A Dívida Pública do RS

A Dívida Pública do RS

A Dívida Pública do Rio Grande do Sul: Onde tudo começou?

Uma das primeiras apólices de dívida pública do RS | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Uma das primeiras apólices de dívida pública do RS | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Fernanda Canofre

No centro da crise econômica que abala governo e a vida dos gaúchos, oposição e situação concordam sobre a vilã: a dívida pública do Estado. O Rio Grande do Sul é a unidade da federação com maior dívida proporcional no país. Ou seja, aqui, a dívida não só ultrapassa a arrecadação, mas também os limites impostos pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).

Segundo o Banco Central, a dívida gaúcha passa dos R$ 51 bilhões. O último relatório da Secretaria Estadual da Fazenda, atualizado com números do final de 2014, aponta o valor em R$ 54.795.035.721,39. Pagando 13% da receita do Estado para a União, todos os meses entregamos R$ 280 milhões e vemos a dívida crescer a juros de 6%, conforme acordo assinado em 1998 durante o governo de Antônio Britto (PMDB). Mas onde foi que tudo isso começou?

Nesta terça-feira (4), ao voltar do recesso na Assembleia Legislativa, os deputados se revezaram na tribuna tentando encontrar o culpado pela situação atual das finanças do Estado. As críticas se concentraram nas duas últimas gestões, de Tarso Genro (PT) e José Ivo Sartori (PMDB). A história, no entanto, começou bem antes deles. Como a CPI da Dívida Pública da União, Estados e Municípios na Câmara apontou no seu relatório final, em 2010, quando falamos da dívida pública no Brasil, “não se pode ignorar o contexto histórico e econômico que deu origem” a ela.

É como uma bola de neve que vem se acumulando descida abaixo há mais de 40 anos. O Dividômetro, calculado pela Auditoria Pública Cidadã e atualizado pela última vez em 15 de julho de 2015, aponta que a dívida de Estados e Municípios com a União chega a: R$ 3.585.829.906.868,44.


 1960-1970: Era de financiamentos, era de ditadura

O primeiro governador do RS durante a ditadura, Euclides Triches | Foto: Guilherme Santos/Sul21

O primeiro governador do RS durante a ditadura, Euclides Triches | Foto: Guilherme Santos/Reprodução Museu Hipólito José da Costa

Os anos de chumbo se fundaram através de financiamento no Brasil. Seis anos depois do golpe, na explosão do “milagre econômico”, os militares encontraram na dívida de títulos o principal meio de financiamento do governo, junto ao capital de terceiros. Os créditos, no entanto, eram contratados sem nenhuma transparência. “Os documentos omitem, na maioria das vezes, o agente credor e as condições dessas operações, como a taxa de juros incidente, as despesas operacionais, acréscimos e o número de parcelas da amortização”, explica a coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida, Maria Lucia Fattorelli, em entrevista ao site do Senado.

No Rio Grande do Sul, nossas primeiras apólices de dívida, apareceram um pouco antes. No início dos anos 1950, o governo de Ernesto Dornelles recorreu a empréstimos para financiar obras de estradas. Seu sucessor, Leonel Brizola, criou títulos de baixo valor para financiar a construção das brizoletas – as escolas de madeira espalhadas pelo interior do Estado, no seu projeto de erradicação do analfabetismo. Porém, a dívida dessa época se manteve abaixo do valor arrecadado pelo Estado.

“Ocorre que até 1964, as operações de crédito não eram corrigidas e pesavam pouco sobre as finanças estaduais. O dinheiro arrecadado com impostos superava o valor dos papéis e, assim, não havia desequilíbrio no caixa”, explica Rachel Duarte em um texto publicado em seu blog no Sul21. “Mas a Ditadura Militar, na onda do ‘milagre econômico’, afrouxou as restrições ao endividamento e estimulou os estados a buscarem empréstimos externos”. Foi aí, com o governo de Euclides Triches e a emissão de títulos públicos com correção monetária, que a dívida gaúcha passou a aumentar graças a um novo acompanhamento: os juros. No governo Triches a variação da dívida chegaria a 194.4%.

A instalação do Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG), do governo de Castelo Branco, e a reforma tributária trazida por ele também deixaram estados ainda mais dependentes de outras formas de financiamento. No RS, o governo do Estado passou a usar a emissão de títulos como meio de rolagem para a dívida, chegando a 7% da arrecadação em 1967.

