Vinte anos da LDB
Vinte anos depois, LDB permanece à espera de ser totalmente implementada
Lei maior da educação foi sancionada em 1996
Grandes princípios norteadores ou detalhamento de objetivos e atribuições para o desenvolvimento da educação nacional. As tensões entre essas duas vias possíveis pautaram as discussões sobre a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (Lei 9394/96), sancionada em 20 de dezembro de 1996 pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, desde antes de o texto chegar ao Congresso Nacional. Hoje, 20 anos depois de aprovada a terceira LDB brasileira (há quem considere que seja a segunda, sucedendo apenas à original, de 1961, sem dar o mesmo status à lei 5.692, de 1971), o texto legal carrega virtudes e defeitos muito próximos aos da própria educação brasileira.
Em linhas gerais, define bem alguns grandes rumos, prevendo autonomia para escolas e sistemas. Mas, por falta de implementação ou por intervenção posterior, foi, para o mal e para o bem, ganhando complementos os mais variados. Tanto o texto original como o resultante das intervenções posteriores mostram que, para além da capacidade de produzir boas leis e documentos, falta a capacidade de dar vida na ponta ao que se concebe como estratégia, sejam aquelas oriundas dos gabinetes ou as resultantes de grandes articulações sociais, como o Plano Nacional de Educação.
Para o educador e hoje consultor Francisco Aparecido Cordão, membro da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação entre 1998 e 2006, a principal contribuição da LDB foi mudar a visão educacional subordinando as atividades de ensino à aprendizagem. “Antes, a lei estava focada no ensino, aí passou para os resultados de aprendizagem”, ressalta Cordão.
Para ele, a lei pressupõe um docente participativo e que faça suas escolhas educacionais. “O artigo 13, que trata das incumbências dos docentes, diz, em seu primeiro item, que ele deve participar da elaboração da proposta pedagógica. O segundo ponto é fazer seu plano de trabalho, de acordo com a proposta da escola. O terceiro é zelar pela aprendizagem do aluno, o quarto é estabelecer estratégias de recuperação e só no quinto ponto aparece ‘ministrar aulas’”, diz, para exemplificar o papel do professor como o de um educador que atua em várias frentes para garantir a aprendizagem.
Articulação de docentes
Mas muito antes de sua data de nascimento oficial, a Lei de Diretrizes e Bases já estava sendo gestada. Ainda durante as discussões que culminariam na Constituição de 1988, um grupo de educadores começou a discutir suas propostas para a futura nova lei educacional.
“Tradicionalmente, as leis educacionais do Brasil, desde a época da colônia, sempre foram feitas por iniciativa do poder executivo. A atual tem a peculiaridade de ter nascido da sociedade civil, de um movimento dos educadores”, diz Dermeval Saviani, que participou da elaboração do anteprojeto da LDB e é autor do livro A nova lei da educação: trajetória, limites e perspectivas (Editora Autores Associados).
“Antes da promulgação da Constituição já sabíamos do dispositivo que manteria com a União a prerrogativa de organizar a educação. Portanto, fizemos uma mobilização para já começar a trabalhar o tema”, relata.
As propostas dos professores viraram projeto de lei amplamente debatido no Congresso durante anos. Foi aprovado pela Câmara, ainda que após sofrer várias modificações. Mas, com a eleição de Fernando Henrique Cardoso em 1994 e sua posse no ano seguinte, o processo parou. “O novo governo entendeu que a proposta que tramitou iria engessar a educação, pois trazia definições com muita precisão. Foi feita uma manobra para que o texto voltasse à Comissão de Constituição e Justiça e, então, o deputado Darcy Ribeiro (PDT/RJ) apresentou um substitutivo, que deixou de incorporar vários aspectos sugeridos pela mobilização dos professores”, relata Saviani, que é professor emérito da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Na verdade, houve uma longa série de atritos regimentais e apresentação de substitutivos e projetos na Câmara e no Senado desde a apresentação do primeiro projeto, o 1.258, de 1988, pelo deputado Octávio Elísio (PSDB/MG).
