Reforma do Ensino Médio
Reforma do Ensino Médio: Experiência e Pobreza - I
A reforma do ensino médio foi tema da campanha presidencial em 2014, mas não ocupou o centro do debate político. O tom comum a todas as falas era: “o ensino médio não atende às expectativas dos jovens, são muitas disciplinas, é preciso ter um grau de escolha, é preciso preparar para o trabalho”. Lugares comuns que ecoam a fala dos “especialistas” em educação ligados a institutos privados e com sólida formação em economia ou administração. Nesse tema, como em outros, mais uma vez o debate não se instaura porque só uma voz se faz ouvir. E assim sucumbimos à doxa de nosso tempo, convertendo a educação em mais um problema econômico.
Nesse debate empobrecido, a educação como direito a uma formação que possibilita e enriquece a vida deu lugar à educação como bem econômico que condiciona a integração pelo consumo. Nesse ponto, as principais candidaturas também se igualavam na falta de imaginação política. Parece-me que a reforma apregoada é um sintoma deste consenso, porque ela pretende fazer do ensino médio a imagem exata do mundo em que padecemos: na impossibilidade de imaginar outros horizontes políticos, fiquemos com as inelutáveis realidades do mercado.
Há muito que dizer sobre o conformismo intrínseco ao PL 6840/2013: corrobora uma mudança já em curso por meio da “gestão” na educação, não questiona as condições estruturais que inviabilizam a educação básica pública. Em nome da diversificação curricular sugere “escolhas” que reforçarão a profissionalização em detrimento de aspectos formativos de base humanista. Nesse primeiro movimento, desejo discutir este último aspecto e, nesse sentido, é preciso dizer que o projeto dos deputados Reginaldo Lopes (PT-MG) e Wilson Filho (PTB-PB) abandona a configuração dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio e das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio bem como o princípio da interdisciplinaridade então proposto.
A configuração de três áreas interdisciplinares é substituída por quatro áreas: linguagens, matemática, ciências da natureza e ciências humanas como nas diretrizes de 2012. Mas extrapola a proposição original do Pacto Nacional pelo Ensino Médio ao negar qualquer identidade disciplinar, ao propor uma diversificação da realização curricular que inclui a profissionalização e ao sugerir temas transversais como empreendedorismo e direitos do consumidor, evidências de uma noção limitadora da formação e seu sentido político.
A reforma pretende, a pretexto de uma inovação necessária, promover a interdisciplinaridade à custa das disciplinas – o que todos os teóricos rechaçam, mas não importa, porque assim se agrada e economiza. Como? Formando professores exclusivos para o ensino médio em licenciaturas por área de conhecimento. Pressupõem que um professor generalista seja capaz de lidar com conteúdos complexos de cada tradição disciplinar. Um engano que fará da interdisciplinaridade uma panaceia porque supõe possível suspender toda a história das disciplinas acadêmicas e escolares em nome de um ensino médio “atrativo” e supostamente destinado a enfrentar a complexidade do mundo contemporâneo.
Legitima-se um produto adequado ao tempo presente – como se educar nada tivesse a ver com outros tempos, com uma tradição – e aos desígnios dos gestores privados e públicos: fazer mais por menos, porque um professor generalista cobre todas as áreas. Onde haveria um historiador, um geógrafo, um sociólogo e um filósofo em diálogo produtivo, que se coloque um único professor da área de ciências humanas, mais um solitário entre tantos solitários. E assim o conhecimento e o saber, que são necessariamente intersubjetivos, são reduzidos em sua potência transformativa. Toda uma história do conhecimento e das artes reduzida a generalidades. Só com esta medida, já ficaríamos mais pobres numa escola para pobres, mas a reforma não para por aí...
Positivamente, a reforma prevê um aumento da carga horária e diversificação da realização curricular. Esta se expressa em temas transversais e na escolha de ênfases no último ano do ensino médio. Caminharemos para o ensino médio em tempo integral, com alguma liberdade de escolha pelos estudantes e que não seja a repetição de conteúdos do ensino fundamental. Mas eu pergunto: qual será a qualidade desse tempo extra quando se confinam as disciplinas em uma formação generalista dos docentes? E mais, quando se preconiza a profissionalização precoce na escola regular – algo que já foi realizado em outros tempos mais sombrios e tentativamente posto em prática em programas como Reinventando o Ensino Médio em Minas Gerais.
E qual será a qualidade das escolhas no ultimo ano de formação? Parte da primeira pergunta já foi respondida acima, a outra podemos resumir no seguinte: os professores generalistas terão poucas condições de formação e espaço para propor projetos de investigação comuns face ao avanço dos processos de profissionalização. Não custa lembrar que muitos jovens deixam o ensino médio para trabalhar – porque isso é mais uma imposição do que uma escolha.
Qual espaço terá a investigação como princípio educativo num espaço dominado pelo horizonte da profissionalização? Esta mesmo, dentro dessa escola projetada, talvez se resuma a um treinamento – corremos o risco de sancionar e generalizar a transferência para o Estado da tarefa de formar a mão-de-obra adequada a cada espaço-tempo capitalista no Brasil. Essa tendência da reforma somada a uma interdisciplinaridade fraca confirma nosso caminho em direção à pobreza: nada esperar da educação em nível médio senão um único dia na máquina que virou o mundo.
* Marcelo Abreu é professor da Universidade Federal de Ouro Preto e tem experiência docente nas áreas de Ensino de História, Teoria da História e História da Historiografia.
http://nehmfimdahistoria.blogspot.com.br/2015/06/reforma-do-ensino-medio-experiencia-e.html