Para Luiz Augusto Faria, economista da Fundação de Economia e Estatística (FEE) e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), é nesse momento que está a gênese da dívida pública gaúcha. “Na década de 70, diminui a arrecadação e há aumento dos gastos, por ser uma época de crescimento”. Ou seja, é neste período, que o governo passa a administrar com desequilíbrio no orçamento, o chamado déficit público. O RS fecha a década com média de inflação de 2,3% ao mês, investimentos públicos ocupando cerca de 30% da dívida e déficit público de 6%.

Foto: Guilherme Santos/Sul21

Foto: Guilherme Santos/Reprodução Museu Hipólito José da Costa

 1980: A década perdida

A década de 1980 é chamada por muitos de “década perdida” na América Latina. Se por um lado, democracia e movimentos sociais floresceram no fim de ditaduras, para a economia o quadro foi de devastação. Num cenário de hiperinflação e estagnação econômica, o Brasil chegou a ter 4 moedas naqueles dez anos: cruzeiro, cruzado, cruzado novo e cruzeiro novamente, em 1990.

No Rio Grande do Sul, não foi diferente. De 1979 a 1989, a dívida pública do Estado cresceu cerca de quatro vezes – passou de 4,3% para 17,2%. “A gente tem queda do crescimento, consequentemente uma queda da arrecadação. Isso fez a dívida continuar aumentando. Nesse período também começa a avolumar a Previdência, antes os funcionários eram jovens e esse problema não existia”, afirma Luiz Augusto Faria.

Em 1983, o Banco Central aplica uma resolução que impõe teto para operações de crédito realizadas com setor público prevendo sanções a quem desrespeitasse a regra. Isso aumentou o controle do governo federal sobre o nível de endividamento dos estados. É neste ano que começam as primeiras tentativas de renegociação entre a União e os Estados. As dívidas adquiridas pelo Rio Grande do Sul através do acordo deste período, só foram quitadas 25 anos depois, durante o governo de Yeda Crusius (PSDB). Com a redução para as operações de crédito, o governo de Pedro Simon (PMDB) opta por tirar dinheiro de investimentos no âmbito social para suportar a dívida.

“Eu fiquei dois anos no governo, não quis ficar mais porque a gente tinha preparado um plano técnico muito ambicioso para o governo e vi que aquele plano não iria a diante”, conta Cláudio Accurso, que ocupou a cadeira de secretário de Planejamento de Simon. A gestão do peemedebista ainda teve de suportar outro golpe: a isenção de Imposto sobre Circulação de Mercadorias (ICM) para exportações e importações de produtos primários, imposta pelo governo federal. “Para o Estado foi ruim porque diminuía os recursos que a gente imaginava que ia ter. Mas era uma tentativa de estímulo à economia”.

Paulo Garselaz, em um trabalho publicado na UFRGS – “Dívida Pública: Uma abordagem teórica, um relato histórico e o caso do Rio Grande do Sul” – aponta que com as rolagens consumindo quase todas as receitas da emissão de títulos e o crédito externo praticamente inacessível, o único caminho foi da dívida flutuante com altas taxas de juros e prazos reduzidos. “A relação Dívida Total/Receita Corrente Líquida, que no início da década era de 75,28% elevou-se gradativamente, até alcançar, no final da década, o índice de 356,52%, marca jamais alcançada até então”, escreve ele.

A Constituição de 1988 tentou aumentar a arrecadação incluindo serviços ao ICM, que passou a ser ICMS. “Não adiantou nada, porque a despesa continuou crescendo”, diz Faria.

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1990: Anos de renegociação e acordo

Nos anos 1990, a situação que já era de crise se agrava ainda mais. Em 1991, como lembra Rachel Duarte, na tentativa de frear o crescente endividamento dos estados, o Congresso Nacional estabeleceu que os saldos devedores deveriam ser refinanciados com os agentes financeiros. Na prática isso significou que governos deveriam tomar novos empréstimos junto a seus credores que cobrissem os anteriores. O governo federal proibiu ainda a emissão de novos títulos, o que desvalorizou aqueles já existentes e colocou os estados de vez nas mãos da política econômica da União.

