Repactuar dívida

Repactuar dívida

Termos para repactuar dívida são absurdos, diz Maria Lucia

Austeridade é empurrar os erros da política monetária para a sociedade, diz


JONATHAN HECKLER/JC

Lívia Araújo

Conhecida por ter examinado ponto por ponto da dívida grega e por ter proporcionado ao Equador a anulação de mais de 70% do montante devido a credores externos, a auditora fiscal Maria Lucia Fattorelli, que coordena, desde 2000, a Auditoria Cidadã da Dívida, critica as condições impostas pela União para a repactuação da dívida do Rio Grande do Sul. "O que foi cobrado a mais, esse índice abusivo de atualização, deve ser trocado lá na origem. Não pode haver cobrança de juros entre entes federados", defende.

O governo federal, no entanto, insiste em não abrir mão dos juros compostos na renegociação do passivo com os estados, alegando perdas na ordem de R$ 400 bilhões se foram praticados os juros simples. A questão ainda está em análise no Supremo Tribunal Federal.

Segundo Maria Lucia, o que a União propõe é meramente um "alívio momentâneo". Com esse alongamento do período de pagamento, alerta, o governo estadual "não pode contratar concursados, tem que cortar todos os gastos, tem que aplicar previdência complementar por regra de mercado, o que é gravíssimo, e tem que reduzir o reajuste até do salário-mínimo regional".

Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, a auditora também recomendou a revisão dos incentivos fiscais para evitar abusos, e criticou a austeridade aplicada a políticas sociais. "Nós temos de carregar a bandeira da austeridade para o gasto financeiro, para que a gente pare de pagar dívidas ilegais", acredita.

Maria Lucia Fattorelli - De forma alguma, essas condições são absurdas. A repactuação que teria que haver anualmente seria retornar lá na origem, rever daquela dívida o que era dívida mesmo. O que foi cobrado a mais, esse índice abusivo de atualização, deve ser trocado lá na origem, no índice de atualização oficial, medido pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), utilizado inclusive pelo Banco Central, que é o IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo). E pronto. Não pode haver cobrança de juros entre entes federados. O mesmo princípio que proíbe que entes federados cobrem tributos um do outro deveria ser aplicado no caso dos juros. O cidadão que mora no município, automaticamente mora no estado, no Brasil. Então, essa divisão entre estado, município, ela é meramente organizativa. Nós somos uma federação inseparável, como está escrito na nossa Constituição. A revisão que teria que haver é essa. O que na verdade se está propondo? Um alívio momentâneo, por meio de um alongamento. É a antiga tática do prazo de carência, que vem há séculos.


JC - Por que a concessão de um período de carência não é a melhor alternativa?

Maria Lucia - Não é, porque empurra o problema para o futuro. Em geral, administradores que querem resolver o problema de seu mandato acabam aceitando essa proposta de alongamento, que é um alívio para o momento. Então, temos que retornar e corrigir o erro desde a origem. Para que o Estado possa fazer jus à pífia redução, que é a troca do índice a partir de 2013, somente, e tenha esse alongamento, ele não pode contratar concursados, tem que cortar todos os gastos, tem que aplicar previdência complementar por regra de mercado, o que é gravíssimo, e tem que reduzir o reajuste até do salário-mínimo regional. Esse projeto, se a economia já está travada pela política monetária nacional, traz esse modelo altamente restritivo para o âmbito regional. E trava de vez o País.

Jornal do Comércio - A senhora considera que as condições impostas para a repactuação da dívida do Estado com a União são válidas?


JC - Qual é a relação entre a dívida e a decisão de tomar medidas de austeridade? Buscar austeridade é útil?

Maria Lucia - De forma alguma. Buscar austeridade é empurrar a conta dos erros da política monetária para a sociedade. Fazem as políticas equivocadas, gerando dívida pública sem contrapartida, fazendo essa dívida se multiplicar como uma bola de neve ao aplicar condições extremamente onerosas. E quando chega num ponto, aí aplicam austeridade como se aquela dívida fosse resultado de muita gastança. O que é austeridade? É a aplicação de medidas relativas ao corte de gastos sociais, com saúde, educação, investimentos em transporte e outros investimentos públicos, para que sobrem recursos para o gasto financeiro. Nós teríamos, sim, que aplicar a austeridade no gasto financeiro. Nós temos que carregar a bandeira da austeridade para exigir que seja feita uma auditoria da dívida, para que a gente pare de pagar dívidas ilegais, essas condições financeiras, esses juros indecentes que são aplicados aqui no Brasil, que não tem justificativa técnica, política e jurídica. É uma deliberação de sangrar o País e para quê tudo isso? Se a dívida é gerada sem contrapartida, se cresce por condições abusivas, se sacrifica a sociedade? Para continuarem explorando o Brasil do jeito que exploram, levando principalmente as nossas valiosas matérias-primas. A gente tem que perceber que a dívida é um esquema de subtração de recursos para impedir o nosso desenvolvimento econômico, para impedir um investimento maciço em educação que precisa acontecer no País.


