Para onde vai a esquerda?
Elementos para uma análise da luta de classes no Brasil de 85 – 2015. Para onde vai a esquerda?
por Daniel V. Sebastiani
Ao findar a Ditadura Militar com características fascistas, em 1985, o Brasil saía de um pesadelo. A inflação era altíssima, o estado brasileiro estava quebrado, os salários, sobretudo o dos trabalhadores e, em particular, o mínimo, eram baixíssimos, além do desemprego que era o pavor do trabalhador. A miséria era extrema.
Neste contexto, a tradicional elite brasileira patrimonialista, vinculada à terra, às empreiteiras e outros setores, perdia o apoio da elite mais dinâmica da indústria e, inclusive, era abandonada pelo imperialismo dos EUA e o capital internacional, que entendiam ser contraproducente e perigoso a manutenção de uma ditadura no começo do forte “degelo” que marcaria o fim da Guerra Fria.
Este “perigo” era fruto de uma heróica luta de resistência contra a ditadura, promovida por comunistas, trabalhistas e outros lutadores que, nos anos 80, consegue finalmente mobilizar a massa de trabalhadores, (greves do ABC e nascimento político de Lula), e recebe o apoio majoritário das camadas médias, (movimento estudantil, UNE, entidades das camadas médias, OAB), diante do cenário de crise.
Esta poderosíssima aliança dos trabalhadores e das camadas médias, expressa nas “Diretas Já”, rachou a elite tradicional e, em um momento de profunda crise econômica, (apesar do enorme atraso, típico do transatlântico brasileiro em toda sua história), arrastou a ditadura, (isolada no Brasil e abandonada pelo capital internacional), para o fim.
A democracia nasce sob uma marca centrista, representativa das amplas alianças que a geraram, inclusive políticas, como a Aliança Democrática, que reunia o PMDB, o PFL e até os comunistas.
Apesar de idas e vindas, como o Plano Cruzado I, esta aliança política e social se desfaz: as elites tradicionais fazem novamente aliança com um capital internacional e nacional dinâmico, em um pacto que se estabiliza, depois de vários tropeços, nos governos FHC I e II, com a plena implantação das políticas neoliberais.
Neste período, a luta popular não arrefeceu, pelo contrário, se ampliou no ambiente democrático, embalada pelo crescimento da força dos movimentos sociais, agora livres do tacão da ditadura e das amarras que o contexto da Guerra Fria tinha imposto à luta de classes a nível mundial.
Os CONCLAT(s), o MST, a CUT, a UNE e outras entidades, promoviam lutas sociais contra as desigualdades. Com o aprofundamento da crise social e da concentração de renda, promovida pelo neoliberalismo, amplos setores das camadas médias, e cada vez mais trabalhadores, se somam à ideia de mudança.
Desde o início da democratização, para além dos movimentos sociais, a esquerda tradicional vinculada aos trabalhadores, (PCdoB, PCB e PSB, além dos trabalhistas do PDT), que resistiu à ditadura e embalou a luta social nos primeiros períodos da democracia, vê surgir um fenômeno político, fruto da aliança, já citada, de novas lideranças dos trabalhadores, (Lula e o ABC), com amplos setores das camadas médias, (expressos pelas universidades e outros), em um meio político-social inédito, (que só o fim da Guerra Fria, no cenário da luta de classes internacional, e o acirramento das perdas dos trabalhadores e camadas médias, com o amadurecimento do neoliberalismo no Brasil, permitiram que se desenvolvesse e crescesse): o PT.
O fenômeno histórico do Lulopetismo tem esta raiz e as suas decorrentes contradições.
Esse amálgama de luta política e social gerou uma grande esperança, (numa aliança de setores médios e trabalhadores), de que era possível mudar a história de um Brasil elitista, corrupto e excludente.
Amplas parcelas de jovens aderiram ao sonho de um futuro melhor, um Brasil diferente: a Frente Brasil Popular e o “Lula Lá”, da memorável campanha de 89, o “Fora Collor”, as greves gerais, as ocupações do MST e, finalmente, a vitória de 2002.
