Viajando para o caos

Viajando para o caos

‘Viajando para o caos’: ataque a professora evidencia problema da violência em escolas

Escola está localizada no bairro Glória, zona Sul de Porto Alegre | Foto: Divulgação

 Escola Dom Pedro I, localizada no bairro Glória, foi palco de agressão a professora | Foto: Divulgação

Luís Eduardo Gomes

Na última sexta-feira (19), a  Escola Estadual de Ensino Fundamental Dom Pedro vivenciou um episódio de violência contra uma professora. Após solicitar a presença de um familiar do aluno, que está nas séries iniciais, para falar sobre o aproveitamento do menino durante as aulas, a educadora foi agredida por uma jovem de 20 anos, irmã do estudante.

“Ela não deu nem chance de conversa e já puxou a professora pelos cabelos, deu um soco no rosto e, quando ela caiu no chão, bateu muito. Foi tudo muito rápido”, contou a diretora Maria do Carmo Gaetani de Oliveira.

Como reação ao caso, que foi presenciado por crianças e pais de alunos, a instituição fechou as portas na segunda-feira (22) e a direção se reuniu com a Secretaria de Educação, o Centro dos Professores do Estado do Rio Grande do Sul (Cpers), o Conselho Tutelar para estudar ações a serem tomadas a partir do fato.

“É um horror, uma tristeza, os educadores estão aqui fazendo a sua parte, isso é fora do comum, injustificável. Sabemos que não somos os únicos, mas não queríamos estar na estatística também”, afirma Maria do Carmo. Segundo ela, a escola já realiza trabalhos no combate à violência, embora não sejam comuns episódios como esse.

Áreas conflagradas

Infelizmente, casos de violência ocorrem com alguma frequência na rede estadual de ensino, motivados por diferentes razões. Cirlene Oliveira, vice-diretora da manhã, relata que a escola Escola Estadual Antão de Faria, localizada na Bom Jesus e controlada pela facção dos Bala na Cara, é uma das que convivem com problemas como toque de recolher.

No caso da Antão, como muitos dos alunos na escola são parentes, ligados a membros ou até integram facções, o temor é que criminosos de grupos rivais tenham os estudantes como alvos de ataques. “O toque de recolher é porque os Bala estão em briga com a Vila Jardim. Já houve assassinato de alunos”, diz Cirlene, acrescentando ainda que, desde janeiro, tem ocorrido tiroteios e que outros dois alunos foram feridos a bala nos arredores da escola. A Av. Protásio Alves separa as duas comunidades.

Além do toque de recolher, Cirlene conta que, após tiroteio recente, quatro homens armados faziam o controle do acesso à escola pela manhã. “O Estado é negligente e quem adotou a comunidade foram os Bala na Cara. A gente não tem muito o que fazer, tem que respeitar, porque estamos completamento desamparados. É horrível”, relata. “A gente entra espiado e sai mais espiado ainda”.

22/07/2016 - PORTO ALEGRE, RS - Escola Estadual Antão de Farias, no bairro Bom Jesus. Foto: Guilherme Santos/Sul21
Escola Estadual Antão de Farias está localizada em área conflagrada pelo tráfico no bairro Bom Jesus | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Combatendo a violência com paz

Alguns casos, no entanto, podem servir de estopim para que mudanças sejam realizadas dentro da própria escola para impedir que ações semelhantes voltem a ocorrer. É o que aconteceu na Escola Estadual de Ensino Fundamental Ayrton Senna da Silva, localizada no bairro Santo Antônio.

A Ayrton Senna é uma das oito escolas abertas do Estado, isto é, que não fecham nas férias de verão nem de inverno, funcionam em turno integral (das 8h às 17h) e fazem o acolhimento de adolescentes vulneráveis. Em geral, é voltada para alunos de 10 a 18 anos que ainda não cursaram as primeiras séries — apenas recentemente abriu a primeira série para alunos de 6 anos — e são encaminhados por abrigos, conselho tutelar ou estão cumprindo medidas socioeducativas.

Diretor da escola desde 2009, Adroaldo Machado Ramos afirma que o colégio sempre conviveu com problemas relacionado à agressividade dos alunos. No entanto, em 2014, a direção percebeu que a violência tinha passado dos limites. “Tivemos um menino de 10 anos, aqui da Vila Cruzeiro, que agrediu a professora, bateu nela e a gente teve que fazer uma parada no projeto pedagógico da escola e estudar formas de combater essa violência”, diz.

28/07/2016 - PORTO ALEGRE, RS - Reportagem sobre a escola exemplo no trabalho de paz na comunidade, na Escola estadual Ayrton Senna da Silva. Foto: Guilherme Santos/Sul21
         Escola estadual Ayrton Senna da Silva adotou medidas para a promoção da paz entre seus estudantes | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Por dois dias, a escola permaneceu sem aulas, com seu quadro funcional reunido para pensar em mudanças pedagógicas e planejar novas atividades. A saída encontrada não foi aumentar a punição ou enviar o aluno para outra escola, mas “humanizar” a Ayrton Senna.

