Transferir um sistema educacional
Não dá para transferir um sistema educacional de um país para outro, diz educadora finlandesa
- Beatriz Montesanti 11 Nov 2016
Conselheira que trabalhou para o governo do país nórdico fala ao ‘Nexo’ sobre sua experiência na implementação de um currículo nacional básico
Conhecida por seu sistema educacional flexível e de bons resultados, a Finlândia implementou em 2016 um novo currículo mínimo para o ensino secundário do país - uma atualização do sistema em vigor há dez anos.
A conselheira educacional Tiina Tähkä foi uma das responsáveis pelo projeto, quando integrava o Finnish National Board of Education, agência de desenvolvimento subordinada ao Ministério da Educação finlandês.
Ela esteve recentemente no Brasil para participar do Seminário Internacional Desafios Curriculares do ensino médio, promovido pelo Instituto Unibanco e pelo Consed (Conselho Nacional de Secretários de Educação).
Na Finlândia, a educação é gratuita em todos os níveis, da pré-escola ao ensino superior. E financiada em grande parte pelo Estado. Trata-se de um dos melhores sistemas educacionais do mundo.
A partir dos 15 anos, jovens podem escolher seguir pelo ensino secundário padrão ou vocacional - um equivalente ao ensino técnico nacional. Ambos apresentam disciplinas em comum e oferecem os subsídios necessários para o ingresso na universidade, explica Tähkä.
Apesar de existir um currículo mínimo nesta fase de ensino, ele apenas apresenta os objetivos centrais das disciplinas - escolas e professores têm autonomia pedagógica para montarem seus planos de aula, levando em consideração especificidades locais. O país é particularmente conhecido pela flexibilidade de seu ensino.
“O objetivo é fazer com que, quando o aluno tiver que escolher entre o ensino geral e o vocacional, ele tenha informação o suficiente para tomar esta decisão. Mas nada é um caminho sem volta e não há escolhas erradas”, diz Tähkä.
Contexto brasileiro
Durante a apresentação de Tiina Tähkä em São Paulo, na quarta-feira (9), um grupo de cerca de 40 secundaristas entrou no Instituto Tomie Ohtake, onde acontecia o evento, para protestar contra a “privatização da educação”.
O seminário sobre as possibilidades para um currículo brasileiro acontece num período de grande debate sobre educação no país. Atualmente, dezenas de escolas estão ocupadas por estudantes secundaristas contrários à reforma do ensino médio apresentada pelo governo federal em setembro deste ano e à PEC 241, que estabelece um teto para os gastos governamentais e poderá ter efeitos nas despesas com educação.
A reforma do ensino foi criticado por diversos setores da sociedade por ter sido feita como Medida Provisória - forma considerada autoritária e prematura, já que assim o documento não é submetido a amplo debate público.
Além disso, agentes da educação criticam diversos pontos do texto que estabelece “áreas do conhecimento”, retira a obrigatoriedade de disciplinas e de que professores tenham o diploma na área que irão lecionar, entre outras questões.
O Brasil também está em fase de construção da Base Nacional Comum Curricular, que estabelecerá os conteúdos e saberes necessários para cada ano da educação básica (que inclui o ensino fundamental e médio).
O Nexo conversou com Tiina Tähkä sobre sistemas curriculares e aplicação de modelos em países de realidades diferentes. Aqui estão os principais trechos da entrevista:
Como funciona, em linhas gerais, o currículo comum da Finlândia?
TIINA TÄHKÄ No sistema finlandês, a educação é obrigatória dos 7 aos 15 anos. Depois disso, estudantes podem escolher se querem continuar o ensino secundário regular ou vocacional. Temos os dois caminhos, mas ambos permitem o acesso à universidade.
Temos um sistema bastante flexível no ensino secundário regular e no vocacional, portanto os alunos podem escolher entre uma série de possibilidades. Eles também planejam a própria grade horária, o que vão estudar e como.
O novo currículo comum começou a funcionar em 2016 e é basicamente uma atualização do anterior. Temos agora mais opções de estudos temáticos e oportunidades multidisciplinares. Também enfatizamos mais as competências básicas mais amplas, como ajudar os alunos a desenvolverem suas habilidades de comunicação, leitura, empreendedorismo e de compreensão da diversidade cultural, entre outras coisas.
Como foi o processo para a construção do currículo?
TIINA TÄHKÄ Temos um longo histórico de cooperação na Finlândia. O processo começou de forma institucional com um grupo do Ministério da Educação debatendo novas possibilidades. Nesse grupo, havia os grandes agentes interessados na educação, como professores, sindicatos, estudantes e organizações sociais.
Após isso, o National Board of Education começou a planejar o texto do currículo comum e, também nesse processo, envolveu os agentes interessados. Havia um rascunho aberto na internet para todos comentarem e participarem. O National Board of Education decidiu o currículo e teve início o longo processo para que as escolas pudessem conceituá-lo dentro de seus próprios projetos.
Quais são os maiores desafios e fatores que devem ser levados em consideração quando se constrói um currículo nacional?
TIINA TÄHKÄ As competências básicas, a cultura escolar e o pensamento pedagógico. Esses são tópicos muito importantes. Claro que há muita discussão sobre se o novo currículo está indo muito longe, ou não está indo longe o suficiente. Sempre há dois lados. Estávamos tentando chegar a um currículo que de fato ajudasse estudantes a aprender.
Uma grande preocupação de especialistas quando se fala de ensino vocacional é o de forçar jovens a fazerem decisões muito cedo ou não oferecer a eles todas as possibilidades de aprendizado necessárias. Como esses fatores são balanceados na educação da Finlândia?
TIINA TÄHKÄ A decisão pelo ensino vocacional é feita aos 15 anos, mas não é o fim da linha. Se você escolhe esse caminho, ainda pode ir para a universidade. Além disso, o ensino vocacional tem estudos em comum com o geral. A parte importante é que universidades técnicas podem se beneficiar de alunos que vêm dessa área pois eles tem um bom entendimento prático.
Outra preocupação quanto a reforma brasileira é a de que as escolas não têm a estrutura necessária para orientar os estudantes na hora de fazer escolhas ante um currículo flexível. Como isso funciona na Finlândia?
TIINA TÄHKÄ No nosso sistema, o aconselhamento é necessário, portanto há no ensino secundário orientadores que fazem sessões em grupo ou particulares com os estudantes. Há professores que fazem orientações dentro de suas disciplinas e há professores responsáveis por um grupo de estudantes, de forma que se o aluno tem algum tipo de problema ele pode contatar o professor. E se o jovem fizer uma decisão e se arrepender, ele pode revertê-la. O objetivo é fazer com que, quando o aluno tiver que escolher entre o ensino geral e o vocacional, ele tenha informação o suficiente para tomar esta decisão. Mas nada é um caminho sem volta e não há escolhas erradas.
Como vê a situação educacional brasileira?
TIINA TÄHKÄ Eu venho do contexto finlandês e recebo muitas perguntas sobre o nosso sistema. Minha resposta é que não se pode transferir um sistema educacional para outro. Sempre há um contexto específico que deve ser levado em consideração para se desenvolver a educação.