A difícil tarefa de definir quem é negro no Brasil

A difícil tarefa de definir quem é negro no Brasil

A difícil tarefa de definir quem é negro no Brasil
Kabengele Munanga 

Para o antropólogo Kabengele Munanga, professor-titular da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, não é fácil definir quem é negro no Brasil. Em entrevista concedida a Estudos Avançados, ele classifica a questão como “problemática”, sobretudo quando se discutem políticas de ação afirmativa, como cotas para negros em universidades públicas. “Com os estudos da genética, por meio da biologia molecular, mostrando que muitos brasileiros aparentemente brancos trazem marcadores genéticos africanos, cada um pode se dizer um afro-descendente. Trata-se de uma decisão política”, afirma.

Kabengele Munanga é atualmente vice-diretor do Centro de Estudos Africanos e do Museu de Arte Contemporânea da USP. Nasceu em 19 de novembro de 1942 no antigo Zaire, onde recebeu sua educação primária e secundária. Sua educação superior ocorreu em seu país natal, de 1964 a 1969. Foi o primeiro antropólogo formado na então Université Officielle du Congo, em Ciências Sociais (Antropologia Social e Cultural). No mesmo ano em que se graduou, recebeu uma bolsa do governo belga, como pesquisador no Museu Real da África Central, em Tervuren e como aluno do programa de pós-graduação na Universidade Católica de Louvain, na Bélgica. Essa bolsa foi interrompida em 1971, por questões políticas, antes da conclusão de seu doutorado.

Em julho de 1975, veio ao Brasil com uma bolsa da USP, a fim de continuar seus estudos. Defendeu sua tese em 1977. No mesmo ano, voltou a seu país, mas não conseguiu permanecer lá por muito tempo. Regressou ao Brasil em 1979, para trabalhar na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Em 1980, iniciou a segunda fase de sua carreira na USP. Em 2002, o governo brasileiro concedeu a Kabengele Munanga o diploma de sua admissão na Ordem do Mérito Cultural, na classe de Comendador.

Participaram da entrevista com Kabengele Munanga, o editor de Estudos Avançados, revista do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP), professor Alfredo Bosi, e o editor-assistente, jornalista Dario Luis Borelli.

 

Estudos Avançados – Quem é negro no Brasil? É um problema de identidade ou de denominação?

Kabengele Munanga – Parece simples definir quem é negro no Brasil. Mas, num país que desenvolveu o desejo de branqueamento, não é fácil apresentar uma definição de quem é negro ou não. Há pessoas negras que introjetaram o ideal de branqueamento e não se consideram como negras. Assim, a questão da identidade do negro é um processo doloroso. Os conceitos de negro e de branco têm um fundamento etno-semântico, político e ideológico, mas não um conteúdo biológico. Politicamente, os que atuam nos movimentos negros organizados qualificam como negra qualquer pessoa que tenha essa aparência. É uma qualificação política que se aproxima da definição norte-americana. Nos EUA não existe pardo, mulato ou mestiço e qualquer descendente de negro pode simplesmente se apresentar como negro. Portanto, por mais que tenha uma aparência de branco, a pessoa pode se declarar como negro. No contexto atual, no Brasil a questão é problemática, porque, quando se colocam em foco políticas de ações afirmativas – cotas, por exemplo –, o conceito de negro torna-se complexo. Entra em jogo também o conceito de afro-descendente, forjado pelos próprios negros na busca da unidade com os mestiços. Com os estudos da genética, por meio da biologia molecular, mostrando que muitos brasileiros aparentemente brancos trazem marcadores genéticos africanos, cada um pode se dizer um afro-descendente. Trata-se de uma decisão política. Se um garoto, aparentemente branco, declara-se como negro e reivindicar seus direitos, num caso relacionado com as cotas, não há como contestar. O único jeito é submeter essa pessoa a um teste de DNA. Porém, isso não é aconselhável, porque, seguindo por tal caminho, todos os brasileiros deverão fazer testes. E o mesmo sucederia com afro-descendentes que têm marcadores genéticos europeus, porque muitos de nossos mestiços são euro-descendentes.

Estudos Avançados – Em face da concessão de cotas para negros, ou para outros segmentos da população que não tiveram a mesma condição de cursar escolas da classe média ou alta, qual a sua posição?

