Processo de extinção da Fundação
Arquivos em tempos de austericídio: a extinção da FIGTF
Como o processo de extinção da Fundação Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore diz muito sobre a forma como os arquivos são tratados
Em meados do ano passado, o governador do Estado do Rio Grande do Sul, José Ivo Sartori, enviou um pacote de medidas de austeridade à Assembleia Legislativa (ALERGS). Uma parte considerável desse pacote “austericida” tratava da extinção de oito fundações de pesquisa, dentre elas a Fundação Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore (FIGTF). A FIGTF nasceu em 1954, como Instituto de Tradição e Folclore — organismo do então Departamento de Cultura da Secretaria de Educação e Cultura do RS. À época de sua fundação, era um órgão dinamizador de pesquisas na área do folclore, mas a crescente influência do Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG) na política cultural do Rio Grande do Sul fez com que a entidade se transformasse numa espécie de “ente oficial” do tradicionalismo na estrutura do Estado. Em 1974, a Lei 6.736 autorizou a criação do Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore (em caráter de fundação pública), com objetivo principal de pesquisar e divulgar a “cultura gauchesca”.
Ao longo de 43 anos, a FIGTF (o “F” de Fundação quase nunca é usado) promoveu investigações, levantou dados, colecionou livros, discos e indumentárias, organizou eventos e, claro, produziu documentos, muitos documentos. Pelos idos de 2011, conheci parte do imenso arquivo do instituto, como pesquisador. A convite de seu então diretor técnico, Luiz Claudio Knierim, participei da montagem da exposição 40 anos dos festivais nativistas, no mesmo ano. Mergulhado nos arquivos do órgão, pude constatar que nenhuma instituição pública do Rio Grande do Sul reuniu maior número de fontes documentais sobre o tradicionalismo e a música gaúcha como a FIGTF. Voltei a trabalhar lá — como estagiário voluntário — em 2015. Desse trabalho, derivou minha monografia de conclusão de curso em Arquivologia: Arquivos da Tradição: uma reflexão crítica sobre os estudos de contexto arquivístico: o caso FIGTF.
Conto tudo isso não só para ilustrar a relação que tenho com o “tema IGTF”, mas também porque a extinção desta e de todas as demais fundações calou fundo em meu “ser político e arquivístico”, ano passado. Como historiador e arquivista, desde o início achei preocupante a questão do destino dos arquivos destas instituições — muitas delas com mais de quatro décadas de existência. Quis o destino, entretanto, que essa preocupação se aguçasse justamente com a fundação com a qual tive mais contato, a própria FIGTF.
Talvez pela debilidade atual do tradicionalismo, ou pela precariedade estrutural da própria fundação (poucos funcionários, trabalho de restrita repercussão social, sanha do Governo por promover desmontes e mostrar serviço etc.), a FIGTF foi a primeira a ser, de fato, extinta. Segundo essa reportagem de Zero Hora, o governador José Ivo Sartori sancionou a extinção em janeiro. O Governo diz que as funções desempenhadas pelo instituto foram incorporadas pela Secretaria da Cultura, Turismo, Esporte e Lazer (Sedactel). Dos sete funcionários, cinco foram exonerados, um incorporado à secretaria e um designado para realizar o encerramento contábil do órgão.
A sede da FIGTF, um espaço relativamente amplo no Centro Administrativo Fernando Ferrari (CAFF), na região central de Porto Alegre, começou a ser esvaziada no final do mês passado. Um grupo formado por doze técnicos do Estado participou da remoção do acervo, formado por mobiliário, livros, documentos, discos de vinil e outros objetos. A assessora técnica da Sedactel, Denise Greiss, ficou responsável por coordenar os trabalhos. De acordo com suas declarações para Zero Hora e também via Facebook, os técnicos decidiram dividir o acervo documental da FIGTF entre três instituições. Os 18 mil discos de vinil e os CDs do Museu Regional do Som passaram à custódia da Discoteca Pública Natho Henn; a biblioteca do IGTF foi incorporada à Biblioteca Pública do Estado; e o restante do material (formado por objetos e arquivos) passou a integrar o Memorial do Rio Grande do Sul. A mudança terminou na última sexta-feira, dia 7 de junho, quando as derradeiras mesas e cadeiras foram retiradas da sala que um dia sediou a fundação.
No mesmo dia 7, o jornalista e crítico musical Juarez Fonseca publicou esta postagem no Facebook:
De acordo com a postagem, na mesma sexta-feira em que as últimas peças do mobiliário saíram da FIGTF, Luiz Claudio Knierim viu parte do acervo jogado no lixo ou perdido no chão, em frente à instituição. Como já anunciei antes, Knierim foi diretor técnico da FIGTF e, mais que isso, um abnegado defensor dos trabalhos desenvolvidos pelo órgão. O conheço há bastante tempo e boa parte das atividades que fiz junto ao instituto só foram possíveis graças ao seu apoio. Sua denúncia se espalhou com furor pelas redes sociais, sobretudo depois que Juarez Fonseca e várias outras personalidades da cultura sul-riograndense compartilharam fotos e textos sobre o caso.