Por fim, após longa tramitação, o substitutivo de Darcy Ribeiro acabou aprovado pelas duas casas do Legislativo – Câmara e Senado – e foi promulgado pelo presidente em dezembro de 1996, tornando-se assim a lei no 9.394, que há 20 anos estabelece as diretrizes e bases para a educação nacional.
Debora Mazza, diretora da Faculdade de Educação da Unicamp, também se lembra da frustração pelo fato de o texto aprovado não ter sido aquele tão amplamente discutido pelos profissionais da educação em congressos, simpósios e seminários e depois pelos congressistas. “Dentro do clima de redemocratização, existia uma forte expectativa de que o texto discutido pelo Fórum de Educação seria a base para a lei. Entretanto, a LDB tem suas virtudes. Apesar dos conflitos, ainda vejo virtudes na lei”, diz.
“Como era um texto bem aberto, a gente entendeu que dava para fazer oposição à visão neoliberal sem mudar a lei”, afirma Saviani. Além de “mais genérica”, Saviani diz que a LDB permitiu de certa forma que o governo federal se “desresponsabilizasse” pela educação. “A União ficou encarregada da avaliação de toda a educação, mas não foi posta uma prioridade para que mantivesse o ensino superior e as escolas técnicas”, diz.
Democratização da educação
Entre os pontos mais positivos, Debora destaca o artigo 3o. “É um grande avanço. Defende os princípios da educação brasileira, aonde queremos chegar, algo que fundamenta nossas práticas: igualdade de condições, liberdade para aprender, ensinar, pesquisar, pluralismo, tolerância, valorização dos profissionais da educação, gestão democrática”, cita.
A professora também elogia a redação que trata dos padrões mínimos de qualidade, “definidos como a variedade e quantidade mínimas, por aluno, de insumos indispensáveis ao desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem”. Outro ponto bastante benéfico, segundo Debora, é o fato de a LDB classificar a educação como “direito público e subjetivo”. “Foi a primeira vez que a educação foi caracterizada assim numa lei brasileira: é um direito de todos e de cada um. Isso significa que eu posso reclamar para mim e para os meus filhos o direito à vaga e à qualidade”, afirma.
Também foi inédita a preocupação com a educação dos povos indígenas, para a qual a LDB dedica dois artigos. “O texto reconhece que o português não é a língua materna para alguns grupos e garante uma educação bilíngue. Temos mais de 200 línguas indígenas em nosso território. A lei olha por essa perspectiva ao dizer que eles têm o direito à educação, e uma educação bilíngue”, avalia a docente da Unicamp. Além da língua, a lei determina ainda o respeito aos “processos próprios de aprendizagem” desses povos.
Para João Cardoso Palma Filho, professor da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), a lei ajudou a promover a inclusão de alunos nos sistemas público e privado. “Hoje, a educação está praticamente universalizada no ensino fundamental e, apesar do que ainda falta, avançou no ensino médio e na educação infantil, que passou a integrar a educação básica”, destaca.
Para o educador, a lei tem sido positiva nestes 20 anos, pois vem sendo aperfeiçoada. “Quando foi aprovada, ainda faltava muito. Mas ela sofreu mais de 30 alterações nesse período”, lembra.
Sequência de alterações
Nem todas as mudanças foram consensuais. Menos de um ano depois de promulgada, a lei recebeu sua primeira emenda, alterando artigo que previa o ensino religioso “sem ônus para os cofres públicos”. Segundo Saviani, essa modificação se deu, sobretudo, por lobby da Igreja Católica. A ideia original era que as organizações religiosas deveriam se organizar para chegar a uma oferta múltipla; e os estudantes poderiam escolher cursar ou não o ensino religioso que lhes fosse oferecido.
