Unificação curricular
Entenda a proposta de unificação curricular entre estados e municípios
POR INGRID MATUOKA
Está em andamento um projeto de unificação curricular da Educação Básica estadual e municipal em todo o País. Após a aprovação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) em dezembro passado, o Ministério da Educação (MEC), Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) e União dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) iniciaram os diálogos.
A proposta é que a rede estadual elabore um currículo, a partir da BNCC, em conjunto com seus respectivos municípios. Assim, as escolas de ambas redes teriam o mesmo currículo até 2020, prazo máximo para a implementação da Base.
Os especialistas ouvidos pelo Centro de Referências em Educação Integral avaliam as possíveis vantagens da unificação curricular, e apontam questões que merecem atenção e ressalvas.
Confira algumas opiniões sobre os principais tópicos em debate:
Cultura e a história local nos currículos
Cleuza Repulho, pedagoga e ex-presidente da Undime, afirma que esta é uma oportunidade dos estados e municípios darem atenção ao que é importante para a cultura e a história local.
Por exemplo, o Piauí pode incluir o estudo sobre o delta do Parnaíba em seu currículo, algo que não está previsto na BNCC, mas que é de extrema significância para os habitantes do estado. Se o município concordar com a necessidade de estudar o delta do Parnaíba, ele pode incluir o tema em seu currículo.
“Poderemos criar um currículo local, que respeite as regionalidades e, inclusive, contemplar o que a Base deixou a desejar, em relação às questões de gênero e respeito à diversidade”, explica Cleuza.
A secretária de Educação do Mato Grosso do Sul, e presidente do Consed, Cecília Motta, explica que em Campo Grande (MS) existem 80 escolas estaduais e outras 80 municipais, todas inseridas em um contexto muito similar. “Não tem razão para o currículo dessas escolas serem diferentes, inclusive das particulares, que também farão parte da unificação curricular”, explica.
Diversificação x padronização
Alessio Costa Lima, presidente da Undime e dirigente municipal de Educação de Alto Santo (CE), reforça que não há intenção de padronizar o ensino. “A legislação prevê que a escola tenha autonomia para construir seu currículo, levando em consideração seu contexto, mas em municípios em que não há divergências econômicas ou sociais, não há motivo para o currículo ser diferente”, diz.
Ocimar Alavarse, professor na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), observa que esse projeto tem sido discutido em nível nacional, e que não faz sentido para alguns estados como Bahia ou São Paulo, em que há realidades muito diversas, como o litoral, cidades extremamente populosas e um vasto interior.
“Só na capital paulista, onde as desigualdades são tão intensas que a expectativa de vida varia de uma região para a outra, não se pode falar em contextos similares”, aponta.
Migrações entre as redes
Cecília Motta, presidente do Consed, afirma ainda que a unificação curricular facilita a continuidade dos estudos dos alunos. Como muitas crianças migram entre as redes, sobretudo durante o Fundamental, é comum testemunhar uma quebra nos conteúdos estudados, causada pelas diferenças nas grades.
“A unificação curricular também facilitaria para os muitos professores que lecionam em ambas as redes, para uma mesma etapa de ensino, e tem de lidar com currículos diferentes”, afirma Cecília.
A especialista em currículo Julia Andrade concorda, mas faz uma ressalva. “Essa unificação tem que vir como orientação curricular. Um bom currículo municipal já deveria trazer os valores e abordagens necessárias para se garantir a defesa de direitos, a diversidade cultural e de gênero, e o olhar para o território. Não se pode retirar a importância dos Projetos Políticos Pedagógicos (PPP) como filtro interpretativo do contexto das escolas, direito garantido pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB)”.
Para ela, o ideal é fortalecer a capacidade de cada escola e território de reafirmar suas estratégias de ensino e aprendizagem e localizar no seu contexto o que faz sentido trabalhar como parte diversificada. Em suma, que a estruturação do currículo seja feita de baixo para cima.
“Hoje nada está garantido neste País, quando enfrentamos insegurança jurídica e grandes perdas de direitos. Mais do que nunca as escolas têm que se aferrar à sua função social, e ter autonomia para interpretar seus contextos”, diz Julia.
Otimização das equipes técnicas
Cleuza Repulho argumenta que os municípios, sobretudo os pequenos, carecem de equipe técnica para elaborar seus currículos e implementarem a Base. Por isso, com a unificação curricular, seria possível utilizar uma mesma equipe técnica para formar vários municípios.
“Serão disponibilizados técnicos para estes municípios, priorizando os que as equipes locais conhecem, que são da região, para que a construção do currículo seja mais justa e respeite as diferenças”, diz Cleuza.
Já Ocimar enxerga a proposta com desconfiança e explica que se há dificuldades dos municípios de desenvolverem um currículo próprio, falta de equipe técnica e recursos financeiros, o mesmo acontece nos estados. “Assim, os consórcios podem acabar sendo favorecidos, como a compra de materiais de ensino apostilados”, diz.
Autonomia dos municípios e das escolas
Tanto o Consed quanto a Undime reforçam que estas construções têm sido feitas de maneira dialógica e democrática. “É preciso que tenhamos a grandeza de escutar e não achar que se trata de uma rede dominar a outra. Tampouco podemos deixar que a política de governo atrapalhe a política de estado”, alertou Cecília, presidente do Consed.
Para Julia Andrade, este é um ponto nevrálgico, porque talvez municípios e escolas não tenham forças, também pela falta de equipe técnica, de se contrapor às decisões e formularem seus próprios currículos.
“Um temor é que essa orientação de unificação passe por cima da autonomia das escolas, e defina não só o que, mas como ensinar, muito mais do que abrir espaço para as diversidades aparecerem”, diz Julia.
Ocimar Alavarse, professor da USP, afirma que o projeto pode tomar contornos de um “controle descentralizado” por parte do MEC, sobre a implementação da Base. “A formação de equipes, as articulações e elaboração de currículos demoram para serem feitas, e transcendem uma gestão. Por isso, talvez esse projeto seja mais retórica do que um feito, e isso vai depender do próximo governo impor com maior ou menor força a BNCC”, conclui o professor.