Sem escolas com partidos

Sem escolas com partidos

Jogo de soma “sem”: escolas com (muitos) partidos

02/Ago
Mas talvez o pior cenário do “Escola sem partido” seja aquele propositadamente omitido. Ao criar um suposto bode expiatório adia-se, mais uma vez, um debate já muito atrasado e urgente entre nós, sobre a qualidade do ensino no Brasil e seus inúmeros desafios

No dia 22 de julho chegou ao Congresso Nacional um projeto de lei de autoria do deputado Izalci Ferreira (PSDB-DF) chamado “Escola sem partido”. A iniciativa gerou imensa reação, de todos os lados. Não obstante, de qualquer ângulo que se possa observar, o movimento mostrou mais uma faceta desse nosso Brasil, que anda a cada dia mais polarizado.

Gostaria de dimensionar o volume do barulho, que foi alto. Muitas vezes uma ideia vem disfarçada, e mal disfarçada, por sua pretensa imparcialidade.  Por mais que o texto do “Escola sem partido” afirme priorizar o diálogo, termos de seu programa, chamado “deveres do professor” – aliás, um cartaz que deveria ser afixado em todas as escolas -, promete o oposto. Trata-se de uma espécie de incitamento ao conflito entre pais e professores, e também de docentes contra discentes. Como se habitassem campos opostos e com fronteiras minadas.

É certo que o projeto sofreu um primeiro revés com o parecer do Ministério Público Federal que defendeu o direito à diferença e à pluralidade nas escolas. Portanto, não penso que seria preciso insistir na inconstitucionalidade desse programa. O projeto é evidentemente desajustado frente a uma República democrática e federativa, que mais do que impor consensos e difundir implícitos – mal explicitados – deve facultar um cardápio farto a seus cidadãos.

Resta-me, assim, trazer à tona a quantidade de silêncios presentes no texto do projeto, e refletir acerca das implicações de um modelo como esse. Começo pelo começo: os termos facultados pelo programa. Em primeiro lugar, o que significa ser “sem”?  “Sem” lembra nada, neutro, imparcial, destituído, transparente.

O paralelo que salta aos olhos vem dos tempos coloniais, quando os nativos brasileiros eram definidos pelo “sem”. “Sem F, sem L, sem R”. A bem dizer: sem fé, sem lei, sem rei. A estratégia discursiva que perdeu seu contexto imediato para guardar a imaginação longeva dos europeus – curiosos com essa nova humanidade - partiu do viajante português Gandavo. Certo de suas próprias crenças e certezas, e ao não se ver reconhecido naquilo que encontrou no “Novo Mundo”, ele achou por bem transformar em “vazio” o que era “cheio”; em “nada” o que era “muito”.

Esses são povos que carregam mitologias arraigadas, uma complexa cosmologia acerca dos homens e da floresta, que vivem em harmonia e em equilíbrio num mundo que hoje insistimos em destruir. Mesmo assim, na conta de somar do religioso português só existia zero: eram nada, "sem". Mais do que analisar esse caso, que significou o mais completo desacerto de avaliação dos europeus, gostaria de reconhecer o êxito da estratégia retórica desse viajante. O exercício de Gandavo é de contraposição e dicotomia, de construção de uma verdade dividida entre “eles” e “nós”; seja lá quem forem esses “eles” e quem sejam esses “nós”. A estratégia é também de polarização: temos o que eles não têm, e vice-versa ao contrário. No caso do século XVI, “sem” eram “eles” – bárbaros, polígamos, nus e, ademais, canibais.  "Com" éramos “nós”: civilizados, europeus, monogâmicos, brancos.

Hora de inverter o campo da partida e ver quem come quem nessa nova conformação. Hoje os “sem” somos “nós” – neutros, destituídos de partidos ou de credos políticos. Já os “com” são os ideológicos,  os professores vestidos de armaduras e escudos marxistas, os esquerdistas, aqueles dispostos a fazer lavagens cerebrais nas cabeças dos alunos desassistidos e indefesos diante do assalto mental.

