Quanto custou a GM?
Por Vitor Necchi
Em meio à crise do setor automotivo, pátios cheios de carros e desemprego em toda a cadeia produtiva. Completam-se vinte anos do anúncio da instalação da montadora da General Motors/Chevrolet no Estado. Pouco se sabe sobre quanto custou ao RS e quanto retornou ao Estado em dados concretos os altíssimos investimentos em estrutura e incentivos fiscais concedidos.
Especialistas se dividem entre reconhecer o incremento na geração de empregos, mesmo abaixo do projetado, e criticar a opção por um modelo de desenvolvimento baseado em guerra fiscal, totalmente identificado com o século passado e que já não arregimenta muitos defensores. A inauguração da GM no Estado foi tema de reportagem do Extra Classe, em março de 1997. Ao contrário da mídia diária que, festivamente, anunciava a decisão da empresa pelo RS, o EC fez uma investigação mais aprofundada sobre os números que envolviam os incentivos fiscais em troca do “sim” da GM: o governo deixaria de arrecadar R$ 1,7 bilhão. A reportagem ganhou menção honrosa no Prêmio ARI de Jornalismo daquele ano.
A comemoração dos 15 anos da inauguração do Complexo Industrial Automotivo de Gravataí (Ciag), onde está instalada a montadora da General Motors (GM), ocorreu em 20 de julho do ano passado. A proximidade de outra efeméride ligada à empresa suscita uma abordagem menos festiva, e mais analítica, por conta da polêmica que houve no final de 1996, quando a GM anunciou sua decisão de construir uma fábrica no Rio Grande do Sul. Naquela época, a euforia dominou, e a imprensa pouco apurou sobre os termos do negócio nebuloso firmado pelo governo do então peemedebista Antonio Britto (1995-1999), em plena guerra fiscal travada entre os estados. Duas décadas depois, quando o debate político em torno desse modelo de desenvolvimento arrefeceu, analistas que se debruçam sobre os dados indicam ganhos advindos daquele processo, como a geração de empregos, mas outros criticam investimentos altíssimos em um modelo de desenvolvimento que dialoga com o século passado, e não com o futuro.
Graças ao Regime Automotivo decretado em 1995, os recursos internacionais direcionados ao Brasil se concentraram na indústria automobilística. Essa medida turbinou a guerra fiscal entre os estados, que não mediram esforços a fim de conquistar o capital que gigantes internacionais despenderiam para marcar presença no país.
O Governo silencia diante do tema e não é transparente no que tange a ofertar informações à questão das isenções fiscais e demais investimentos do Estado para garantir a fábrica, porém celebra o incremento à economia. A Secretaria Estadual do Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia destacou para comentar a questão a assessora técnica Maria Paula Merlotti, que é coordenadora executiva do Setor Automotivo da pasta, mas ela se limitou a celebrar a participação do Rio Grande do Sul na indústria automobilística nacional, citando dados da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), os quais posicionam o Estado como o quarto com maior produção no setor em 2015, respondendo por 9,1% do total. Em 1990, o índice era de 0,2%. “O segmento tem elevado índice de integração com importantes cadeias de produção do Estado”, afirma Maria Paula. Questionada sobre a política de isenções fiscais e sobre quais benefícios previstos inicialmente a GM estaria desfrutando, a assessora considerou que o tema ainda é delicado e o remeteu à Secretaria da Fazenda, que, no entanto, não se pronunciou. Também não há como saber a posição da GM, em razão da recusa do grupo em falar sobre o assunto.
Conforme o economista Alberto Nogueira, da Secretaria do Planejamento, Mobilidade e Desenvolvimento Regional, a pouca transparência acerca dos fatos é um sinal de que os incentivos não devem ser tão vantajosos para o Estado, como se apregoa.
Nogueira avalia que defensores dos incentivos venceram o debate em torno da guerra fiscal, salientando que temas importantes ficaram de fora. O motivo dessa vitória deve-se, primeiramente, segundo ele, ao termo imposto: guerra. Em uma guerra, ficam justificadas ações de exceção. “O que seria uma atribuição da União para reduzir desequilíbrios regionais e alocar a então nova onda de investimentos automotivos foi, na prática, um silêncio planejado para compor um quadro favorável à exploração dos estados e municípios pelas montadoras”, critica.
