Pedagogia, curso de pobre
Pedagogia é curso de pobre
29/07/2017
O número de matrículas no curso de pedagogia em forma de EAD já é maior que o número no curso presencial. Mas que não se pense que isso significa o aumento de números de professores no Brasil, pois os nossos cursos em EAD, em quaisquer habilitações, produzem 50% de evasão. Trata-se de um número que assustador, inapropriado e inédito no mundo de países com a economia do Brasil.
O curso em EAD tem evasão por diversas razões, mas uma delas, que é a mais vergonhosa, é que os estudantes são os mais pobres e os mais despreparados, não entendem as regras de interação, não sabem estudar sozinhos, não possuem disciplina e, enfim, com tudo isso nas costas, desanimam e param o curso, mesmo sendo gratuito!
Pedagogia é curso de pobre. E sendo de pobre, uma vez no Brasil, é curso dos mais ignorantes. O Brasil reproduz sua estrutura classista injusta para o campo da educação, justamente o campo em que, nos outros países, serve para tentar corrigir a estrutura classista injusta. Se no âmbito do presencial o curso de pedagogia é um curso sofrível, sem grandes atrativos salariais e também sem nenhuma marca do ponto de vista da curiosidade intelectual necessária para um curso universitário, no âmbito de EAD ele carrega tudo isso e mais um dado ruim: à chatice do curso é adicionada a inaptidão do aluno, e então surge a chatice solitária. O resultado é que o Brasil gasta em EAD para não produzir nada que preste. E no campo da formação de professores, isso nada é senão o descaso com o dinheiro público.
As pessoas que fazem o curso de pedagogia, ao ouvir que “pedagogia é curso de pobre” reagem agressivas. É próprio da condição do pobre (e ignorante) não entender a descrição daquilo que ele vive, principalmente se isso é a sua esperança de ser diferente. Toma a frase como preconceito e maldade – “elitismo”. Não sabe que ela é uma descrição da nossa realidade. Demos um passo errado a sair da Escola Normal de nível médio para o curso de pedagogia no ensino superior como o local de formação de professores das séries iniciais do ensino básico. A Escola Normal era boa, parecia com a universidade; o curso de pedagogia é fraco, parece com algo que fica aquém da pior Escola Normal que tínhamos.
O curso de formação de professores das séries iniciais do ensino básico – o curso Normal – nem sempre foi um curso de pobre. Era o curso das filhas dos fazendeiros e até de industriais. Sempre foi um curso feminino, mas de elite. Mesmo quando se democratizou, aceitando moças da classe média baixa, não perdeu a qualidade. Mas após a Reforma posta pela Ditadura Militar, a da Lei 5692/71 acoplada à Reforma Universitária de 1969, tudo começou a se perder. Veio a Habilitação Magistério no lugar da Escola Normal. Era o começo do fim. A Habilitação Magistério começava a ser uma válvula de escape oficial para o aluno pobre que queria uma profissão tirada na própria escola gratuita pública, e ao mesmo tempo um lugar em que ele não precisasse aprender ciências e principalmente matemática. A degradação era tamanha que alguns até diziam que para ensinar matemática as novas professoras não precisavam saber matemática, precisavam saber ensinar. Era o engodo total. E assim abrimos o canal para que ignorantes e pobres, pobres e ignorantes, tivessem um caminho para o término do ensino médio. Um trança pés. Isso não mudou, apenas piorou, quando veio a total transformação que fixou a formação em pedagogia como o campo exclusivo de formação de professores das séries iniciais do ensino básico. A democracia dos anos noventa completou então a desgraça iniciada pela ditadura. A gloriosa Escola Normal foi trocada pela caricatura de curso superior chamado curso de pedagogia.