No entanto, o pesado transatlântico brasileiro não viraria tão fácil o seu conservadorismo. Às alianças político-sociais construídas em toda essa luta somaram-se mais duas:
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O pacto de não- agressão firmado com parcelas do capital financeiro internacional, (expresso na Carta aos Brasileiros e sua promessa de garantir os compromissos financeiros firmados pelos governos neoliberais) e,
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O apoio das parcelas mais atrasadas e fracas das elites tradicionais, que vinham perdendo com a modernização conservadora neoliberal, expresso na posterior costura com o PMDB sarneysista, jarbista e collorista.
Estes dois pactos políticos foram vistos, pelo lulopetismo como necessários para garantir a vitória e a governabilidade em um país conservador e com um congresso clientelista e atrasado.
Esta opção já denota uma gradual aposta maior nos acordos institucionais do que na dinâmica da luta social.
O fim da Guerra Fria representou uma derrota inegável, mesmo que superável, para o socialismo e uma vitória para o neoliberalismo.
É neste contexto que o lulopetismo nasce como governo. É das profundas e amplas desigualdades geradas pelas políticas neoliberais que ele nasce, mas é limitado pelo triunfo mundial das mesmas e, portanto, descrente de superá-las na sua essência.
A tábua de salvação desta inextrincável contradição vem do cenário neoliberal de grande crescimento mundial dos mercados e da RP da China, em particular, antes da Crise de 2008, ou seja, as exportações brasileiras, sobretudo de commodities, geram riqueza extra ao estado brasileiro.
No entanto, os dois “tendões de Aquiles” (o pacto institucional com as velhas elites e as limitações de enfrentamento à estrutura neoliberal) vão cobrar o seu preço.
A gradual institucionalização da esquerda leva à perda de lideranças, do movimento sindical e social em geral, para a máquina estatal e a uma “domesticação” dos mesmos.
Esta opção de priorizar o institucional leva a supervalorização da política parlamentar e de suas alianças, o que obriga o lulopetismo a adotar uma prática histórica típicas das elites brasileiras em todos os tempos: a corrupção, que geraria o Mensalão de 2005. Logo no nascimento da criança, ela já revela a crueldade de suas limitações, pois cai uma das esperanças que tantos brasileiros tiveram: que o lulopetismo seria diferente. Neste aspecto, já não o era: o abalo foi profundo.
Mas, a economia salvaria a situação: o cenário favorável, que aportava grande quantidade de recursos ao estado brasileiro, permitiu uma alteração imensa, embora superficial e não estrutural, na política social e econômica do Brasil.
Os governos Lula I e II promoveram uma redistribuição social dessas novas rendas, realizando uma política muito ativa, através de medidas que iam da valorização do salário mínimo, passando pelos programas Bolsa Família e Minha Casa Minha Vida até o FIES e PROUNI. Além disso, fortaleceram os instrumentos econômicos do estado brasileiro: suas estatais e o financiamento público, priorizando o desenvolvimento. Ou seja, as rendas do estado, que antes iam para os setores especulativos, agora vão para a produção e os recursos excedentes, que antes se concentravam através de diversos mecanismos, legais e ilegais, agora vão para os trabalhadores, potencializando o mercado interno e alavancando a produção.
Este binômio, crescimento com distribuição de renda, foi o auge do Lulopetismo, sua década de ouro, (2003-2013). Apesar do impacto do Mensalão, a esperança persistia e o Brasil mudava, a militância de esquerda tinha as suas bandeiras.
Todo fenômeno encerra suas próprias contradições, este não foi diferente: conforme anteriormente citado, a luta antineolibreral da era neoliberal mundial não negava as limitações da sua época.
O Lulopetismo nasce da ilusão de que é possível criar um Projeto Nacional forte e distribuir renda, sem romper com as bases do neoliberalismo.
A manutenção dos compromissos com a finança internacional, como os juros, e o respeito às suas regras, a tentativa de criar um empresariado nacional monopólico autônomo, ligado a um estado ao estilo sul-coreano, de forma artificial, sem contradições reais com o mercado neoliberal, ( Eike-BNDES e outros), a manutenção do latifúndio, a não taxação das fortunas, a não modificação do sistema tributário regressivo, a tolerância com o monopólio da imprensa, tentando, a todo momento, estabelecer “pactos”, através do dinheiro público, foram exemplos desta política de conciliação.