Uma mexida aparentemente pequena no texto representou “um grande retrocesso”, avalia Salomão Ximenes, especialista em direito público e professor da Universidade Federal do ABC (UFABC). Além da retirada do termo “sem ônus”, o texto passou a definir o ensino religioso como “parte integrante da formação básica do cidadão”. “A questão está sendo discutida hoje no Superior Tribunal Federal (STF), porque vai contra a Constituição. É um contrassenso isso existir num estado laico”, diz.
Outras alterações significativas demoraram um pouco mais a acontecer. Uma das mais importantes foi a inclusão da obrigatoriedade do estudo da história e cultura afro-brasileira (em 2003) e dos povos indígenas (em 2008). Embora ainda esteja por se consolidar, estabelece novos princípios, como lembra Ximenes. “Não é detalhe: trata-se de uma mudança ampla na concepção curricular, que visa trazer um pluralismo. A história deixa de ser contada segundo o padrão europeu, branco, hegemônico. Essa mudança radical de visão, contudo, ainda está por ser implementada, pois depende das secretarias, da formação dos professores.”
Em 2006, uma emenda aumentou em um ano a duração do ensino fundamental, fazendo as crianças ingressarem na etapa aos 6 anos de idade. A motivação da mudança, porém, não se deu por preocupações pedagógicas, mas por questões de financiamento, na avaliação de Saviani: “A emenda veio por pressão dos municípios, para que os alunos de 6 anos pudessem entrar na faixa dos recursos do Fundef (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério). Mas, um ano depois, o Fundef foi alterado para Fundeb (Fundo da Educação Básica), então os recursos podiam ser usados na educação infantil. Mexeu-se em algo que não precisava, fez-se uma confusão desnecessária”. A crítica, no entanto, é questionável. Vários outros sistemas, como o argentino, por exemplo, tinham já mais anos de escolaridade obrigatória, o que ajuda a aumentar a média de anos estudados pela população e, por consequência, na redução das desigualdades sociais.
Outras mudanças não trouxeram problemas ou confusão. Uma mudança vista como positiva para grande parte dos educadores veio em 2008, quando foram modificados vários pontos em relação ao ensino técnico, profissional e tecnológico. “Foi uma mudança importante, porque antes a LDB separava o ensino médio geral do técnico, algo que era visto como um retrocesso”, diz o mesmo Saviani.
Por fim, a última grande mudança, de 2013, é elogiada quase de forma unânime: a ampliação das etapas em que o ensino é obrigatório, que passou a incluir, além do fundamental, o ensino médio e a pré-escola, para crianças com 4 e 5 anos. A mudança decorre da Emenda Constitucional 59, de 2009, e garante a educação “básica obrigatória e gratuita” dos 4 aos 17 anos de idade.
Distorções no curso
Desde sua versão original, a LDB permite a coexistência dos sistemas públicos e particulares de ensino, de um lado garantindo a gratuidade do ensino para todos os estudantes, de outro, permitindo a operação de escolas privadas, para aqueles que tiverem condições, mas determinando que estas devem se “autofinanciar”. “É assim que deve ocorrer em um país democrático, com liberdade. Mas cabe ao Estado garantir a escola de qualidade a todos que não têm condições de ver na educação uma mercadoria”, diz Debora, da Unicamp. Entretanto, ela destaca que não é bem isso que ocorre no dia a dia.
Além dos programas para o ensino superior, como as bolsas do ProUni e os financiamentos do Fies, que injetam dinheiro público em instituições particulares, há também o Pronatec em nível médio e parcerias com diversas ONGs em nível fundamental e infantil, que prestam serviços que deveriam ser oferecidos pelo Estado. “Ainda que seja uma entidade sem fins lucrativos – e muitas vezes não é – a iniciativa privada nunca será um bem de todos. Você transforma um direito numa mercadoria, que fica sujeita a questões do mercado”, afirma. Se um dia não for mais interessante, uma ONG pode simplesmente cancelar o contrato e deixar de oferecer o serviço.
