Somos todos África
Nilton Bruno Tomelin - Revista Gestão Universitária - 14/12/2015 - Belo Horizonte, MG
Esta não é destas frases prontas que por modismo, povoam as redes sociais como manifestação de “solidariedade” quando ocorre alguma tragédia. De fato há um tragédia vitimando a África ao longo de séculos e que parece não ter fim. Mas a frase que nomina este texto tem outro significado: afirmar que todo o ser humano carrega consigo um pouco de África. A brancura que muitos ostentam e que é motivo de violência, perseguições, discriminação e até escravização sobre os não alvos.
Historicamente há relatos de três grandes diásporas africanas. A primeira delas ocorreu a cerca de 125 mil anos, quando mulheres e homens seguiram rotas e tomaram todos os continentes. Desta forma não há ser humano que traga consigo um pouco de África. Isso já seria suficiente para justificar que “somos todos África”.
Mais recentemente, entre os séculos XVI a XIX milhares de nativos africanos foram sequestrados como escravos e negociados por lideranças locais. Os que sobreviviam à travessia eram confinados e tomados como propriedade de famílias (brancas) em todo o continente Americano. Por esta razão boa parte da população das Américas descende deste grupo humano. Esta segunda diáspora pode ser chamada de holocausto africano.
A terceira diáspora se deu quando alguns estados tornaram-se independentes, já no século XX. Apesar de independentes, muitos destes Estados passaram a ser governados por brancos, descendentes dos invasores, o que resultou em políticas segregacionistas como o Apartheid na África do Sul que perseguiu e expulsou milhares.
Considerando a primeira diáspora como fenômeno de migração biológica, para efeitos de análise antropossocial trataremos das duas últimas. Se na primeira a migração ocorreu como fenômeno natural em que os migrantes carregaram (presume-se espontaneamente) seus hábitos, sua ciência acerca de si e da natureza, nas duas últimas diásporas não foi bem assim.
O único patrimônio dos africanos sequestrados ou expulsos era o corpo, usado como instrumento de trabalho, seja na condição de escravos ou de trabalhadores severamente explorados. Além disso, por disporem apenas do corpo carregavam consigo também a dança e alguns rituais, que heroicamente preservaram ao longo do tempo. A igreja, por sua vez dizia que o corpo do escravo não tinha alma e isto referendava a escravidão e o inevitável descarte, quando o corpo perdia seu potencial produtivo. Alguns sequestrados por ocasião da segunda diáspora, fugiam por não encaixarem-se no “sistema” constituindo os quilombos.
Já os remanescentes da terceira diáspora, explorados em sua possibilidade de trabalho, juntaram-se aos remanescentes da segunda (já libertos) e formam boa parte da população pobre e miserável das periferias. Surgem então os fenômenos da discriminação e do racismo.
A discriminação é um conjunto de comportamentos observáveis e puníveis pela lei. Já o racismo é mais perigoso, pois é um sistema de dominação. Usam-se ciências como a biologia e a teologia para justificar e legitimar sua prática. Assim como as sucessivas diásporas, o racismo é uma forma de (in)consciência forjada historicamente. Forjada convenientemente para que a África caia no “esquecimento” e a expressiva maioria afrodescendente que povoa as Américas (e o Brasil) seja convertida em minoria sem expressão.
Dizer que “somos todos África”, é pois um exercício de reconhecimento biológico e antropológico e terá expressão e consistência, na proporção em que for condição assumida com ética. Mais que um modismo, há que ser uma condição essencial de convívio, reconhecendo o continente africano não apenas como berço da humanidade, mas simplesmente como parte da humanidade, tanto quanto qualquer outro lugar do mundo.