Privatização dos ativos do Estado
O cientista político Tarson Núñez, da Fundação de Economia e Estatística (FEE), ressalva que este modelo tornou inevitável que os estados participassem da guerra fiscal. “Abrir mão de investimentos seria insustentável, do ponto de vista político, pois se perderiam empregos e oportunidades, e isso gerou concorrência predatória”, analisa. “O estado com mais recursos de investimentos saía em vantagem, mas, na outra ponta, saúde e educação perderam recursos.”
“O projeto do Britto era privatizar os ativos do Estado e buscar – e o fez com afã – uma montadora”, lembra o ex-deputado estadual Flávio Koutzii, líder do PT na Assembleia Legislativa na época do anúncio de que a montadora viria para o Rio Grande do Sul. Koutzii afirma que, com o dinheiro arrecadado a partir das privatizações, o então governador gerou mais um orçamento anual.
Os acontecimentos que agora completam duas décadas se enquadram em um ciclo promovido pelos dois governos do presidente Fernando Henrique Cardoso (1995 a 2003), a chamada política neoliberal. Muitos consideram desgastada a expressão, usada para traduzir a diretriz econômica que preconiza redução do Estado, desregulamentação de determinados setores, privatização e atração de investimentos estrangeiros. Koutzii esclarece que o neoliberalismo ganha neste momento uma nova grande ofensiva com o presidente interino Michel Temer.
DESVIOS – A vitória dos defensores dos incentivos fiscais sustenta-se em outras questões esquecidas, aponta Nogueira. “O tema do tax expenditure (gasto tributário) foi muito bem alijado do debate”, reconhece. Para explicar, ele desmembra a destinação do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS): em um estado, de cada R$ 100 arrecadados, R$ 25 devem ir para a educação (no Rio Grande do Sul, são R$ 35) e R$ 12, para a saúde. Os R$ 53 restantes podem sustentar outras finalidades, mas esta conta aplica-se apenas para o recurso efetivamente arrecadado. “Se o Estado concede o incentivo, e esse incentivo é no imposto, então ele pode dar os R$ 100 de incentivo e, assim, legalmente desviar recursos que seriam da saúde e da educação”, alerta.
Drenagem do ICMS dos municípios
Há uma questão importante que não foi discutida: a drenagem de recursos do ICMS dos demais municípios para Gravataí. Os municípios recebem uma cota-parte do imposto, que é definida, entre outros critérios, pela proporção da contribuição de cada um para o total recolhido. Quando a GM começou a operar em Gravataí, ela aumentou a cota-parte do município no ICMS, pois a produção de automóveis gera imposto. No entanto, como o incentivo atinge o próprio imposto, o ICMS da GM não virou arrecadação real, apenas contábil. Desse modo, Gravataí passou a receber uma cota maior do total arrecadado, mas os demais municípios tiveram participações menores. Como o bolo não aumentou, devido às isenções da empresa instalada em Gravataí, as outras cidades passaram a receber menos recursos oriundos da arrecadação total. Resumindo: a instalação de um grande empreendimento, combinada com as regras vigentes de repartição do ICMS concentram recursos de 496 municípios gaúchos em direção a um só. O mesmo ocorreria em outras cidades que tivessem empresas contempladas com incentivos fiscais.
Empregos ameaçados e política industrial em xeque
O diretor de Assuntos Administrativos do Sindicato dos Metalúrgicos de Gravataí (Sinmgra), Valcir Ascari, afirma que é difícil analisar se a política de incentivos foi acertada ou não, mas ressalva que os postos de trabalho gerados devem ser comemorados. “A empregabilidade foi importante”, avalia. Ele destaca também as alterações no entorno da montadora. “Do ponto de vista de quem mora em Gravataí, foi muito importante a vinda da GM, que impactou a cidade e a região. Com ela, chegaram shoppings, hotéis, e a arrecadação do município saltou.”
Atento às recentes demissões verificadas na GM de Gravataí e à crise do setor, Ascari alerta que poderão ocorrer mais desligamentos, se não houver uma política de renovação de frota e uma nova política industrial. “O avanço tecnológico é inevitável, e os empregos artesanais perdem espaço”, lembra. “Transporte público deveria ser repensado, e carros velhos e poluentes devem ser trocados.” O dirigente declara que o movimento sindical vem discutindo temas como o futuro do setor automotivo e questões ambientais. “É um debate arriscado, mas necessário, temos que propor algo”, reconhece Ascari.