Por isso, e em segundo lugar, os termos utilizados pelo projeto também revelam pontaria certa e alvo premeditado. Os autores abusam de vocábulos como “cooptar”, “incitar”, “aproveitar”, “propaganda político-partidária”,  “preferências ideológicas” que constroem uma gangorra que verga só para um lado. Os professores são os algozes; os alunos, suas vítimas sacrificiais.

Aqui o jogo de palavras é claro. Mesmo assim, gostaria de indagar se existe algo ou alguém nesse mundo que seja “sem”? Esquerda e direita são termos polares e só existem quando colocados em relação; o crescimento de um afeta o outro; a falta de um lado, logo leva ao excesso do outro. O mesmo ocorre com o conceito de ideologia. O termo já nasceu complicado, ganhando ao menos duas concepções básicas. Foi o filósofo francês Destutt de Tracy (1754 – 1836) que usou o conceito pela primeira vez, definindo-o como “a origem das ideias humanas e das percepções sensoriais”. Essa é a visão do senso comum: ideologia é sinônimo de ideário, conjunto de ideias, de pensamentos, de percepções, de visões de mundo de um indivíduo mas também de um grupo. Aí está uma espécie de sentido padrão do termo, que garante que cada um de nós professa um tipo de ideologia. Ninguém escapa. Como cantava Cazuza: “Ideologia, eu quero uma pra viver”.

Mas há uma segunda concepção, mais crítica. Nesse caso, a ideologia é considerada um instrumento de dominação, e que funciona na base do convencimento, da imposição e da persuasão; não de forma física, mas prescritiva. Isto é, alienando o sujeito de sua consciência humana.  Em finais do século 19, o conceito foi empregado pelo materialismo histórico para pensar na maneira como a Revolução Industrial havia retirado dos trabalhadores sua capacidade de reflexão. Mas não só isso: animava-os a se inserir, criticamente, nesse processo. 

O movimento que se desenvolve hoje em dia no país representa, portanto, mais uma inversão dos ponteiros do nosso relógio cotidiano. No nosso exemplo, trata-se de observar uma nova quebra de cotovelo: o movimento “Escola sem partido” pretende denunciar a manipulação de um grupo (o professorado), que impõe, sem dó nem piedade, suas verdades sobre outro grupo (o alunado).

Falta perguntar, porém, quase uma obviedade: como é que esse novo projeto entende e desenha o ambiente da escola? Escolas seriam instituições feitas para a mera transmissão mecânica de conhecimento? Qual o local dos docentes e qual o espaço dos discentes? De que forma a escola atua orientando e dando formação a seus professores? Como se dá a interação dos pais nesse processo de longo curso, e que precisa ser pautado pela confiança, de todas as partes?

Não há dúvida que só há um vencedor nessa falsa disputa: o diálogo, onde cada um guarda, e não abandona jamais, o seu papel. Se é o professor que tem consigo a primeira condução do processo de aprendizagem – orientado, é claro, por todo um grupo de formação -, só existe conhecimento onde reside a troca. Cabe portanto ao aluno garantir sua presença crítica, inovadora, original e questionadora; a participação ativa. Dos pais espera-se a ação constante, zelosa, atenta; junto à escola, mas também em suas próprias casas. Essa é a única forma que conheço – professora que sou – de atuar na educação. Ensinar é aprender e o contrário é igualmente válido. Escolas são portas de entrada e de saída para podermos ler o mundo (menos armados) e assim termos a capacidade de transformá-lo.

PENSAR QUE EXISTE SÓ UMA DIREÇÃO NA COMUNICAÇÃO ESCOLAR É ESQUECER O IMENSO UNIVERSO PRESENTE EM CADA GERAÇÃO, QUE AMANHECE INVENTANDO PARA SI E PARA OS DEMAIS A UTOPIA DE UM MUNDO MELHOR, PORQUE MAIS CRIATIVO.

