A modernidade é que é líquida?
Ou são os homens,
Que a liquidam?
O tempo é que é líquido?
Ou são os homens,
Que o aniquilam?
(Incertezas Navegantes – Guilherme Missali)
Não foi por nenhuma obra “líquida” que conheci Bauman. Foi por um golpe de sorte – como se houvesse algo dessa natureza na vida real – e uma dose de coragem. Eis que um belo dia, na Livraria Cultura, resolvi dar uma olhada na fileira da estante dedicada a esse autor tão pop.
Como disse um amigo, meu medo sempre foi o de descobri-lo como um Romero Britto da sociologia. Romero Britto é artista? Claro que sim. Mas sua arte é da pior categoria possível. Pobre, sem técnica, sem expressão, sem mensagem, sem gosto.
Mas os quadros de Romero Britto eu já tinha visto, os livros de Bauman, porém, não tinha lido.
Sabia que meu preconceito poderia me custar caro. Depois de ver um professor basear uma aula inteira (o tema era criminologia urbana) no conceito de medo desenvolvido por Bauman, resolvi comprar um livro dele. Mas me recusei a ler um livro líquido. Odiava clichês, naquela época.
Comprei “Danos Colaterais” e desde então Bauman me conquistou. Minha postura com a sociologia mudou, minha escrita passou a mudar também e minha biblioteca ficou muito mais líquida.
Bauman escreve de forma simples e profunda, ao mesmo tempo, com o dom magistral de quem consegue transmitir ideias complexas com uma linguagem acessível. Essa foi a primeira impressão que tive lendo Danos Colaterais, em que Bauman coloca o seguinte problema: imagine um furacão muito destruidor (a.k.a. Katrina), ele atinge igualmente a pobres e ricos, certo? Sim, no mundo físico, a desgraça é a mesma para pobres e ricos, nesse mundo de desastres inesperados.
Mas no plano social os pobres são afetados pelos danos colaterais de uma desgraça democrática.
Ricos geralmente possuem imóveis e bens como opção – eles possuem recursos financeiros, investimentos no mercado de capitais, uma boa renda e contratos de seguro que os ajudam a recuperar a perda em tempo hábil para não atrapalhar a vida.
Os pobres, porém, não contam com nada disso. Perder a casa (hipotecada) para um pobre significa não apenas não ter onde morar, como ainda ter uma complicação com o banco. Sacar o dinheiro da aposentadoria dos fundos ou privados nem sempre é uma opção, sobretudo quando o investimento é inexpressivo.
E aí aparece a liquefação da modernidade, mais uma vez. Esse problema deveria ser – no mundo Moderno – um problema de Estado, um problema de seguridade pública.
No Estado Moderno, a securitização dos mais pobres é assunto público, que surge da formalização estatal de uma solidariedade já existente entre os cidadãos. Mas nos tempos líquidos, a solidariedade que garantia a coesão social é substituída por uma individualidade sacralizada pelo consumo e a securitização pública é privatizada em diversas indústrias muito lucrativas – mas inacessíveis aos mais pobres.
Assim, ser pobre implica, no plano social, arcar com danos colaterais mesmo de tragédias inevitáveis, que atingem a pobres e ricos (a princípio) de forma equivalente.
A sagacidade de Bauman foi perceber que não estamos verdadeiramente em tempos “pós” modernos, mas, de forma um tanto quanto próxima a Habermas, afirmas que estamos esgotando os ideais modernos, nesse processo que o pensador chamou de liquefação.
A análise de Bauman, porém, não fica restrita a grandes categorias abstratas – como o Estado, o espaço público, etc. – mas é refinada ao ponto de o autor conseguir apontar como nossas experiências individuais (amor, medo, família, educação, etc.) se veem também afetadas pelo individualismo crescente pelo qual pagamos altos preços.
No nosso campo – o Direito – as reflexões de Bauman ainda fazem pouco eco, perto do potencial crítico que pode gerar contribuições inesperadas.
Uma exceção a esse vácuo é a obra do sociólogo Pedro Scuro, que estudou e atuou com Bauman (o “Zyg”, de acordo com ele) durante seu exílio da nossa ditadura militar. Não apenas a produção teórica de Scuro, mas também sua atuação, seja na implementação de tentativas de justiça restaurativa, seja na parceria com a Transparência internacional, revelam não apenas um conhecimento profundo do mundo líquido em que atuamos no Direito, mas também o espírito crítico e transformador por entre as linhas do pensamento de Bauman.
Que nos fique por escola, sempre vivo, o pensamento de Bauman.
Pedro da Conceição é Mestrando em Direito pela Universidade de São Paulo, advogado. Autor do livro “Mito e Razão no Direito Penal” (2012). Filósofo nas horas vagas.
Pedro da Conceição Terça-feira, 10 de janeiro de 2017
A quem serve a modernidade líquida de Bauman?