Na postagem de Fonseca, que registra 419 compartilhamentos e mais de 150 comentários, há mostras genuínas de indignação, algumas rusgas mal-resolvidas entre ex-servidores da FIGTF e pelo menos dez manifestações de técnicas do Estado quanto ao trabalho de esvaziamento da sede da fundação. A própria Denise Greiss, inclusive, explica como foi o procedimento de encaixotamento e traslado dos objetos. Por fonte extra-oficial, mas de absoluta confiança, soube que houve o maior zelo no trabalho. As folhas abandonadas, fotografadas por Knierim, segundo essa mesma fonte, possivelmente estavam em alguma gaveta não-revisada, ou no fundo de algum armário. Elas devem ter caído no momento do traslado e os responsáveis pelo transporte não se preocuparam em recolhê-las — diz essa mesma fonte. Como os registros mostram, ao que parece apenas alguns poucos documentos sofreram esse infortúnio.
Não vou entrar no mérito do trabalho de remoção do acervo, ou mesmo de partes do mesmo que possam ter se perdido. Como já disse, conheço Knierim para saber de sua genuína preocupação com aquele espólio e também tenho amigos e colegas na Sedactel — gente qualificada e preocupada com o patrimônio histórico-cultural do Estado. Não tenho motivos para desacreditar na índole e nas boas intenções de quem fez a denúncia e de quem executou o trabalho de remoção.
A questão aqui é outra. Arquivística, para ser mais exato.
Primeiramente: embora nem todos conheçam, o Brasil possui considerável legislação na área de defesa do patrimônio arquivístico. Temos, inclusive, uma Lei de Arquivos, de 1991, bastante completa — embora carente de atualizações. Essa lei (e mais uma penca de resoluções) trata de casos como o da extinção da FIGTF. Conforme o parágrafo 2º do Art. 7º da Lei 8.159/1991 (a própria Lei de Arquivos), as instituições públicas ou de caráter público cujas atividades tenham cessado devem ter sua documentação recolhida à instituição pública arquivística, ou ainda à instituição sucessora — quando houver. É importante salientar, ainda no escopo da Lei de Arquivos, que são considerados arquivos os “conjuntos documentais produzidos e recebidos, no exercício de suas atividades, por órgãos públicos de âmbito federal ou estadual […] em decorrência de suas funções administrativas, legislativas e judiciárias” (caput do Art. 7º, grifo meu). Portanto, tais arquivos não devem ser desmembrados, selecionados ou arranjados sem que haja conformidade com o plano arquivístico da instituição (quando houver) ou com as diretrizes legislativas arquivísticas da Administração Pública.
No caso de arquivos de instituições estaduais, além da Lei Federal 8.159/1991, o Estado do Rio Grande do Sul conta com a Instrução Normativa Nº004/2009, que estabelece e regulamenta os procedimentos de recolhimento de acervos arquivísticos pelo Departamento de Arquivo Público. Esta instrução encontra eco no Decreto Estadual Nº 52.808/2015, que reorganiza o Sistema de Arquivos do Estado do Rio Grande do Sul. Conforme a IN Nº004/2009, em seu Cap. V, Art. 9º:
Havendo a extinção de Órgão ou Entidade da Administração Pública Estadual, a Unidade Administrativa que for designada para realizar o processo de liquidação deverá solicitar à Secretaria da Administração e dos Recursos Humanos o assessoramento técnico do Departamento de Arquivo Público no que pertine às orientações necessárias à preservação e à destinação do patrimônio documental acumulado, nos termos do § 2º do art. 7°, da Lei n.º 8.159, de 08 de janeiro de 1991. (Grifo meu)
Obviamente, os técnicos do Estado conhecem essa legislação. Novamente, não se trata de subestimar ou criticar seu trabalho. O problema central e que de fato interessa é de outra gravidade. Embora existam leis, o descumprimento das mesmas muitas vezes se dá pelo total desconhecimento a respeito das especificidades dos acervos, ou ainda mesmo pelo descaso das autoridades políticas.
Explico-me: a opção por desmembrar o acervo da FIGTF poderia ser viável desde o ponto de vista técnico e legal. Teoricamente, a biblioteca da instituição não compõe a documentação produzida pelo órgão, ou seja, não integra um todo orgânico. O mesmo acontece com os discos do Museu Regional do Som, acumulados em uma campanha promovida em parceria com o MTG, nos anos 1990. Livros e discos, nesse contexto, são peças bibliográficas e museológicas cuja guarda, de fato, parece mais pertinente a instituições adequadas (a Biblioteca Pública e o a Discoteca Natho Henn).