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Foto: Guilherme Santos/Reprodução Museu Hipólito José da Costa

Para o economista Darcy Santos, o acúmulo de anos em déficit primário, na média de 15% da receita corrente líquida estourou neste ponto. “Toda a década de 1990 os juros foram muito altos. O governo federal afrouxava os controles de desligamento. Resumindo: déficit primário, afrouxamento dos controles e juros altos. Isso explica até 1998 [o aumento da dívida]”, afirma. No entanto, até aqui, a inflação ajudava a mascarar os efeitos da dívida.

“Com a inflação, o governo conseguia encontrar financiamentos de mecanismo inflacionário: atrasava pagamentos de funcionários, dava um reajuste um pouco abaixo, conseguia empurrar com a barriga a situação fiscal”, explica o economista e ex-presidente da FEE, Adalmir Marquetti.

Em 1994, a criação do Plano Real elevou os juros ainda mais, como medida do governo para controlar a inflação e segurar a taxa de câmbio. As dívidas públicas chegaram a aumentar em até duas vezes, sem que governos assumissem novos empréstimos, os juros colocaram estados no prego. Isso é confirmado no relatório da CPI da Dívida Pública, da Câmara dos Deputados, que afirma: “O comportamento das dívidas estaduais, antes de sua assunção pelo governo federal, foi afetado de maneira decisiva pela política de juros reais elevados implantada após o Plano Real e tornou inevitável um novo programa de refinanciamento, desta vez em caráter definitivo”.

No Rio Grande do Sul, o governo de Antônio Britto (PMDB) se financiava quase inteiramente no setor privado, onde as taxas eram ainda mais elevadas, segundo o economista Adalmir Marquetti. “Tinha um governo querendo fazer uma série de coisas e mesmo privatizando a dívida aumentou bastante”, explica ele. “Outro problema é que o governo Britto, em 1995, deu um aumento salário bastante elevado aos servidores. Deu aumento a partir de uma expectativa inflacionária que não se confirmou: a inflação foi muito mais baixa do que pensavam”. Sem que o Estado conseguisse bancar parte dos aumentos, os funcionários entraram na Justiça, com processos sendo cobrados até hoje pela chamada Lei Britto.

A situação era insustentável quando o governo federal de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) chegou com a “salvação”: o Programa de Apoio à Reestruturação e Ajuste Fiscal dos Estados. Um programa de federalização da dívida, conhecido como Acordo de 1998.  Através dele, a União adquiria a dívida mobiliária – títulos – dos estados por um contrato único, com juros de 6% ao ano a serem corrigidos através da tabela de IGP-DI (Índice Geral de Preços – Disponibilidade Interna). O contrato vinha com mais condições. “Vários governos estaduais no processo de renegociação, se comprometeram a fazer determinadas privatizações. A renegociação envolveu outras questões que implicaram a redução do papel do Estado na economia”, explica Marquetti.

Foto: Guilherme Santos/Sul21

Foto: Guilherme Santos/Reprodução Museu Hipólito José da Costa

Aqui, outras medidas acompanharam a renegociação assinada por Britto. O Programa de Demissões Voluntárias (PDV), por exemplo, foi implementado para diminuir a folha de pagamento do funcionalismo público. E as privatizações. “Vem a solução mágica das privatizações para resolver o problema e a dívida continuou crescendo. Cresceu muito no governo Britto porque é o período que caiu a inflação, caiu a receita. Como ele resolveu usar o dinheiro das privatizações em outras coisas – os incentivos fiscais da Ford e da GM vieram do dinheiro ganho com a CRT – a dívida foi aumentando”, conta Faria.

Marquetti afirma que a renegociação deixou o Estado “administrável”. “No momento ela foi importante, porque permitiu estabilizar a relação dívida-PIB. Naquele período deveria ser feito um acordo. A gente pode criticar os termos”, diz ele.

A situação mudou apenas um ano depois da assinatura do acordo: o IGP-DI, que no contrato era indexador da dívida, se descolou e seguiu aumentando, enquanto as taxa de juros baixaram. “Foi concedida uma alternativa para os estados, mas isso deixou um saldo por fora. Os resíduos [porcentagem da dívida que Estado não conseguia pagar] ficaram muito grandes e receberam de novo correção monetária e juros”, avalia Darcy Santos. “Ficava uma parcela de resíduos, esse resíduo ia para o saldo devedor, recebia de novo juros e reajuste pelo IGP-DI, que cresceu 38% da inflação. É por isso que se paga, se paga e não acaba nunca de pagar”, diz Santos.

