Retrocessos e o Congresso Nacional
Como o Congresso Nacional está nos devolvendo ao Brasil Colônia
Leonardo Sakamoto
Fiz uma lista, em abril deste ano, de dez coisas que a atual legislatura do Congresso Nacional – que despontava como um vetor de retrocessos históricos, tendo a Câmara dos Deputados à frente – poderia fazer em quatro anos para nos devolver ao Brasil Colônia. Para ser bem honesto, na época achei que estava exagerando.
1) Liberação da terceirização para qualquer atividade da empresa
2) Transferência do poder de demarcação de Terras Indígenas para deputados e senadores
3) Redução da maioridade penal para 16 anos
4) Proibição de adoções por casais do mesmo sexo
5) Alteração do conceito de trabalho escravo contemporâneo para diminuir as possibilidades de punição
6) Redução da idade mínima para poder trabalhar de 14 para 10 anos
7) Proibição do aborto nos casos de estupro, risco de vida para a mãe e má formação fetal
8) Aprovação da pena de morte
9) Fim do voto feminino
10) Revogação da Lei Áurea
Seis meses depois, acho que fui bastante conservador. É claro que tudo isso precisa ser aprovado pelas duas casas, passar pela sanção presidencial (quando não for emenda à Constituição) e não ser contestado no Supremo Tribunal Federal. Mas dá uma boa ideia do nível de nosso parlamento. Veja o porquê:
1) Liberação da terceirização para qualquer atividade da empresa (em andamento)
A discussão está em curso e conta com defensores inclusive dentro do próprio governo, como no Ministério da Fazenda.
2) Transferência do poder de demarcação de Terras Indígenas para deputados e senadores (em andamento)
Deputados tentam acelerar a aprovação de uma mudança constitucional que deixará com o Congresso Nacional a responsabilidade pela demarcação de territórios indígenas (PEC 215, de 2000) – o que dificultará a devolução de terras a essas populações.
3) Redução da maioridade penal para 16 anos (em andamento)
Um projeto de lei foi aprovado na Câmara dos Deputados e está em análise no Senado. Essa votação ficou famosa: foi aquela que, após perder, o presidente Eduardo Cunha manobrou para que fosse votada novamente no dia seguinte, obtendo vitória na segunda vez. Outras propostas de emenda à Constituição semelhantes também estão em trâmite no Senado.
4) Proibição de adoções por casais do mesmo sexo (em andamento)
Esse pode ser um dos desdobramento do Estatuto da Família (que restringe “família'' a apenas uma união entre um homem e uma mulher), que já passou em uma comissão especial na Câmara dos Deputados. A proposta é extremamente ofensiva a famílias que fujam desse modelo hegemônico nuclear heterossexual.
5) Alteração do conceito de trabalho escravo contemporâneo para diminuir as possibilidades de punição (em andamento)
Há três propostas tramitando na Câmara e no Senado para reduzir o conceito apenas à privação de liberdade. Ou seja, tratar a pessoa como um instrumento descartável de trabalho, submetendo-a a condições abaixo de patamares mínimos de dignidade, deixa de ser escravidão contemporânea.
6) Redução da idade mínima para poder trabalhar de 14 para 10 anos (em andamento)
Pelo menos três propostas de emenda à Constituição para reduzir a idade mínima para a contratação de adolescentes foram desarquivadas e estão prontas para serem analisadas pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ).
7) Proibição do aborto nos casos de estupro, risco de vida para a mãe e má formação fetal (em andamento)
A Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados tornou mais difícil, nesta quarta (21), o aborto em caso de gravidez resultante de estupro, pois a vítima passará a ter que registrar boletim de ocorrência e fazer exame de corpo de delito – hoje, isso não é necessário. Também criminaliza a orientação sobre o aborto, com penas maiores se quem ajudar for agente de saúde.
8) Aprovação da pena de morte (impossível, mas também não precisaria)
É uma questão de tecnicalidade, a bem da verdade. Porque a pena de morte já foi adotada no Brasil para quem é pobre, negro e jovem. Como mudar esse item na Constituição é muito difícil, a não ser em época de guerra com outros países, então seguimos na informalidade. E com aprovação de mudanças no Estatuto do Desarmamento, que estão despontando na Câmara dos Deputados, somada à crescente sanha justiceira, imagina só.
9) Fim do voto feminino (impossível, mas também não precisaria)
Esse retrocesso é impossível. Mas as mulheres são minorias no Congresso Nacional, nas Assembleias e Câmaras de Vereadores, sem falar de cargos executivos e no Poder Judiciário. Poucos partidos possuem políticas claras para garantir a quantidade de candidatas previsto em lei e garantir a elas a mesma competitividade que a dos homens e, por isso, têm sido punidos pela Justiça Eleitoral.
10) Revogação da Lei Áurea (era piada, mas sei lá, né…)
O Brasil teria que ir contra uma quantidade tão grande de tratados e convenções internacionais que, certamente, seria expulso das Nações Unidas e não conseguiria exportar nem sacolé se tentasse. Mas considerando que nunca conseguimos inserir a população libertada no final do século 19 e seus descendentes continuam a ser tratados como carne de segunda, a sofrer todo o tipo de preconceitos e a receber bem menos que os brancos pela mesma função, segundo dados da Organização Internacional do Trabalho, então não há muito o que comemorar também. O Congresso Nacional poderia aprovar leis que contribuíssem com mudanças nas estruturas arraigadas: como ampliar a reforma agrária, promover uma reforma tributária socialmente justa e garantir uma revolução na educação e na saúde públicas invertendo prioridades, enfim, vocês entenderam o recado.
Mas um Congresso Nacional de grandes realizações para o bem dos que mais precisam dele é um pensamento tão absurdo quanto o fim da Lei Áurea.
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