Por trás da escola sem partido
Especialistas afirmam que o movimento está alinhado a um processo de mudança nacional e internacional em dimensão econômica, social, política e cultural
O curso de extensão sobre direitos humanos, aberto à comunidade e que acontece em encontros mensais até o final do ano, trouxe este mês a Porto Alegre a procuradora federal dos direitos do cidadão Deborah Duprat e a professora da Unicamp Nora Krawczyk. Convidadas pela Frente Gaúcha Escola Sem Mordaça, elas vieram debater o tema central sobre Educação em direitos humanos: contextos e marcadores sociais da diferença. Contundentes, cada uma dentro de sua especificidade, reafirmaram a importância das ações de resistência frente o movimento escola sem partido ainda em curso no país.
Nora Krawczyk é doutora em Educação e suas pesquisas na área concentram-se nos temas política educacional, América Latina, ensino médio e gestão da educação. Em sua participação no curso ela falou sobre As ameaças ao direito à educação: a quem interessa? Embora a educadora de origem argentina reconheça a importância desse debate sobre o movimento escola sem partido, ela alerta quando ao risco de seus críticos entrarem na lógica de seus proponentes. “Perdemos muito tempo respondendo a eles: ‘não, professor não é isso; não, a escola não é isso’. Acho que assim entramos na lógica desse grupo”.
Sua recomendação, entretanto, não pretende minimizar o problema, mas contextualizá-lo e aprofundar o entendimento de sua gravidade. Numa análise mais ampla, a pesquisadora situa os projetos da escola sem partido como o marco de uma conjuntura educacional de âmbito internacional que “busca tirar o poder político dos estados nacionais, transferindo o verdadeiro poder para grupos econômicos, um poder hegemonizado pelo capital financeiro e pelos organismos internacionais que os representam”. Ela traz como exemplo uma escola pública que visitou em Pernambuco e que passou a ser chamada pela comunidade de Escola OI, por ter sido adotada pela operadora. Ao perguntar para a menina sua anfitriã e aluna da escola qual era a operadora de seu celular, a resposta deixou claro o vínculo: “É a OI”.
Faz parte desse contexto, segundo Nora, reformas educacionais que têm como propósito a destruição da escola pública enquanto identidade. “No lugar de uma escola pública, eles oferecem uma escola básica gratuita para pobres. No lugar de valores republicanos, estimula-se a empregabilidade, o empreendedorismo, a competitividade. Podemos dizer que no plano cultural se instala uma profunda dominação da hegemonia do poder norte-americano. Uma cultura mediada pelo dinheiro, pelos ‘valores neutros’ como a propriedade individual, a responsabilidade individual, a meritocracia, etc.” Conceitos e princípios amplamente difundidos pelos meios de comunicação e que acabam subvertendo a ideia de que se vai à escola para aprender: “Se vai à escola para ter êxito na vida”. Assim como diz o outdoor de uma universidade privada cujo apelo é que o jovem invista no seu futuro, se torne um empreendedor, uma empreendedora: “Não diz estude, não diz aprenda”.
No âmbito nacional, o projeto escola sem partido acontece numa conjuntura onde não há debate público, onde há a implantação de um estado policial e repressor que incentiva as delações através de tortura psicológica: “Bastante similar à proposta da escola sem partido ao instalar delatores dentro da escola. Agora temos o delator em vários ambientes como figuras salvadoras de nossa moral ou da ideologização – entre aspas – no âmbito da escola”. O fato de que no Brasil 95% dos estudantes estão na escola pública, não desperta interesse, segundo a doutora em Educação, exclusivamente por ser um grande negócio, mas também porque “na escola pública se formam as mentes de nossas crianças e jovens”.
Em sua palestra, Duprat retoma a origem do conceito dos direitos humanos para sinalizar o cenário atual de retrocesso. “Como figura jurídica, os direitos humanos constitui-se numa resposta às atrocidades da Segunda Guerra Mundial que promoveu o extermínio de todas as diferenças. Ainda que os judeus tenham sido os mais perseguidos, também sofreram perseguição as pessoas com deficiência, gays e lésbicas, que foram exterminadas em torno da homogeneidade, que foi a marca dos estados nacionais.”
Tendo o escola sem partido como projeto referencial, a procuradora avalia que vive-se atualmente em meio a movimento de reação às conquistas tanto nas cidades como no campo, que tenta voltar para o estado anterior de países ocupados e dominados pelas verdadeiras minorias numéricas, e que está alastrado pelo mundo todo. Mais especialmente com relação à América, ela diz que existe uma preocupação muito grande com relação ao Brasil pelo seu tamanho e por sua importância geopolítica. Nesse sentido, menciona a nota técnica expedida pela Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão que foi avalizada e noticiada por três relatorias da ONU de direitos humanos, ensejando uma cobrança ao parlamento brasileiro pela corte interamericana pelos direitos humanos. Como consequência, no dia 20 de novembro de 2017 foi arquivado pelo autor o projeto que tramitava no Senado, inspirado no movimento coordenado por Miguel Nagib.
Panorama atual – De acordo com a professora Russel Teresinha Dutra da Rosa, professora da Faced e uma das fundadoras da Frente Gaúcha Escola Sem Mordaça, o trabalho coordenado por Duprat já vinha suscitando outras vitórias. No dia 22 de março de 2017, o ministro do supremo tribunal federal, Roberto Barroso, emitiu medida cautelar suspendendo a lei que criara o programa Escola Livre, em Alagoas. Em junho do mesmo ano, foi emitida nova medida cautelar baseada em outra nota técnica elaborada pelo grupo de Duprat, referente a um projeto de lei de Paranaguá, no estado do Paraná, que proibia estudos sobre diversidade de gênero e orientação sexual, proibindo inclusive o uso desses termos em livros didáticos nas escolas.
Entretanto, ainda existem 12 projetos de lei na Câmara Federal dos Deputados, 25 em estados brasileiros e um pouco mais de cem projetos em municípios brasileiros. “Alguns tramitando e outros viraram lei”, comenta Russel. No Rio Grande do Sul, em outubro de 2016, foi arquivado na Assembleia Legislativa o PL 190/2015, de autoria do deputado Marcel van Hattem (PP). No âmbito municipal, o PL 124/2016, protocolado na Câmara por Valter Nagelstein (PMDB), mas “está perdendo força”, assegura Russel. Fora esses dois PLs existem mais nove no estado sendo que desses foram arquivados o de Pelotas e o de Bagé; o de Viamão foi derrotado na câmara, e o de Cruz Alta o prefeito vetou. Há ainda projetos em Nova Hartz, em São Leopoldo, em São Lourenço do Sul e em Uruguaiana. “Nós somos um dos estados brasileiros que não teve nenhum projeto de lei aprovado, e eu entendo isso como resultado da mobilização de professores e comunidade,” comemora Russel.
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