JC - Sindicatos que representam os servidores estaduais insistem na revisão ou revogação de incentivos fiscais, e o próprio governo admite a necessidade de rever o que é atualmente concedido. Na sua visão, o que pode ser revisado?

Maria Lucia - Os incentivos fiscais são tratados dentro do arcabouço do modelo tributário. Com isso, você abre mão de arrecadar algo, então o nosso modelo tributário já tem vários aleijões, é um modelo distorcido. Os mais ricos não pagam imposto no Brasil. Eu estou falando dos milionários mesmo, dos detentores de fortunas. Um dado recente que a Receita Federal divulgou mostra que 0,5% da população economicamente ativa detém 30% da renda declarada da Receita Federal e 43% do patrimônio declarado. Todo o patrimônio fora do País, sonegado, está fora. A concentração de renda no Brasil é brutal, e isso acontece porque nosso modelo tributário não é um veículo para distribuir renda. No caso dos incentivos, a gente tem que ter critério. Alguns são fundamentáveis. Por exemplo, incentivos para a agricultura familiar, para a produção de alimentos. Esses são muito bem-vindos. Agora, existem abusos, como incentivos relacionados a setores que não precisam disso. Você pode ver setores que, além de serem altamente lucrativos, recebem incentivo, não recolhem o tributo e acabam enviando o tributo para o exterior. Tem que haver uma revisão dos abusos e das distorções.


JC - Como a auditoria cidadã pode ajudar, de forma prática, a fazer essa revisão?

Maria Lucia - A auditoria, para ser feita, precisa inicialmente de duas coisas: primeiro, uma equipe multidisciplinar, com pessoas que tenham experiência em contabilidade, na área jurídica etc. Chamamos estudantes, pessoas de todas as áreas, para analisar os documentos e dados. A gente busca nos sites o que já está disponível. Para o que não está disponível, a gente faz pedidos com base na Lei de Acesso à Informação, ou pede a parlamentares para fazer requerimento de informações. Vai compilando os dados, caminhando e descobrindo. Nós queremos derrubar o mito de que essa questão da dívida é algo só para especialistas. É importante que haja um ou outro especialista na equipe, para que as pessoas não esbarrem em uma primeira dificuldade e desistam. É importante a presença dos especialistas para ajudar a avançar.


JC - Como a senhora enxerga a fiscalização que é feita em relação à sonegação nos estados? Poderia ser melhor?

Maria Lucia - Com certeza. Além de revisar o modelo tributário em si, pois, com alguns ajustes, nós poderíamos dobrar, talvez triplicar a arrecadação. Por exemplo, corrigindo os desvios do ISS (Imposto sobre Serviços) de bancos sobre as taxas. Nós fizemos um cálculo do imposto federal: se cobrássemos apenas 5% das fortunas acima de R$ 50 milhões, anualmente isso daria uma arrecadação de R$ 90 bilhões. Mas precisamos investir na administração tributária. Se olharmos, vários municípios do Brasil não cobram tributo, vivem do Fundo de Participação dos Municípios. Em vários, sequer há fiscalização. Nos estados, já existe uma estrutura tributária, mas, com certeza, faltam investimentos, aparatos para dotar a fiscalização de instrumentos. E um desses instrumentos passa pelo fim da impunibilidade. Hoje, muitas vezes, o auditor fiscal fica desmoralizado. Ele corre riscos. Ao fiscalizar e combater o crime organizado, recebe ameaças de morte, mas leva o seu trabalho até o fim. Quando ele apura uma fraude, está lidando com criminosos. Mas o que acontece então? O criminoso pede um parcelamento a perder de vista e está tudo certo. Não há apuração criminal, não tem nenhuma consequência. É urgente revogar a lei que acabou com a punibilidade de crimes contra a ordem tributária. O fim da punibilidade é um incentivo à sonegação.


