Regulamentação da carreira de Historiador

Regulamentação da carreira de Historiador

 

Historiadores: regulamentação da carreira
desagrada profissionais da área

 

Preocupada com o Projeto de Lei 368/2009, que trata da regulamentação da carreira de historiador, a Sociedade Brasileira de História da Ciência (SBHC) divulgou, através de seu site, uma carta criticando alguns pontos da proposta. De acordo com representantes da entidade, fundada em 1983, o PL, já aprovado pelo plenário do Senado Federal, não representa o avanço desejado por pessoas do setor em uma antiga discussão sobre o assunto, nem contribui para o fortalecimento do exercício profissional do historiador.

Segundo o documento, o PL 368 apresenta alguns aspectos restritivos, que podem resultar em entraves para uma enorme parcela da comunidade de historiadores brasileiros, além de pontos vagos e imprecisos, que podem gerar insegurança e conflitos com outras categorias profissionais.

A presidente da SBHC, Márcia Regina Barros da Silva, que também é diretora do Centro de Apoio à Pesquisa Histórica da Universidade de São Paulo (USP), e o professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP, Thomás Haddad, membro da diretoria da Sociedade e que participou da elaboração da carta, explicaram com detalhes as principais discordâncias relativas à proposta e sugeriram o debate com outras entidades do setor e autoridades ligadas a órgãos do sistema nacional de educação e pesquisa científica para tentar uma solução.

Folha Dirigida - Caso o Projeto de Lei 368 seja aprovado, quais seriam suas principais consequências para a profissão de historiador?

Márcia Regina - As preocupações fundamentais da SBHC podem ser resumidas em dois pontos: em primeiro lugar, por sua própria constituição estrutural e histórica, a História da Ciência tem sido praticada, no Brasil e no resto do mundo, não só por portadores de diplomas em História, mas também por pesquisadores oriundos de campos como a Filosofia, a Sociologia, a Antropologia, a Educação e outros, além, é claro, das próprias áreas científicas e tecnológicas. Ao longo de anos de experiência, esses profissionais adquiriram plena competência e produzem trabalhos com todo o rigor esperado de qualquer outro historiador. Realizam pesquisas financiadas pelas comissões de História das agências governamentais de fomento, publicam seus resultados em revistas reconhecidas, ensinam História da Ciência nas universidades, incluindo cursos de graduação e pós-graduação em História, e orientam trabalhos em nível de mestrado e doutorado. Não queremos que esses historiadores de fato não o sejam igualmente de direito, de modo que não é suficiente tratá-los com condescendência, admitindo que "qualquer pessoa poderá continuar pesquisando o passado e escrevendo a seu respeito". Eles têm de ser plenamente reconhecidos, pela lei e pelos outros membros da comunidade, como legítimos historiadores, que é o que são. Em segundo lugar, estamos preocupados com as novas gerações de historiadores da ciência. Muitos de seus integrantes estão sendo formados, em nível de pós-graduação, em cursos interdisciplinares, em que disciplinas de História são componentes de cursos aprovados por órgãos competentes, como a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), e assim recebem treinamento plenamente compatível com o que se espera de todo historiador nos dias de hoje.


Como a Sociedade Brasileira de História da Ciência (SBHC) pretende agir em relação ao PL?

Márcia Regina - Já lançamos um manifesto em que detalhamos nossas preocupações e apresentamos algumas sugestões para sua superação. Estamos em contato com a Associação Nacional de História (Anpuh-Brasil), que mostrou grande sensibilidade em receber nossas demandas. No momento, estamos aguardando manifestação formal dessa associação. Acreditamos que tais discussões interessam também a outras sociedades ligadas à História de campos específicos, como a Sociedade Brasileira de História da Educação, a Sociedade Brasileira de História da Matemática e Associação Brasileira de Filosofia e História da Biologia. Temos toda a disposição para discutir o tema em profundidade com todos os atores envolvidos, principalmente a Anpuh, da qual vários membros da SBHC são também associados, mesmo aqueles que não possuem diplomas em História, e estamos iniciando contatos com parlamentares, ministros e autoridades ligadas a órgãos do sistema nacional de educação e pesquisa científica.