Segundo Silvia Cristina Schmidt, orientadora e professora de uma turma da 1ª série do turno da manhã, uma primeira solução foi passar a valorizar mais a identidade dos alunos como forma de aproximá-lo da escola e evitar que alguns recebessem mais atenção do que outros, o que identificaram como uma fonte de problemas. “A gente começou a se dar conta de como, no cotidiano, estávamos reproduzindo as diferenças. Por exemplo, alguns alunos eram presenteados e outros não”, diz.

A partir daí, todos os alunos passaram a ter os aniversários comemorados em uma festa coletiva realizada a cada dois meses. Também buscou-se a valorização de quem era cada aluno. “Aniversário do aluno. Que dia ele nasceu, quem é o pai, quem é a mãe. Um projeto de valorização desse ser humano”, fala Adroaldo.

28/07/2016 - PORTO ALEGRE, RS - Reportagem sobre a escola exemplo no trabalho de paz na comunidade, na Escola estadual Ayrton Senna da Silva. Foto: Guilherme Santos/Sul21O diretor Adroaldo Machado Ramos e a professora Silvia Cristina Schmidt | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Além disso, foi implementada uma cultura de paz, que começa com pequenos gestos. “Quando os alunos chegam pela manhã, são levados para o refeitório e ali já começa nosso trabalho de cumprimentar a criança, de abraçar, passar a nossa verdade. Isso desarma o aluno e ele se abre para o que vem durante o dia”, diz Adroaldo. “O adolescente precisa desse acolhimento. O adolescente que é vulnerável se defende com agressão, se tu for agressivo com ele, ele vai agredir mesmo, ele não recua. Agora quando tu chama esse aluno para uma conversa, para um reconhecimento, para um agrado, para dizer que ele está errado, tem outra possibilidade, isso faz uma diferença sim”, complementa o diretor.

Silvia também avalia que o trabalho de acolhimento e valorização de identidade dos alunos traz mudanças positivas tanto para os estudantes quanto para suas famílias. “Tem alunos que são marcados pelo fracasso, os que têm mais idade especialmente. Então, precisa valorizar o que cada um tem de bom”, diz. “Eu ouvia muito: ‘Ih, esse aí não adianta, o pai é pior que ele’. A gente desmistificou isso. Quando tu acolhe a família mesmo dentro das dificuldades, isso faz a diferença. Quando os pais se sentem discriminados, isso passa para as crianças também”.

Além da mudança no acolhimento, a escola também decidiu apostar na formação da equipe. Passou-se a investir na capacitação dos professores em diversas áreas, como a da computação, para que pudesse ocorrer uma aproximação com os alunos por esse meio. Outra mudança implementada ocorreu no recreio, até então momento de muitos conflitos e brigas entre os alunos. Como a escola Ayrton Senna funciona em uma casa, o espaço que tem para o recreio é o terraço. Por iniciativa de uma das professores, esse local foi dividido em múltiplos espaços distintos para que cada criança possa brincar com aquilo que mais lhe agrada. Um cantinho é voltado para que os alunos desenhem, outro tem bonecas, mais adiante carrinhos, há uma mesa de Fla-Flu, uma rede para brincar com bola e até mesmo um quadro negro com giz.

28/07/2016 - PORTO ALEGRE, RS - Reportagem sobre a escola exemplo no trabalho de paz na comunidade, na Escola estadual Ayrton Senna da Silva. Foto: Guilherme Santos/Sul21
Crianças têm diferentes opções de diversão no recreio da Ayrton Senna
| Foto: Guilherme Santos/Sul21

Segundo Silvia, isso foi essencial para melhorar o comportamento e a disposição para os estudos de crianças que não estão acostumadas a brincar em suas comunidades, seja por problemas familiares ou por viverem em áreas conflagradas. “Tem várias famílias que não deixam os filhos brincar na rua porque tem muito tiro. A gente tem muitas crianças cuja infância está sendo roubada”, diz a orientadora.

Se antes Silvia não conseguia ficar um dia sem receber alunos em sua sala com problemas disciplinares, depois das mudanças a realidade é diferente. “Diminui muito o número de conflitos. Hoje é raro subir um aluno para vir na minha sala, na orientação, para ter que atender por problema de disciplina”, diz.

A implementação de uma “cultura da paz”, no entanto, não elimina os problemas. Este ano, a Ayrton Senna voltou a lidar com um caso de violência contra professores. Mas agora, depois de todas as mudanças, estava mais preparada para lidar com o caso. Foi criado um “círculo restaurativo”, em que foram chamados pais, professores, a orientação e o próprio aluno, que já tinha tido problemas de violência em outra escola, para conversar e buscar uma resolução positiva. Nesse círculo, foi firmado um acordo com ele para que assumisse a responsabilidade por sua atitude, de se retratar perante a professora e se comprometesse a mudar o comportamento. “Isso responsabiliza os alunos pelas suas atitudes”, diz Adroaldo. “Em vez de ser suspenso, passou a ajudar a professora e está bem”, relata Silvia.