Se confirmada, a reforma do ensino médio será a maior alteração na LDB nesses 20 anos. “É a maior mudança, tanto pela extensão, quanto por ser via Medida Provisória”, diz Ximenes, da UFABC. Para ele, não era necessária qualquer MP para dar mais flexibilidade à etapa: “A LDB já prevê a flexibilidade, oferta diferenciada, organizações pedagógicas alternativas, classes multisseriadas”.
O que falta fazer
Ao mesmo tempo que considera a flexibilização do ensino médio prevista na LDB, Ximenes acredita que faltam na legislação dois pontos cruciais, que deveriam ser inseridos no texto: uma melhor organização do sistema e a determinação da forma de financiamento. “A falta de definições adequadas para a organização do sistema foi uma das principais derrotas em relação ao que o grupo de educadores pretendia originalmente. A LDB organiza as modalidades e etapas, divide as atribuições dessas instâncias, mas não trata da articulação. Deveriam ser tema da própria lei questões como o papel dos conselhos, fóruns”, explica.
Segundo ele, essa falha já provocou diversos problemas – e vai continuar provocando. “Ficou mal desenhado do ponto de vista da relação administrativa. Um dos problemas é que o papel dos conselhos de educação fica indefinido. Já tivemos resistências para a aplicação de resoluções do Conselho Nacional”, cita Ximenes.
O outro tema que caminhou, mas parece ter ficado pela metade, é o financiamento, alvo de polêmicas até hoje. Palma Filho lembra que foi na esteira da LDB que foram criados os fundos, primeiro o Fundef e depois o Fundeb. “Era uma reivindicação forte na década de 70, mas que já havia sido pedida no Manifesto dos Pioneiros, em 1932”, recorda. Porém ressalva que a meta aprovada pelo Plano Nacional de Educação de chegar a 10% do PIB em 2024 já foi comprometida pela crise e pelo amargo remédio da PEC 241, que limita gastos. “Por 20 anos, se houver aumento do PIB, esse aumento não vai beneficiar a educação”, sentencia.
Mas há outros aspectos relativos ao financiamento. Ximenes lembra que o Custo Aluno-Qualidade já estava previsto. O texto fala em um “custo mínimo por aluno capaz de assegurar ensino de qualidade”, mas não determina como ele deveria ser calculado. “No ano seguinte foi criado o Fundef, com outra fórmula de cálculo, outra diretriz.”
Para o especialista em direito educacional, o problema é que a LDB não conseguiu se consolidar como a lei orgânica da educação, que define todas as bases e diretrizes da área de atuação. “É limitada, então a legislação fica fragmentada, precisa de leis complementares”, afirma Ximenes. Para ele, a simples existência do Plano Nacional de Educação é uma amostra de como a LDB é incompleta.
Para Saviani, o grande problema da legislação educacional brasileira são os prazos sempre em expansão. A “progressiva” expansão do ensino médio até hoje não alcançou a universalização. “Primeiro havia um prazo de 10 anos. Depois, como não ia ser cumprido, foi estendido. Agora o Plano Nacional de Educação jogou para 2024. A LDB é importante porque a criação de um direito justifica sua reivindicação. Mas, se continuarmos nesse ritmo, vamos chegar ao fim do século sem conseguir universalizar a educação básica, coisa que vários países vizinhos já conseguiram no final do século passado”, critica.
Além de não ter completado a universalização do ensino básico, o país ainda está em dívida com a profissionalização do magistério, pois, diferentemente do que determina a lei, ainda há milhares de professores sem formação adequada.
Embora muitas das determinações não tenham saído do papel depois de 20 anos, é bom que elas existam para pautar os esforços atuais, defendem os especialistas. “A lei é uma dimensão do real, ela promove o sonho, nos dá base para a construção de um mundo melhor. A lei espelha o nível de maturidade de uma sociedade e como ela almeja um futuro melhor”, avalia Debora Mazza, da Unicamp.