Enquanto essa política ocorreu, os trabalhadores se beneficiaram e apoiaram o projeto e, as classes dominantes tradicionais, bem como as mais novas e dinâmicas, com todos os seus preconceitos, em parte, apoiaram esta experiência.
No entanto, as camadas médias foram parcialmente atingidas pela sua perda relativa de distanciamento em relação aos trabalhadores e pela manutenção do sistema tributário que as penalizava cada vez mais, pois a gradual escassez de recursos externos, com as repercussões da Crise de 2008, era compensada pela manutenção da tabela do imposto de renda e outros mecanismos. Parte da base social do Lulopetismo, muito atingida pela crise moral do Mensalão, era novamente atingida, agora em termos econômicos, e se afastava de seu projeto: as camadas médias abandonavam o Lulopetismo, parte do espectro social não mais “sonhava”, se tornando mais egoísta e pragmático, capitalizado pela direita, através da ação da grande imprensa.
Restavam os trabalhadores, sobretudo os mais humildes, e o apoio de setores das elites.
O agravamento da crise, e, por contraditório, a melhora parcial de algumas economias como a dos EUA, (que afetou inclusive o crescimento do gigante chinês, e a demanda por commodities e o movimento econômico mundial geral do capital especulativo, respectivamente), eliminou o elixir da vida do pacto social do Lulopetismo de “mudar sem romper”: o aporte de recursos extras ao estado.
Essa falta de recursos foi suprida à custa do sangramento do Tesouro do Governo, e garantiram, (com o apoio do último segmento social ainda fiel ao Lulopetismo, o mais beneficiado pelas políticas sociais, os extratos mais pobres do proletariado), a vitória de 2014.
No entanto, o uso excessivo dos recursos do tesouro para subsidiar preços, bancar programas e benefícios sociais feriram o receituário do capital financeiro internacional e este deu um ultimato, caso contrário o Brasil seria “rebaixado” na sua nota pelos “mercados”.
Só restavam dois caminhos: romper com o capital internacional e as elites brasileiras, iniciando um processo de ataque à riqueza das classes dominantes, ou manter o pacto e sacrificar os trabalhadores, já que as camadas médias já sangravam e o estado não podia mais dispor dos recursos excedentes que a crise lhe tinha tirado.
Fazendo jus a sua essência, o Lulopetismo sacrificou os trabalhadores para não deixar de pactuar, mais uma vez. Salvou o seu Governo e matou o “sonho”.
O último sopro do grande sonho havia caído por terra: a redistribuição de renda. As esperanças do Lula Lá de 89 estavam reduzidas a pó.
O que levou a esquerda e o movimento social à incapacidade de reagir ao elemento de contradição interna do lulopetismo que levaria ao seu ocaso: o pacto para mudar sem mudar?
Neste período do lulopetismo, os movimentos sociais e os partidos de esquerda passaram a assumir crescentes papéis institucionais, a sua vanguarda trocou a visão social mais ampla dos grandes horizontes, pela pragmática política do que Marx chamava de cretinismo parlamentar. Os cargos, os espaços, as articulações de cúpula, ocuparam o lugar da luta social, o que foi amplamente favorecido pelos recursos do estado.
O Governo distribuía renda, o movimento se acalmava e o discurso de conciliação do Lulopetismo com as elites dava a entender aos trabalhadores que tudo era fruto de um “bom governo”, da opção samaritana pelos pobres, que não elimina os ricos, um saint-simonismo ideal.
Isto atingiu de morte a possibilidade de elevar a consciência popular sobre a luta de classes: o proletário não aprendeu que o rico era seu inimigo, mas a grande mídia o convenceu que eram “os políticos”. A esquerda brasileira teve em mãos um grande aparelho, o estado burguês, e não soube usá-lo para elevar o tom da luta de classes. Saberá ser impiedosa com o seu próprio passado, como outrora já fez Marx em relação à Comuna de Paris, ou vai se acomodar aos interesses da mesquinhez política cotidiana?
Como consequência, o movimento social pouco pressionou pelas mudanças, os partidos de governo de caráter revolucionário, como o PCdoB e setores do PT, não conseguiram ir muito além de afirmações em seus documentos oficiais, e os que estavam fora, atacando tudo e todos, como o PSOL de então, careciam de força, pela sua alienação do embate concreto de classes, que se deu no período auge do Lulopetismo quando a economia ia bem.