Impacto ambiental não entrou na conta
O cientista político Tarson Núñez recupera um tema urgente e contemporâneo: o investimento em montadoras gera problemas ambientais e congestiona mais ainda o trânsito em metrópoles. Ao priorizar montadoras, foi resgatado o símbolo maior da indústria brasileira do século passado, que é o automóvel. “Apegados à miragem do passado, não olhamos de que maneira o Rio Grande do Sul poderia se projetar em novas possibilidades”, lamenta. “Nossa elite empresarial opera com paradigmas do século 20.” No mundo inteiro, discutem-se limites para o crescimento e os impactos ambientais. “Sustentabilidade e crescimento precisam pautar novos modelos de desenvolvimento”, defende ele.
A geração de empregos como justificativa
O investimento destinado à GM era estimado em US$ 600 milhões, e contava-se com a criação de milhares de empregos, embora análises céticas ponderassem que a indústria automotiva, cada vez mais, alcança elevados índices de robotização na produção. O economista Antônio Ernani Martins Lima, do Badesul Desenvolvimento – Agência de Fomento/RS e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), afirma que, na época, os novos postos de trabalho eram estimados em 100 mil, mas acredita que o dado mais realista se aproxime, hoje, de 50 mil. O economista e pesquisador Rodrigo Morem da Costa, da FEE, tem dados precisos: em 2014, o setor automotivo mantinha 49.391 empregos no Estado, sendo 17,6% em Gravataí, o que totaliza 8.692 postos.
O expressivo decréscimo de 50% nas expectativas de geração de empregos não afeta o entusiasmo de Lima: “Apenas estes empregos já compensariam a renúncia fiscal”. Ele enfatiza que o principal retorno para o Estado foi a geração de emprego em três níveis: diretos (GM), na cadeia produtiva que forma o CIAG e na economia como um todo. Destaca que, quando o benefício fiscal cessar, a empresa passará a produzir impostos e seguirá fomentando a economia. Consultada acerca da permanência do incentivo, a Secretaria Estadual da Fazenda silenciou.
Uma abordagem contraposta à de Lima pode ser feita quando se coteja a quantidade de investimento necessário para a geração de um emprego. Isso está na Matriz de Insumo-Produto (MIP), um conjunto de informações sobre a estrutura produtiva do Estado, elaborado pela FEE. O documento apresenta que a indústria automobilística não está entre as maiores empregadoras. “Isto coloca o tema da empregabilidade no seu devido lugar: se são empregos que se quer, então não é a indústria automobilística que se deve buscar”, pondera Alberto Nogueira.
Tarson Núñez alerta que a concessão de isenções fiscais atende a interesses pontuais de empresas e gera empregos, mas, do ponto de vista geral da sociedade, não é benéfica. “A indústria automotiva é um modelo do século 20”, descreve. “Tem poder de ramificação e mobiliza outros setores. Um olhar mais estratégico, porém, indica que esta indústria gera empregos no presente, mas não dialoga com o futuro.”
Uma fábrica de presente
“A GM foi bem cara para o Estado”, reconhece o economista Antônio Ernani Martins Lima. Para o Governo custear o investimento, parte do capital empregado derivou da venda de empresas estatais. Na época do anúncio, divulgou-se que o Governo financiaria 40% da unidade (US$ 240 milhões) da GM e concederia incentivos polpudos: financiamento de um terreno de 450 hectares, construção de um centro de facilidades (rede elétrica, telefonia, água e esgoto), recuperação de estradas (BR-101 e BR-116), construção de um terminal portuário privativo para distribuição e 15 anos de isenção de ICMS.
O economista Alberto Nogueira sustenta que uma característica permanece inerente às montadoras: a vocação para explorar recursos públicos. “Os governos têm sido condescendentes com esta artificial relação entre investimento privado e dinheiro público”, critica. Ele considera curioso que governos com linhas mais neoliberais – e que, portanto, apregoam a superioridade da dinâmica empresarial e da livre iniciativa – sejam justamente aqueles que mais atentam contra essa natural superioridade, fornecendo vultosas benesses públicas a tão eficientes empreendimentos. “É triste que esses recursos tomem esses destinos, no lugar de aperfeiçoar os combalidos sistemas educacionais e de saúde”, compara.