Retalhos
Quando de sua tramitação no Congresso, Darcy Ribeiro comparou a LDB a uma colcha de retalhos. Em sua analogia, disse que um amontoado de retalhos não serviria para nada, mas que uma colcha artesanal poderia promover grandes mudanças na educação, desde que tecida com linhas mestras articuladas e coerentes.
Debora Mazza concorda que a LDB é uma colcha de retalhos, mas diz que isso ocorre porque ela é um reflexo dos conflitos e contradições da sociedade. “Ainda que imperfeita, foi construída numa aliança democrática, num contexto em que os partidos políticos estavam empenhados, em que todos viam que a ditadura tinha empobrecido o país. A aproximação entre o legal e o real deve inspirar nosso desejo de luta”, diz a educadora.
É mais ou menos o que pensa o ex-conselheiro do CNE Francisco Cordão. Para ele, a LDB continua atual, pronta a enfrentar os desafios do século 21. “Não é necessária mais nenhuma alteração na lei. O que o país precisa é do compromisso ético de assumir a educação como prioridade absoluta – e não só os educadores, mas a sociedade: empresários, trabalhadores, políticos, estudantes. O que precisa mudar hoje é a realidade, não a lei”, diz categórico.
A situação configura um mistério a ser entendido, e não só no campo da educação: no Brasil, o empenho para a consecução de leis é enormemente desproporcional à disposição para colocá-las em prática. Das duas, uma: ou as leis brigam com a realidade, ou os esforços demandados para criá-las têm absorvido toda a capacidade futura para implantá-las. Romper esse dualismo imobilizador é a chave para o exercício da tão desejada autonomia.
A história da LDB
Exatos 35 anos antes de o presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB/SP) sancionar a atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, João Goulart (PTB/RS), então recém-alçado à presidência do país sob o arranjo do parlamentarismo, promulgava a primeira LDB brasileira. A assinatura de Goulart saiu estampada na edição de 21 de dezembro de 1961 do Diário Oficial da União, mais de 13 anos após a apresentação do primeiro projeto da lei educacional ao parlamento brasileiro. Nesse longo intervalo entre a apresentação do anteprojeto enviado à Câmara Federal em outubro de 1948 pelo então ministro da Educação, Clemente Mariani (UDN/MG), e sua aprovação, nove diferentes cidadãos sentaram-se na cadeira de presidente da República, seis deles efetivos e três interinos.
A história dessa longa tramitação revela facetas e tensões não só da educação nacional, mas do Brasil como um todo. Em 1946, com o fim da 2ª Guerra e a queda da ditadura Vargas, a eleição de Eurico Gaspar Dutra (PSD) e a elaboração de uma nova Constituição Federal, o país tentava reorganizar-se. Para tanto, a Constituição previra a elaboração de uma lei que norteasse a educação nacional. Um dos dois ministros da UDN, que fora derrotada pela aliança entre PSD e o PTB de Vargas na eleição à presidência, Mariani convocou uma comissão de notáveis para a elaboração do anteprojeto de diretrizes e bases da educação.
Como registra Dermeval Saviani no capítulo 9 (Predominância da pedagogia nova – 1947-1961) de seu livro História das ideias pedagógicas no Brasil (Autores Associados, 2007), os artífices do Manifesto da Escola Nova, de 1932, predominavam na comissão de elaboração do anteprojeto. Lourenço Filho era o presidente; Almeida Júnior, o encarregado da subcomissão do ensino primário; Fernando de Azevedo presidia a subcomissão do ensino médio e Anísio Teixeira, “também convidado, não pôde integrar a Comissão, mas colaborou com sugestões”. Pedro Calmon, então reitor da Universidade do Brasil (futura UFRJ), presidiu a subcomissão do ensino superior.