O problema é que o acervo do FIGTF não é um quebra-cabeças tão fácil de ser montado. O que os técnicos da Sedactel separaram forma, na realidade, uma espécie de centro de documentação na qual a maioria dos documentos está integrada — isto é, suas partes são organicamente dependentes umas das outras para serem compreendidas.
Exemplos: o Museu Regional do Som, composto por milhares de discos, também comportava em sua gênese o “Memorial dos Festivais”, um acervo de recortes de jornal, fichas, originais de letras de canções, fotografias e uma série de outras espécies documentais que se integram aos discos colecionados. Ao mesmo tempo, parte preponderante das pesquisas “antropológicas” promovidas pela FIGTF em seus primórdios tem relação direta com os livros da biblioteca e, principalmente, com a vasta hemeroteca reunida pela instituição. Em um espectro mais amplo, arrisco dizer que praticamente toda a documentação da instituição (bibliográfica, museológica e arquivística) possui uma trama de relações difícil de elucidar — ainda mais agora, depois do desmembramento do conjunto.
Não podemos desprezar os motivos deste desmembramento. As instituições de memória do Rio Grande do Sul estão aos frangalhos em termos estruturais e orçamentários. Além da FIGTF, fiz estágios no Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul e tenho conhecimento das realidades do Museu da Comunicação e do Museu Antropológico. Na maioria destes locais, quase não há espaço, estrutura, profissionais e condições de custodiar — com dignidade — grandes acervos. Entendo que o desmembramento do espólio da FIGTF só pode ser compreendido a partir destas dinâmicas e que os técnicos — dado o afã do Governo Estadual por extinguir a fundação — apenas encontraram a “solução mais viável”. Isso não significa, entretanto, que essa solução seja a melhor ou a mais correta.
(Revisão #1: é fundamental deixar claro que o “desmembramento” citado nos parágrafos anteriores se refere à quebra da organicidade dos documentos. Do ponto de vista técnico, essa organicidade pode ser mantida independente do acervo ser reunido ou não em um mesmo espaço físico. A opção por separá-lo fisicamente em virtude das especificidades de seus suportes é aceita e recomendada pela bibliografia, quando não houver outra opção. O problema central do desmembramento citado acima é quando ele ocorre sem o devido inventário da documentação. Esse parece ter sido o caso da FIGTF).
Alguns questionamentos, nesse sentido, são pertinentes. O maior deles é porque, afinal, o Decreto Estadual Nº 52.808/2015 não foi cumprido. Como exposto acima, o simples acatamento deste dispositivo legal teria colocado o Arquivo Público do Estado (APERS) como “fiador técnico” do processo — algo que, até onde pude apurar, não aconteceu. O acervo da FIGTF integra o SIARQ-RS, Sistema de Arquivos do Estado do Rio Grande do Sul, que é dirigido pelo APERS. Nesse caso, portanto, caberia ao SIARQ-RS/APERS a decisão sobre qual o melhor destino a ser dado àquele acervo.
Dados os caminhos percorridos, pode-se dizer que o acervo da FIGTF jamais voltará a existir em sua organicidade original. Seus pesquisadores encontrarão lacunas difíceis de transpor, mesmo que o trabalho técnico busque costurar a teia de relações entre tais documentos. Desde 1841, quando o francês Natalis de Wailly estabeleceu o que nós arquivistas chamamos de “princípio de respeito aos fundos” sabe-se que o desmembramento dos arquivos os torna irremediavelmente inorgânicos. Por melhor que seja o tratamento técnico dado ao conjunto de documentos sobreviventes dessa aventura irresponsável promovida pelo Governo Sartori (e sei que os técnicos farão o melhor possível), aquele arquivo originalmente constituído não existirá mais.
Cabem, assim, as interrogações: porque somos passivos a tudo isso? Quais são as formas através das quais poderíamos ter pressionado o Governo Estadual para que o acervo não fosse desmontado? E mais: onde esteve o MTG, sempre tão zeloso da cultura gaúcha, ao longo do processo de extinção? O que universidades, associações e sociedade civil podem fazer para auxiliar os técnicos a impedir que novos desmembramentos aconteçam? Vale lembrar que a FIGTF é apenas uma (a primeira) das oito fundações em vias de extinção pelo Governo Sartori. O acervo das demais terá o mesmo destino?
Os arquivos servem para construir a escrita da História de um povo. São partes importantes da memória e do patrimônio de gerações e dizem muito sobre quem somos. Seu abandono, ou tratamento inadequado, corrobora muito para a imagem do que pensamos sobre nós mesmos. E sobre o que queremos que as próximas gerações saibam de nós.