Governo paga duas e leva uma
A assessoria econômica do PT na Assembleia Legislativa indicou que, em 15 anos, o Estado abriria mão de arrecadar cerca de R$ 1,7 bilhão (valores da época). Ou seja, quase três vezes o valor do projeto, o que levou o então deputado estadual Flávio Koutzii a resumir a matemática em uma frase impactante: “É como dar duas fábricas de graça em troca de uma”.
“Na época, houve muito debate, principalmente porque a General Motors é uma grande empresa, com recursos”, lembra Antônio Ernani Martins Lima, do Badesul. Os opositores alegavam que não haveria necessidade de isentar ou financiar ICMS, pois a GM teria condições de se bancar sozinha. A polêmica se estendeu a partir de novos movimentos. “A Ford veio na esteira da GM, por conta dos largos incentivos, mas aí ocorreu aquilo tudo que se sabe, e o projeto ficou na metade”, lamenta Lima. O economista se refere à ida da Ford para a Bahia, em 1999, após a empresa romper de maneira unilateral o contrato assinado ainda no governo Britto. Seu sucessor, Olívio Dutra (PT), tentou, em seu mandato (1999-2003), rediscutir os termos do acordo, por conta das elevadas isenções fiscais e dos empréstimos com juros menores do que os praticados no mercado. A empresa recusou e rumou para o Nordeste, respaldada por uma medida provisória editada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, a qual garantia mais vantagens para a Ford se instalar no município de Camaçari, a 41 quilômetros de Salvador.
Guerra fiscal e incentivos a rodo
Nos anos 1980, a economia do Brasil encontrava-se estagnada. No Rio Grande do Sul, a crise era pior. No mundo ocidental, a indústria automobilística, em particular GM, Ford e Volkswagen, precisava dar uma resposta competitiva à expansão das concorrentes japonesas; então, na década seguinte, começou a se expandir. Uma das decisões foi regionalizar a produção, em decorrência dos blocos econômicos, e Brasil e Argentina acabaram escolhidos como alvo dos investimentos, devido ao Mercado Comum do Sul (Mercosul). O governo FHC tratou de correr atrás da oportunidade, na tentativa de retomar os níveis de produção e de emprego. O Brasil saía em vantagem, pois é o maior e mais atrativo mercado da América Latina, ocupando, atualmente, o quarto lugar entre os países que mais compram veículos, afirma o economista Rodrigo Morem da Costa, da FEE.
“A indústria automobilística é grande não somente por ela em si, mas por toda a cadeia que movimenta”, dimensiona Costa. “O peso e o investimento vão além do setor automotivo, então cada estado fez seu pacote de incentivos.” Quem desse mais isenções saía em vantagem na atração de negócios que alavancassem as fragilizadas finanças públicas. O Paraná foi um dos que mais se beneficiou, tendo vencido o Rio Grande do Sul na disputa pela Renault ao bancar 50% de um total superior a US$ 1 bilhão, em 1996. Em três anos, a empresa francesa implantou três fábricas (veículos, motores e utilitários). Outras montadoras atraídas pelo estado paranaense foram Audi (1997) e Chrysler (1998).
Neste contexto de grande competição, o governo Britto partiu para um jogo mais pesado, a fim de não perder também a GM. Tratava-se de algo considerado estratégico, pois vigorava a crença de que as privatizações, a vinda de uma montadora e a renegociação da dívida do Estado garantiriam um salto para o desenvolvimento do Rio Grande do Sul.
Na ocasião, foi anunciado que a fábrica produziria, de início, 160 mil unidades anuais e, em dez anos, passaria para 400 mil unidades, ainda dentro do período coberto pela isenção fiscal. Rodrigo Costa apresenta os dados atualizados. Na inauguração da GM, em 2000, havia 16 sistemistas no condomínio de Gravataí e uma capacidade de produção de 120 mil veículos (Celta) por ano. Em 2006, com a primeira expansão, a capacidade aumentou para 230 mil (Celta e Prisma). Em 2012, com a segunda expansão, passou para 380 mil (Celta, Prisma e Onix). Em 2016, há 24 sistemistas.