Uma das críticas é que o PL 368 restringe o exercício da profissão apenas aos portadores de diploma em História, deixando de fora pessoas de outras áreas, mas de notório saber e que atuam no setor há tempos. Qual seria o impacto desta proposta?

Thomás Haddad - Claro que não há risco de impedimento que se continue pesando sobre a História, afinal, como se disse, é claro que qualquer um poderá continuar produzindo análises históricas sobre diversos temas, mas devemos nos preocupar com possíveis exclusões muito concretas: por exemplo, não está claro se um historiador da ciência que não seja diplomado em História poderá, digamos, organizar uma exposição sobre antigos livros ou instrumentos científicos, ou se poderá coordenar a organização de um arquivo legado por um cientista ou, sobretudo, se poderá continuar lecionando História da Ciência em uma dada universidade - todas tarefas para as quais o historiador da ciência atuante está evidentemente mais capacitado do que o portador de um diploma em História que nunca tenha trabalhado na área. E o mesmo vale para os jovens, que ainda não possuem "notório saber" e são treinados em cursos de pós-graduação que não são exclusivos de História, e sim interdisciplinares: quais serão suas possibilidades de participação em concursos para a carreira universitária ou de pesquisa? Essas questões precisam ser claramente debatidas e equacionadas.


Na sua opinião, como fazer para reconhecer tais pessoas como historiadores?

Márcia Regina - A regulamentação de qualquer profissão deve ser sensível à própria constituição histórica do campo que se pretende circunscrever. Ou seja, se torna necessário que haja um mecanismo de transição gradual, que incorpore os profissionais já atuantes, e ao mesmo tempo estimule a desejada profissionalização das novas gerações, em um horizonte de médio prazo. Nesse sentido, devemos recordar que dois projetos de lei também visando à regulamentação da profissão de historiador estão correndo na Câmara dos Deputados, paralelamente ao PL 368 do Senado: o PL 3759/2004 e o PL 7321/2006, já aprovados pela Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público e pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. Ambos incluem um mecanismo muito importante na direção do reconhecimento que se pleitea: além dos portadores de diplomas, eles prevêem que profissionais comprovadamente atuantes como historiadores por pelo menos cinco anos antes da promulgação da lei também terão direito ao registro. É claro que aqui surge o problema de como determinar que uma pessoa "comprovadamente" atuou como historiador. A isso se soma a questão das novas gerações, jovens que ainda não possuem "notório saber", mas que são competentes e promissores historiadores da Ciência ou, se quisermos, da Arte, da Matemática, da Educação e assim por diante. O que se defende é que exista algum mecanismo de acreditação dos cursos de pós-graduação que não sejam especificamente de História, mas que ofereçam o rigoroso treinamento profissional esperado. Pois bem, a necessidade de avaliar se uma pessoa "comprovadamente" atua na área há mais de cinco anos, junto com a necessidade de acreditação desses cursos de pós-graduação, indicam que talvez seja necessário se pensar na criação de um conselho profissional ou equivalente, pois apenas a estrutura das Secretarias Regionais do Trabalho pode não dar conta dessas tarefas.


No ensino superior, não existe uma disciplina específica de História. Normalmente, vem atrelada a algum campo do saber, dependendo do curso. O fato de exigir diploma, impediria que muitos professores que hoje são considerados historiadores possam ministrar suas aulas. Este pode ser considerado um dos principais problemas do PL 368?