28/07/2016 - PORTO ALEGRE, RS - Reportagem sobre a escola exemplo no trabalho de paz na comunidade, na Escola estadual Ayrton Senna da Silva. Foto: Guilherme Santos/Sul21              A brincadeira é uma arma para a resolução de conflitos na Ayrton Senna
| Foto: Guilherme Santos/Sul21

Resposta do Estado

A principal política do governo do Estado de combate à violência em escolas é a instalação das Cipaves (Programa de Prevenção a Acidentes e Violência Escolar). Coordenadora do programa, Luciane Manfro explica que estas comissões têm a intenção de integrar estudantes, pais e professores às comunidades em que es escolas estão inseridas e desenvolver atividades de prevenção a casos de violência que ocorrem nesses espaços. Luciane pondera que, em alguns casos, o foco é voltado para brigas entre alunos. Em outros, para a violência no trânsito ou até para a questão da gravidez precoce, que pode ser o tema central das conversas de um Cipave. Em escolas localizadas em territórios dominados pelo tráfico ou em que ocorre disputa por facções, o trabalho é voltada para a pacificação do ambiente escolar.

Segundo a Seduc, das cerca de 2,5 mil escolas estaduais, 1,8 mil já contam com Cipaves. A Ayrton Senna foi justamente uma das primeiras a aderir o programa, ainda em 2013. Em Porto Alegre, no entanto, a penetração do programa ainda é baixa. Menos de 80 das 250 escolas instalaram as comissões.

Em reunião com a Secretaria de Educação nesta semana, a diretora da escola Dom Pedro I pediu que haja maior acompanhamento de segurança no local, com o monitoramento de imagens da central de vídeo por parte do policial militar que atua na escola. No encontro, foi estabelecido que a instituição passará a participar do Cipave e o estudante em questão será transferido de escola dentro da rede, para que não sofra nenhum constrangimento, segundo a Secretaria, e sua adaptação será acompanhada pelo Conselho Tutelar.

Luciane pondera que o Estado não obriga as escolas a receberem Cipaves, mas faz um trabalho de convencimento. “Não queremos banalizar a violência. ‘Aqui é normal tiroteio, aqui é normal toque de recolher’. Temos que convencê-los de que não podemos nos conformar com esse estilo de vida. Temos que enfrentar”.

Recentemente, a Antão de Faria também tentou participar das iniciativas de promoção de paz. Foram colados cartazes com dizeres como “Diga não às drogas na escola, denuncie”, mas estes foram arrancados pelos alunos. Após a morte de um líder dos Bala na Cara, o confronto entre facções no entorno da escola aumentou e ela chegou ser fechada entre os dias 30 e 31 de maio por falta de segurança. Professores foram até a Seduc para cobrar medidas.

Cirlene relata que a Secretaria tem feito pressão para que a escola não respeite o toque de recolher, mas que a direção acabou considerando a melhor opção. “A escola tenta ficar neutra. Não apoiamos a violência, não apoiamos o tráfico, mas também não tem quem nos apoie. Diagnosticamos que é melhor ficar na nossa”.

A vice do Antão diz que a escola já foi acusada de estar “passando a mão na cabeça” do tráfico por aceitar o toque de recolher, mas nega que outro caminho poderia ser percorrido. “A escola é um espaço educacional. Falamos sobre os malefícios da droga. Mas como tu vai educar uma criança que a mãe é contabilista do tráfico e o pai gerente da boca?”, questiona Cirlene. “Já disseram que estávamos educando para o tráfico. Isso nos chocou. Não é isso que a gente faz, pelo contrário, não temos culpa pelo Estado ser omisso, por esse neoliberalismo ferrenho. A gente lida com o que a gente tem. Nós estamos num Titanic, tem vários icebergs no nosso caminho e ninguém quer que a gente pare essa viagem. Então, estamos viajando para o caos”.

Confira mais fotos: 

22/07/2016 - PORTO ALEGRE, RS - Escola Estadual Antão de Farias, no bairro Bom Jesus. Foto: Guilherme Santos/Sul21
Escola Estadual Antão de Farias, no bairro Bom Jesus | Foto: Guilherme Santos/Sul21
28/07/2016 - PORTO ALEGRE, RS - Reportagem sobre a escola exemplo no trabalho de paz na comunidade, na Escola estadual Ayrton Senna da Silva. Foto: Guilherme Santos/Sul21
Recreio na escola estadual Ayrton Senna da Silva. Foto: Guilherme Santos/Sul21
28/07/2016 - PORTO ALEGRE, RS - Reportagem sobre a escola exemplo no trabalho de paz na comunidade, na Escola estadual Ayrton Senna da Silva. Foto: Guilherme Santos/Sul21
Foto: Guilherme Santos/Sul21
                                                  Foto: Guilherme Santos/Sul21
28/07/2016 - PORTO ALEGRE, RS - Reportagem sobre a escola exemplo no trabalho de paz na comunidade, na Escola estadual Ayrton Senna da Silva. Foto: Guilherme Santos/Sul21




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