O tema de uma nova renegociação ressurgiu. “Todo contrato tem que prever uma cláusula de equilíbrio econômico. Esse foi o problema”, defende o economista.


 2000: A dívida cobra juros

Apesar de estabilizar a dívida, o acordo de 1998 significou corte de investimentos em áreas como saúde, educação e segurança. Quando Olívio Dutra (PT) assumiu o governo, o RS ainda tinha uma parte do acordo por cumprir: a venda do banco do Estado, o Banrisul. Como o governo decidiu não seguir com a privatização, foi submetido a multa pesada pelo governo federal: “Acima dos 15,4% que já estávamos pagando”, lembrou Olívio Dutra em entrevista.

O governador passou então para a negociação com o Judiciário. “Fomos renegociar com o judiciário. Conseguimos unir os governadores de outros estados no Palácio Piratini e debatemos com o Ministério da Fazenda”, conta Olívio. O petista conseguiu manter o Banrisul e ainda reduziu a receita que era destinada para pagamento da dívida de 15,4% para 12,5%.

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Foto: Guilherme Santos/Reprodução Museu Hipólito José da Costa

Quatro anos depois de Olívio sair do governo, Yeda Crusius (PSDB) se elegeu com a pauta de chegar ao “déficit zero” da dívida, o que de fato aconteceu. No segundo ano de seu mandato, no entanto, estourou a crise econômica mundial de 2008 e a meta foi abandonada.

Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), sobre o acordo de 1998 dez anos depois, afirma que os estados do acordo que não promoveram ajuste fiscal, se tornaram reféns da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e do governo federal. O estudo aponta o Rio Grande do Sul como caso, afirmando que tem se mostrado “incapacidade de implantar administrações efetivas e eficientes”. “O Estado do Rio Grande do Sul, por exemplo, possui um elevado índice de autonomia fiscal, mas se mantém preso às limitações fiscais impostas pela LRF. É um caso típico de estado que não implantou um Programa de Ajuste Fiscal bem-sucedido e que sobrevive nos últimos 12 anos em crise financeira latente”, diz o documento.

No ano passado, governadores e prefeitos, entre eles o então governador Tarso Genro (PT),  conseguiram que o governo federal aceitasse renegociar a dívida. A proposta aprovada troca o IGP-DI, como indexador, para taxa Selic (Sistema Especial de Liquidação e de Custódia) ou IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo), o que se mantiver menor no período, e baixa os juros de 6¢ para 4% ao ano. Na prática, isso permite que o Estado tenha crédito no mercado para novos empréstimos. Resta a renegociação ser reconhecida pelo Ministério da Fazenda.

Os prefeitos Eduardo Paes (PMDB) e Fernando Haddad (PT), respectivamente de Rio de Janeiro e São Paulo, entraram com processos na Justiça contra a União exigindo que seja reconhecido nova correção para contas dos municípios.

“Essa dívida é um acúmulo de déficits, aí começa toda a questão. Como é que a gente vai gastar mais do que recebe? Vai se endividando”, afirma Cláudio Accurso destacando que é difícil manejar 40 anos de déficits orçamentários. “O ideal seria regredir essa negociação até a assinatura do contrato. Mas o governo federal não vai aceitar, senão os outros estados que já pagaram vão querer algum outro favor”, coloca Darcy Santos.

Para Adalmir Marquetti, enquanto o Estado não tratar de questões estruturais, todo o resto será “perfumaria”. “Eu tenho que buscar um mecanismo para resolver o problema da dívida junto ao governo federal e encontrar alguma forma de resolver o problema do pagamento de aposentadorias de funcionários públicos. Sem resolver essas questões, todas as outras questões serão perfumarias. Porque a gente precisa de R$ 10 bilhões por ano para fazer frente a esses pagamentos”, diz ele. “Se o governo resolve tocar alguma privatização que renda R$ 20 bilhões, esse valor seria suficiente para apenas dois anos e depois a situação voltaria a ficar ruim. Pior”.

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