JC - A Islândia, quando do colapso de seu sistema bancário, em 2008, rechaçou as políticas de austeridade impostas por meio de um referendo. A senhora considera essa uma experiência bem-sucedida de participação cidadã nas finanças?

Maria Lucia - Super bem-sucedida. Os dados e a história estão comprovando isso. Enquanto os outros países europeus se dobraram à interferência da Troika (formada pelo Fundo Monetário Internacional, Banco Central Europeu e Comissão Europeia); na Islândia, o povo convocou um plebiscito popular, invalidado pelo governo. Ocorreram eleições presidenciais, e um dos candidatos prometeu, se fosse eleito, a realização desse referendo. Ele foi eleito, houve o referendo, as pessoas disseram não ao pagamento daquela dívida. Os próprios cidadãos deram a ideia de uma assembleia constituinte popular. As pessoas lá na Islândia eram indicadas ou se colocavam à disposição para compor esta assembleia, e tinham que ser votadas por pelo menos 30 cidadãos. Eles sentaram, estudaram, redigiram uma nova Carta Magna e estão dando conta. Esse tipo de participação, seja na auditoria cidadã, seja em outras iniciativas populares, traz uma elevação da consciência de cidadania. As pessoas passam a participar mais, a compreender que o que é público é de todos, ao contrário de achar que o público não é bom. O serviço público é ótimo, é de todos nós, e a gente tem que se unir para acompanhar, vigiar para garantir que o Estado cumpra o seu papel, regule a sociedade. Nós precisamos do Estado forte para regular a sociedade e coordenar todas essas atividades que só o Estado pode fazer. Serviços que, se caíssem em mãos privadas, que visam ao lucro, talvez uma parte da sociedade ficasse 100% excluída. E isso daí seria uma barbárie.


JC - Como foi a experiência na auditoria da dívida do Equador?

Maria Lucia - No Equador, a experiência aconteceu a partir do Executivo. O presidente Rafael Corrêa soube aproveitar os resultados. Ele baixou um decreto, nos deu a atribuição de requerer documentos a qualquer órgão, e dizia que a falta de resposta implicaria em providências baseadas na lei de crimes contra a administração pública. Entrávamos nos arquivos, e foi assim que encontrei o contrato de renúncia de prescrição da dívida. Foi impressionante e extremamente gratificante, porque foi justamente o trabalho relacionado com a dívida externa junto a bancos privados internacionais que deu como resultado a anulação da dívida.


JC - E na Grécia?

Maria Lucia - No caso da Grécia, foi a experiência mais forte da minha vida como auditora. Houve muitas dificuldades, porque foi uma iniciativa do Parlamento, não do governo. A equipe era muito reduzida, e fiquei encarregada de estudar os contratos (para o pagamento da dívida grega), que eram abusivos. Foi um trabalho que exigiu muita dedicação mesmo, e em pouco tempo, sete semanas. Eu fiz um relatório extenso, de mais de 40 páginas, e depois dessa pressa toda, apenas uma pequena parte do meu trabalho entrou no relatório da comissão da dívida. Eu fiquei com aquela sensação de ter tido aquele sacrifício todo... e acho que teria ajudado se todo o relatório fosse incluído.

Perfil

Maria Lucia Fattorelli Carneiro nasceu em Belo Horizonte em 10 de abril de 1956. Graduada em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais em 1978, também é formada em Ciências Contábeis e possui MBA em Administração Tributária pela Fundação Getulio Vargas. De 1982 até 2010, atuou como auditora fiscal da Receita Federal, além de presidir, de 2003 a 2005, o Sindicato dos Auditores Fiscais da Receita (Unafisco Sindical). É coordenadora nacional da Auditoria Cidadã da Dívida desde 2000. Como tal, prestou assessoria técnica na CPI da Dívida Pública, na Câmara dos Deputados, em 2009 e 2010. Entre junho de 2007 e setembro de 2008, integrou a Comissão de Auditoria Integral da Dívida Pública do Equador, nomeada pelo presidente Rafael Corrêa. De abril a junho do ano passado, a convite da presidente do Parlamento grego, fez parte do Comitê da Verdade sobre a Dívida Pública, que atuou na auditoria da dívida grega. Em 2014, concorreu a deputada federal do Distrito Federal pelo P-Sol.

http://jcrs.uol.com.br/_conteudo/2016/05/politica/497500-termos-para-repactuar-divida-sao-absurdos-diz-maria-lucia.html 




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