Como frisa Saviani, a maioria dos 16 membros da comissão pendia para o lado dos escolanovistas. Mas havia dois representantes dos educadores católicos, Alceu Amoroso Lima e padre Leonel Franca. Mais tarde, na segunda metade dos anos 50, seriam os católicos, aliados ao deputado Carlos Lacerda (ironicamente, da própria UDN), os grandes opositores das ideias preconizadas por Almeida Júnior, Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo e vários outros educadores brasileiros de correntes diversas, entre eles o futuro presidente FHC.
O parecer Capanema
Num primeiro momento, o projeto acabou sendo obstruído por Gustavo Capanema, um dos mais longevos ministros da Educação da história republicana, que ficou no cargo 8 anos sob Getúlio Vargas. Como a proposta relatada por Almeida Júnior defendia a descentralização de atribuições, conferindo a oferta da educação pública a estados e municípios e deixando a União com função apenas supletiva e regulatória, Capanema, relator do anteprojeto, acabou por recomendar e conseguir seu arquivamento.
O ex-ministro, defensor do legado educacional da era Vargas, momento em que muitas das ideais do movimento da Escola Nova haviam sido efetivamente introduzidas no país, lutou para que essa imagem histórica não fosse destruída e usada como símbolo por adversários políticos.
Reapresentado dois anos depois, só foi aprovado pela Comissão de Educação e Cultura da Câmera Federal em novembro de 1956. Poucos dias antes, um discurso do padre e deputado Fonseca e Silva, de Goiás, desencadearia uma das maiores disputas educacionais do país. Ele investe contra o projeto e contra as figuras de Anísio Teixeira e de Almeida Júnior, acusando-os de serem contrários à oferta de ensino pelas escolas privadas religiosas. Para tanto, não se priva de associar o projeto e a figura do filósofo e educador americano John Dewey, inspiração intelectual de Teixeira, ao comunismo que estaria querendo apoderar-se da educação nacional. Versão mais antiga do mesmo estratagema utilizado em diversos outros momentos da história nacional.
Como é comum em disputas dessa ordem, vale menos o que o adversário diz do que a imagem que nele se quer pespegar. Assim, passou-se a bradar que os defensores do projeto queriam instituir o monopólio estatal na educação. Com aspirações políticas maiores, o ex-comunista Carlos Lacerda aproveitou a oportunidade e, em novembro de 1958, apresentou um substitutivo ao projeto, seguido de outro em janeiro de 59, que ficariam conhecidos pelo nome de “Substitutivo Lacerda”.
Orador temido, Lacerda passou a propugnar a prevalência do “direito inalienável e imprescritível da família” de escolher a educação dos filhos, como relata o falecido professor da Faculdade de Educação da USP José Mário Pires Azanha em seu artigo “Roque Spencer Maciel de Barros, defensor da escola pública” (revista Educação e Pesquisa, 1999).
Um dos articuladores do movimento de defesa da escola pública, Barros ajudou a desconstruir o discurso de Lacerda, mostrando que, sob a fachada da visão liberal, havia mais oportunismo do que fundamento filosófico, como bem relatado no artigo de Azanha.
Assim, três grupos distintos, como identifica Saviani, juntaram-se para defender a oferta de educação pública: os “liberais-idealistas”, grupo que tinha como epicentro o jornal O Estado de S. Paulo, instituição-chave para a fundação da Universidade de São Paulo; os “liberais-pragmatistas”, os históricos educadores da Escola Nova (decisivos com a apresentação do manifesto “Mais uma vez convocados”, documento aglutinador apresentado por Fernando de Azevedo em 1959); e a corrente de “tendência socialista”, capitaneada pelo sociólogo Florestan Fernandes, também da USP.
Juntas, as correntes conseguiram aquela que talvez tenha sido, em proporção, a maior articulação social em defesa da escola pública. O texto final da LDB foi, afinal, um condensado possível entre a proposta inicial e os filtros interpostos pela representação do Congresso Nacional.