Os trabalhadores pouco ou nada se conscientizaram quanto à luta de classes e a camada média, perdedora, deu vazão a todos os seus preconceitos.
A conciliação política da esquerda não é algo estranho à luta de classe mundial no seu período: o discurso do pacto social, agora acrescido do discurso da austeridade, “pois não há como fazer diferente”, é moeda corrente da social-democracia europeia.
Apenas a base social popular, somada às enormes desigualdades do Brasil e ao eventual crescimento de 2003-2013, a década de ouro do Lulopetismo, e seu papel de país emergente, lhe deu alguns elementos políticos mais avançados, sobretudo na política internacional, em particular na relação com a América Latina.
Aparentemente, há dois caminhos a seguir:
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O Lulopetismo se transforma em uma força moderada de feição centrista e tenta seguir a linha europeia em que, como se diz nos meios políticos europeus, “um socialista ministro, jamais é um ministro socialista” ou “a esquerda quando assume o governo promove uma mudança política de 360º graus (sic) em relação à direita”;
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Ou se refunda em uma perspectiva mais combativa, de rupturas efetivas com a estrutura social e econômica do Brasil e retomada dos movimentos sociais, como base de sua ação, em uma relação de unidade e luta com seu próprio governo e deixando para trás a história de corrupção e compromissos, o que pode exigir uma nova frente ou partido político de esquerda.
A natureza de país de capitalismo periférico, com graves desigualdades e diferenças sociais, além de uma elite, (classes dominantes), sem projeto de nação, ao contrário das elites do capitalismo central, torna mais difícil, ineficaz e cruel a primeira opção, mas não inviável, se a economia e a democracia se estabilizarem de forma consistente, como mostra o caso da Índia. Nesse País, a direita hinduísta e o Partido do Congresso, de natureza social-democrata, se alternam no governo, sem atacar a estrutura das desigualdades e misérias indianas. Neste sentido, apostam os que vêem a crise como algo passageiro e sonham voltar à situação da década dourada (03-13).
Estes podem não estar errados, se porventura a situação de crise se resolver, o que parece pouco provável, mas não impossível.
No entanto, “desconhecem”, em razão dos interesses a que respondem, que o objetivo inicial do projeto que marcou a ascensão do PT, qual seja, a superação das bases estruturais de nossa sociedade capitalista brasileira, não poderão mais ser recuperados, o “sonho”, a “utopia”, que galvanizou os movimentos sociais se perderá no pragmatismo de um partido igual aos outros, sem projeto de nação.
Mais grave será a situação de setores mais vinculados aos trabalhadores e de matiz revolucionária do PT e do PCdoB, como partido revolucionário e socialista: se entrarem nesse jogo perderão a sua própria essência e abandonarão o processo revolucionário de superação dos pactos com as elites e de construção da consciência popular para promover as grandes transformações estruturais, sem as quais um projeto de nação, (pelo caráter periférico do capitalismo brasileiro), se torna inviável, uma vez que as classes dominantes são incapazes de realizá-lo.
Ao sacrificar as viúvas, os órfãos, os desempregados e demais trabalhadores no altar da austeridade do capital financeiro, essas forças políticas, mesmo agarrando-se de forma desesperada em tábuas de salvação, como a luta contra a terceirização, alienam ainda mais os trabalhadores, (que deixaram de conscientizar na década de ouro do Lulopetismo), confundem as massas e aprofundam o seu vínculo à institucionalidade burguesa e seu pragmatismo político, apagando as diferenças entre esquerda e direita na cabeça dos trabalhadores.
Trata-se, para essas forças revolucionárias, de refundar a sua ação política, priorizar a luta de massas, criar um pólo anti-austeridade, retomar um forte núcleo de esquerda transformador, ao qual possam se somar forças como o PSOL, desde que adotem políticas mais frentistas e realistas, e chamar os trabalhadores e a juventude a retomar a “utopia” da luta por reais mudanças sociais na estrutura brasileira, sem deixar de respaldar, contra a direita, o Governo Dilma, espectro do Lulopetismo da década de ouro, que urge reformar, política e ideologicamente.
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Daniel V. Sebastiani é Professor de História da Fundação Liberato-FETLSVC- NH/RS. / sebastiani1917@gmail.com
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