A reforma atual do ensino médio que o governo Dilma preparou e que o governo Temer implementou, mas cuja ideia já vem de antes de Lula, é a transformação de toda a escola média em lugar para que a pobreza fique mais medíocre e então mais pobre. Pois agora a ideia é fazer do ensino médio como um todo a válvula de escape para que aquele que não quer aprender matemática para valer, ou ciências, ou seja lá qual for a disciplina que ele não gosta. Ele terá a chance de escapar de ter de criar um perfil de desvio, não de utilidade. Nenhum país do mundo faria algo assim. O aluno pobre, exatamente sem maturidade e formação, é chamado para dizer, pomposamente, qual a área de conhecimentos em que quer estudar. Duvido que aos 14 anos alguém, pobre ou não, saiba escolher algo. Duvido que se escolher “certo”, fará a coisa certa. Pois, afinal, o certo para todos, mas principalmente para o pobre, era ter o mais, não o menos. O menos ele já tem em casa. Se não damos chance para o aluno ter todas as disciplinas, com cargas horárias máximas, que sempre tivemos, estamos não mais tendo um gueto no ensino médio, mas fazendo do próprio ensino médio um gueto.
Bem, isso será então bom para o curso de pedagogia. Os piores alunos do ensino médio não irão mais só para o curso de pedagogia, irão para todos os cursos. Enfim, seremos todos aquilo que Caetano Veloso cantou sobre o Haiti, dizendo que “o Haiti é aqui”: “pretos, pobres” – não é isso que ele descreveu? (1) Seremos todos pedagogos. Uma massa inteira de gente com neurônios inaproveitáveis. Essa gente saberá que foi enganada, e reagirá com ódio a textos como este meu aqui, pois elas não suportarão ouvir de outro que elas foram enganadas, estão sendo enganadas. No fundo, elas acreditam que o melhor para elas é ter um ensino fraco. Elas não sabem exigir mais que aquilo que o destino perverso lhes dá.
Paulo Ghiraldelli Jr., 60, filósofo. São Paulo, 29/07/2017
PS1: Supondo que você leu o texto todo e discordou, um aviso: o texto não é sobre você, diretamente, mas sobre a transição da Escola Normal para o curso de pedagogia!
PS2: Para você refletir sobre a minha frase, eis a música de Caetano, uma das mais belas e contundentes líricas do poeta.
HAITI
Quando você for convidado pra subir no adro
Da fundação casa de Jorge Amado
Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos
Dando porrada na nuca de malandros pretos
De ladrões mulatos e outros quase brancos
Tratados como pretos
Só pra mostrar aos outros quase pretos
(E são quase todos pretos)
E aos quase brancos pobres como pretos
Como é que pretos, pobres e mulatos
E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados
E não importa se os olhos do mundo inteiro
Possam estar por um momento voltados para o largo
Onde os escravos eram castigados
E hoje um batuque um batuque
Com a pureza de meninos uniformizados de escola secundária
Em dia de parada
E a grandeza épica de um povo em formação
Nos atrai, nos deslumbra e estimula
Não importa nada:
Nem o traço do sobrado
Nem a lente do fantástico,
Nem o disco de Paul Simon
Ninguém, ninguém é cidadão
Se você for a festa do pelô, e se você não for
Pense no Haiti, reze pelo Haiti
O Haiti é aqui
O Haiti não é aqui
E na TV se você vir um deputado em pânico mal dissimulado
Diante de qualquer, mas qualquer mesmo, qualquer, qualquer
Plano de educação que pareça fácil
Que pareça fácil e rápido
E vá representar uma ameaça de democratização
Do ensino do primeiro grau
E se esse mesmo deputado defender a adoção da pena capital
E o venerável cardeal disser que vê tanto espírito no feto
E nenhum no marginal
E se, ao furar o sinal, o velho sinal vermelho habitual
Notar um homem mijando na esquina da rua sobre um saco
Brilhante de lixo do Leblon
E quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo
Diante da chacina
111 presos indefesos, mas presos são quase todos pretos
Ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres
E pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos
E quando você for dar uma volta no Caribe
E quando for trepar sem camisinha
E apresentar sua participação inteligente no bloqueio a Cuba
Pense no Haiti, reze pelo Haiti
O Haiti é aqui
O Haiti não é aqui
http://ghiraldelli.pro.br/educacao/pedagogia-e-curso-de-pobre.html