Educação é compromisso, engajamento (sim), mas jamais com um sentido único. Engajamento, diante de tudo que nos afeta e nos aflige, nos motiva e emociona, nos faz sofrer e ser solidários. Por essas e por outras é que emitir uma opinião, defender princípios, propor ideias é parte de uma agenda escolar plural, inclusiva, viva e atenta aos desafios do seu próprio momento. Só assim teremos alunos críticos, que podem conviver com a diferença (de gênero, de religião, de raça, de etnia, de geração, de região) e criar a partir dela uma vida melhor. Sem tantos ódios, polarizações e radicalismos.  Professores não são agentes secretos infiltrados, assim como alunos  não se comportam como personagens passivos e que atuam tal qual o velho mata-borrão, apenas absorvendo sem pensar, reagir, indignar-se, mostrar outros lados.

Há pouco tempo o movimento de ocupação das escolas estaduais, realizado com muito sucesso por alunos da nossa rede pública, deu provas de capacidade de ação, invenção e intervenção deles, e comoveu a sociedade. Por isso, pensar que existe só uma direção na comunicação escolar é esquecer o imenso universo presente em cada geração, que amanhece inventando para si e para os demais a utopia de um mundo melhor, porque mais criativo.

Mas talvez o pior cenário do “Escola sem partido” seja aquele propositadamente omitido. Ao criar um suposto bode expiatório adia-se, mais uma vez, um debate já muito atrasado e urgente entre nós, sobre a qualidade do ensino no Brasil e seus inúmeros desafios.  Investir na  formação e capacitação de nossos educadores, remunerar melhor e mais dignamente nossos professores, equipar as escolas com recursos mais modernos e adaptados às novas realidades, cuidar da segurança de todos, refletir sobre os programas escolares e implementar mudanças são parte de uma agenda muito mais ampla, e da maior relevância para um país como o nosso, tão carente nesse sentido.

Estratégias de polarização servem apenas para acirrar os nossos ânimos, que já andam suficientemente exaltados. O projeto “Escola sem partido” nasceu inconstitucional, até porque vai perseguindo a direção oposta de uma República Federativa, cuja vocação é defender a diversidade.  A estratégia é parecida com outras que têm apostado na radicalização e não no diálogo. O primeiro passo é criar um inimigo poderoso – uma quadrilha de professores armados para uma batalha de lavagem cerebral -e dessa maneira ganhar visibilidade e espaço na mídia. O segundo, entrar no Legislativo e contar com o apoio de parlamentares, que andam igualmente caçando exércitos e guerrilhas que agem nas “matas” das cadeiras escolares.

A questão que não quer calar é: quem é quem na formação dos alunos, das nossas crianças e jovens? A resposta fácil (e sem tantos implícitos) é: todos! Isso porque a tarefa é de fórum coletivo. Penso que uma educação aberta e compreensiva carrega consigo a sublime qualidade da pluralidade e do respeito à diferença. Uma educação que respeita o passado e assim olha para frente e para o futuro. Liberdade é a palavra da vez: liberdade de pensamento para os alunos, para os pais e para os professores também.

Enfim, nada nesse mundo é apenas e tão somente inocente, e o convite que faço é para refletir sobre a quantidade do “com” que existe no “sem”. Afinal, como dizia o etnólogo Claude Lévi-Strauss, “bárbaro é aquele que acredita na barbárie”.

Lilia Moritz Schwarcz é professora da USP e Global Scholar em Princeton. É autora, entre outros, de “O espetáculo das raças", “As barbas do imperador", “O sol do Brasil" e Brasil: uma biografia”. Foi curadora de uma série de exposições dentre as quais: Um olhar sobre o Brasil” e Histórias Mestiças”. Atualmente é curadora adjunta do Masp

 

https://www.nexojornal.com.br/colunistas/2016/Jogo-de-soma-%E2%80%9Csem%E2%80%9D-escolas-com-muitos-partidos 

 




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