Kabengele Munanga – Por ocasião dos trezentos anos da morte de Zumbi dos Palmares, em 1995, começamos a discutir essa questão na USP, numa comissão criada pela reitoria. Os movimentos negros, principalmente o Núcleo da Consciência Negra, pleitearam o estabelecimento de cotas em nossa universidade. Contudo, afirmei que não poderíamos discutir o sistema de cotas sem antes fazer uma pesquisa preliminar em países que já têm experiência de cotas, como os EUA, o Canadá, a Austrália ou a Índia. Naquela ocasião, apresentei essa proposta, mas ela não foi levada adiante. No entanto, na base de um levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) conclui-se que realmente há uma grande defasagem na escolaridade dos negros nas universidades brasileiras. Infelizmente, porém, começamos a enfrentar a questão pelas cotas, a partir da decisão do governador Anthony Garotinho, do Rio de Janeiro, que provocou uma confusão muito grande, quando estabeleceu cotas nas universidades estaduais. No entanto, mesmo num país com tantas desigualdades, as políticas universalistas não resolvem o problema do negro. Para isso precisamos formular políticas específicas contra as desigualdades, mas o caminho não deve ser necessariamente por meio de cotas. Essa discussão, todavia, é importante, porque antes nem se tocava no assunto. Escutei outro dia algo muito positivo quando alguém dizia que deveria haver cotas para pobres. Ora, antes ninguém apresentou esse ponto de vista. O que mais me surpreende é que jamais o movimento negro se disse contrário a cotas para brancos pobres. A questão ainda está mal discutida, sendo formulada num tom passional, tanto pelos negros como pelos intelectuais. A questão não é a existência ou não das cotas. O fundamental é aumentar o contingente negro no ensino superior de boa qualidade, descobrindo os caminhos para que isso aconteça. Para mim, as cotas são uma medida transitória, para acelerar o processo. No entanto, julgo que não somente os negros, mas também os brancos pobres têm o direito às cotas. Se as cotas forem adotadas, devem ser cruzados critérios econômicos com critérios étnicos. Porque meus filhos não precisam de cotas, assim como outros negros da classe média.

Estudos Avançados – O senhor iniciou suas declarações dando uma opinião contra as cotas, mas agora aponta para o problema da urgência. As cotas aparecem como uma medida de urgência?

Kabengele Munanga – Sim. Ao menos que o país diga que tem hoje uma outra proposta emergencial melhor, que não abra mão de uma política universalista com vistas ao aperfeiçoamento do nível do ensino básico. É bom lembrar que a escola pública já apresentou melhor qualidade, mas o negro e o pobre não entravam nela.

Estudos Avançados – O senhor acha que em médio prazo a alternativa seria uma transformação mais profunda do ensino básico e secundário? Um número considerável de alunos negros faz o segundo grau em escolas públicas. Não falo deles como negros, mas sim como pobres. Será que as cotas não resolvem o problema porque o enfrentam no fim da linha, em vez de atacá-lo no começo?

Kabengele Munanga – Sim. Porém, vivo aqui há 28 anos e desde que cheguei escuto esse discurso. Mas nunca vi luta política e social alguma para a melhoria da escola pública. Só há o discurso. Mas o que fazer com a vítima? Esperar que isso aconteça por milagre, ou pressionar a sociedade através de uma proposta: como pelo menos cuidar da escola pública? A dúvida que tenho é a seguinte: num país onde a privatização do ensino é cada vez maior e no qual o lobby das escolas particulares é tão forte, só posso antever uma melhoria a longo prazo. Lembro-me de que o primeiro processo contra as propostas de cotas no Rio de Janeiro veio do sindicato das escolas privadas. Devido a essa tendência para a privatização das escolas públicas, não acredito numa rápida melhoria delas. A desigualdade social que existe há quatrocentos anos não pode ser resolvida por meio de políticas universalistas. É preciso, portanto, traçar políticas específicas para se encontrar uma solução. A palavra “social” incomoda-me muito. Quando dizem que a questão do negro é uma questão social, o que quer dizer “social”? As relações de gênero são uma questão social; a discriminação contra o portador de deficiência é uma questão social; a discriminação contra o negro é uma questão social. Ora, o social tem nome e endereço. Não podemos diluir, retirar o nome, a religião e o sexo e aplicar uma solução química. O problema social tem de ser atacado especificamente. A discriminação racial precisa ser urgentemente enfrentada. Nós, negros, também temos problemas de alienação de nossa personalidade. Muitas vezes trabalhamos o problema na ponta do iceberg que é visível. Mas a base desse iceberg deixa de ser trabalhada. Estou aqui, como disse, há 28 anos. Vou a restaurantes utilizados pela classe média e a centros de alimentação nos shoppings. Encontro famílias brancas comendo (homem, mulher e filhos), mas dificilmente estão ali famílias negras. Há uma classe média negra, mas que se autodiscrimina e que é também discriminada. Desafio vocês a me dizerem que encontraram quatro famílias negras em cinco restaurantes de classe média em São Paulo. Vejamos o meu caso: em meu segundo casamento (que é interracial) percebia aquelas “olhadas” – mulher branca, filhos negros do primeiro casamento e filhos mestiços do segundo. Ninguém me expulsava desses lugares, mas eu via as “olhadas”...

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Dicas de leitura e filme para a Semana da Consciência Negra

kabenge

Na Semana da Consciência Negra, o CPERS/Sindicato apresenta uma sugestão de filme (curta), com trailer disponibilizado no link multimídia, e um texto, publicado na sessão de artigos.

O texto trata-se de uma entrevista com o antropólogo Kabengele Munanga (foto), feita pela revista Estudos Avançados, do Instituto de Estudos Avançados da USP.

O filme é o curta-metragem "Memórias da Chibata, de Marcos Manhães Marins,
e foi feito em comemoração aos cem anos em que o Brasil não faz mais uso da chibata, desde a revolta dos marinheiros em 1910, liderada por João Cândido Felisberto.

Nas redes sociais, o filme pode ser encontrado nos seguintes endereços:http://www.facebook.com/chibataofilme; http://www.twitter.com/chibataofilme. Também pode ser assistido em http://www.chibata.com.br.

http://www.cpers.org.br/index.php?&menu=1&cd_noticia=3390






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