Zacarias Gama Professor na Universidade Estadual do Rio de Janeiro
Quarta-feira, 11 de janeiro de 2017
No Manifesto do Partido Comunista, Marx e Engels (2007) afirmam que “tudo que era estável e sólido se desmancha no ar” ao demonstrar que a solidez de uma era dá lugar a novas condições de existência e relações recíprocas em consequência de um movimento dialeticamente revolucionário. A burguesia, como classe revolucionária, não apenas revoluciona o modo de produção, mas também as relações sociais. Sua capacidade de imprimir constantes transformações abala a estabilidade e solidez anteriores, imprime constantes transformações e submete os seres humanos a um tempo transformações e profanações. A negação da ordem anterior abre-se a uma nova ordem de negação da negação. Todas as cadeias que precisavam ser despedaçadas, foram despedaçadas; tudo o que era estável e sólido se esfumou para dar lugar a uma nova sociabilidade. Na perspectiva de Zygmunt Bauman a revolucionada modernidade é líquida, efêmera e irreal. Qualquer tentativa de sua superação será pior, um autêntico pastiche.
Em sua obra Modernidade Líquida (2001), Bauman, filósofo polonês recém falecido, atribuiu à modernidade contemporânea, à pós-modernidade, a mesma plasticidade dos líquidos. Ela é “leve, líquida e mais dinâmica que a modernidade ‘sólida’ que suplantou”, flui, vaza, transborda, penetra lugares, contorna o todo e todos, tal como as ondas do mar. O indivíduo flui ao seu sabor e, ainda que podendo ser responsabilizado por suas ações e reações, é livre para questionar e refletir, reclamar e reivindicar. Seu horizonte é repleto de incontáveis oportunidades e realizações; é ele que escolhe os seus caminhos sem se preocupar com normas pré-estabelecidas, com as metalinguagens, com os governos e líderes. O seu individualismo atinge a sua maior intensidade, particularmente quando acompanhado das competências de saber ser, estar, aprender e conviver, inclusive em ambientes virtuais complexos, emaranhados e fluidos. Como indivíduo multifuncional está livre para buscar a sua autorrealização sem ser tolhida por qualquer Grande Irmão orwelliano. Todos devem ser igualmente livres para sentir, escolher, consumir e mover-se sem manipulações e frustrações. A fluidez do atual modo de produção, desse capitalismo tardio, não obstante os seus graus de negatividade, permite que o indivíduo se capacite, potencialize e consiga com eficiência a sua autorrealização. As possíveis frustrações decorrem da multiplicidade de escolhas, possibilidades, caminhos e horizontes; os bons exemplos podem atenuá-las.
Não há, porém, lugares para os planos de longo prazo. A modernidade líquida se move com rapidez, as persistências se derretem e, como diz Sennett (2000), até o caráter se deixa corroer. Os compromissos perdem força. A mobilidade no mundo do trabalho leva à perda de laços de amizade. As histórias se constroem a cada novo posto de trabalho. Os colegas de trabalho são igualmente colaboradores com pequenos laços de comprometimento com a empresa. A lealdade da modernidade sólida gera desconfianças nos locais de trabalho. Nestes tempos a flexibilidade dos contratos de trabalho ocasiona satisfações instantâneas como forma de superação das inseguranças. É um tempo de carpe diem; pode ser que amanhã tudo já seja tarde. O termo cloakroom, usado por Bauman, contém a ideia de indivíduos se fantasiando e assumindo comportamentos que variam conforme as ocasiões espetaculares e durante os seus tempos de ocorrência, apesar dos riscos de solidão.
Bauman nos deixa em um mês de janeiro abrasador e sem transparecer o que nos espera de positivo após a derrubada de uma Presidente legitimamente eleita, com mais de 54 milhões de votos. Seu legado é uma interpretação bastante peculiar do mundo e serve para inclui-lo entre os todos outros grandes filósofos que interpretaram o mundo. Da mesma forma que outros criticou a razão, o Estado e a organização social da modernidade e lhes atribuiu graus de domesticação dos homens e dos seus instintos e criatividade. Tal legado, contudo, segue o mesmo curso de tantos outros que, como disse Perry Anderson (1999), também se “tornou apanágio da direita, do conservadorismo”, [admitindo que] não podia haver nada mais que o capitalismo”. Para Anderson, aliás, o pós-modernismo não vai além de “uma sentença contra as ilusões alternativas”. Uma sentença igualmente imobilizante, que gera vazios, ausências e alheamentos e é incapaz de responder a questão relevante já levantada por Japiassu (2001): “a quem compete a responsabilidade de pensar a sociedade mundial que se encontra em gestação? ”
O velho Marx de fato estava certo. Não basta interpretar o mundo de maneiras diferentes. Deixar de pensar as formas de transformá-lo pode tão somente gerar conformações e conformismos. Afinal de contas, as performances momentâneas e passageiras da pós-modernidade raramente vão além do espetáculo inócuo. Tudo se mantém liquido servindo ideologicamente à reestruturação produtiva do capitalismo tardio.
Zacarias Gama é Professor Associado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, membro do corpo docente da Faculdade de Educação e Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas e Formação. Integrante do Comitê Gestor do Laboratório de Políticas Públicas/UERJ.
http://justificando.cartacapital.com.br/2017/01/11/quem-serve-modernidade-liquida-de-bauman/