão ao vivo da TV japonesa.

“O que o aluno brasileiro tem hoje no ensino tradicional? Uma professora (ou professor) que muitas vezes despeja conteúdo em sala de aula de forma desinteressante. E a culpa não é dela. A professora só reproduz o que aprendeu na faculdade, uma formação deficiente, ideológica à beça em alguns casos, que não a preparou para enfrentar 40 pares de olhos na sala de aula”, diz Lucchesi. “Acho que o modelo que nós adotamos no Senai, de teoria e prática, muito mais eficiente. Você até retém uma parcela do que vê e ouve, só que é uma parcela pequena. Mas quando você ouve e depois aplica aquele conhecimento em alguma atividade prática, o nível de aprendizado é muito maior, fica com você para a vida inteira.”

A crença de Lucchesi cai como uma luva para a geração dos makers, os jovens que põem a mão na massa e aprendem dessa forma. É uma garotada que está usando a conectividade e ferramentas de fabricação digital para, por exemplo, reinventar produtos com impressoras 3D ou montar robôs que ajudam pessoas com deficiências. Sem deixar de se divertir com os mêmes mais legais da semana e outras interações em redes sociais. Com criatividade, tem lugar para todo mundo no século 21.




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