Thomás Haddad - De fato, existem muitas disciplinas de História atreladas a um campo, mas sobretudo a recortes cronológicos ou temáticos. Especificamente no caso da História da Ciência, via de regra existe uma disciplina com essa denominação, ou com determinadas variantes, em muitos cursos de graduação em História, mas também em cursos de Física, Química, Biologia, Geociências etc. Quem ministra esse tipo de disciplina nas universidades? Docentes que elas consideram capacitados para tanto, e a Constituição garante que as universidades tenham autonomia para decidir sobre isso. Uma capacidade comprovada geralmente por aprovação em concursos e análises de currículos. Muitos desses professores possuem algum diploma em História, mas outros não, e ainda assim são capacitados para ensinar História da Ciência. Temos todas as razões para crer que o mesmo deve valer para disciplinas de "História de" um tema específico, como Matemática, Educação, Filosofia, Arte e assim por diante. Por que impedir uma pessoa que porta diplomas apenas na área de Arquitetura, digamos, mas que comprovadamente leciona e pesquisa História da Arte, com todo o rigor esperado de qualquer outro historiador, de continuar ministrando a disciplina no nível superior? Eis por que a lei tem de prever o registro também de profissionais não-diplomados, mas comprovadamente competentes na área.


O documento também fala das atribuições dos historiadores. Quais são os principais problemas do PL 368 nesse sentido? Como solucionar essas questões?

Márcia Regina - Existem pelo menos dois problemas. O primeiro é relacionado ao emprego de termos muito vagos na definição de certas atribuições. O PL diz, por exemplo, que "entidades que prestam serviços em História" devem contratar historiadores, mas o que significa exatamente "prestar serviços em História"? Da mesma forma, os historiadores são considerados responsáveis, aparentemente exclusivos, por planejar, implantar, dirigir e assessorar "serviços de pesquisa histórica" ou de "informação histórica", e até por organizar exposições e eventos relativos a "temas de História". Ora, o que são esses "serviços"? Quando um tema se torna histórico? Uma exposição de pinturas do século XIX, por exemplo, é somente histórica ou também estética? Este último caso revela o outro problema do texto legislativo: algumas atribuições definidas aos historiadores parecem poder ser legitimamente reclamadas por outros profissionais, como um curador, crítico de arte ou museólogo, neste exemplo, mas também um arquivista ou um bibliotecário, em outros. Não temos uma solução pronta para superar essas dificuldades interpretativas do texto, exceto a continuidade do diálogo entre os diversos atores envolvidos, sobretudo a Anpuh.


Como o PL pode impactar na educação brasileira?

Thomás Haddad - No caso da educação básica, é evidentemente desejável que os professores de História tenham formação plena na área, em cursos de licenciatura, e essa é uma meta louvável. Não podemos esquecer, porém, dos milhares de docentes formados, por exemplo, em Geografia ou no antigo curso de Estudos Sociais, que há anos ensinam História, respaldados em decisões dos Conselhos Estaduais e Municipais de Educação, e que adquiriram experiência compatível para o ensino da disciplina. Mais uma vez, não se trata apenas de não exclui-los do sistema, o que é impossível e ilegal na prática, trata-se, acima de tudo, de reconhecê-los como formadores dignos do nome.


Fale um pouco sobre a SBHC. Como e quando foi sua criação, como funciona e quais são seus objetivos?

Márcia Regina - A SBHC foi fundada em 1983 por um grupo de historiadores da ciência e de entusiastas do assunto, em geral cientistas interessados no tema, e que, mesmo que não tenham se profissionalizado como pesquisadores da área, tiveram um papel fundamental em sua implantação. A entidade representa a institucionalização dessa área de conhecimento no Brasil. Promove a cada dois anos um encontro nacional, que hoje soma 13 edições realizadas, a última contando com cerca de 800 participantes. Esses encontros incluem a apresentação de pesquisas acadêmicas, mas também contempla atividades voltadas à formação continuada de professores e a estudantes, além de discussões sobre políticas científicas e educacionais relevantes para a nossa comunidade. Ao longo dos anos, a SBHC destacou-se no apoio ao desenvolvimento de pesquisas na área, favorecendo também a sua divulgação, através do periódico semestral que edita desde 1985, a Revista Brasileira de História da Ciência, e na contribuição que teve para o debate em torno da formação de pesquisadores. A entidade também admite interessados no assunto que não são necessariamente pesquisadores profissionais, mas têm o desejo de acompanhar discussões em torno da História da Ciência em suas várias especialidades.

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