Os perigos da Base

Os perigos da Base

Os perigos da nova versão da Base Nacional Comum Curricular para a Educação Infantil

Joaquim Ramos

Sandro V. S. dos Santos

Como será amanhã? 

Responda quem puder 

O que irá me acontecer? 

O meu destino será 

Como Deus quiser (Simone) 

Por analogia, o espectro de imprecisão tão bem representado pela música O Amanhã (composição de João Sérgio e popularizada pela interpretação superlativa de Simone), evidencia o carnaval de incertezas que paira sobre a política pública brasileira, principalmente quando se tratadas reformas educacionais que, “vira e mexe”, tentam empurrar “goela a baixo” da população brasileira. Definitivamente, como bem pontuou Luis Carlos Freitas em seu Blog, não há base para discutir a base, pelo menos não do modo como ela tem sido proposta pela atual  gestão  (des)governista. 

O ministério da educação, representado pela figura do Ministro Mendonça Filho (apoiador incondicional do golpe desferido contra nossa pueril democracia) tornou público, no dia 06 de abril de 2017, a terceira versão da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), encaminhando-a para o Conselho Nacional de Educação, o que foi tema do editorial deste Jornal no dia 12 de abril de 2017

Naquele texto, a equipe editorial do jornal, com muita lucidez, discorreu sobre a invisibilidade que a discussão promove sobre os reais problemas da educação básica, pública e gratuita em nosso país. É impossível melhorar a educação nacional, ponderam os editores, tendo a BNCC como uma espécie de panaceia para todos os males que assolam nossas escolas, pois, os problemas da educação pública não são apenas curriculares ou relacionados aos conteúdos que devem ser (ou não) ensinados nas escolas; pelo contrário, são de ordem da infraestrutura educacional e dizem respeito aos baixos salários e a ausência de planos de carreira, associados às péssimas condições de trabalho dos professores, além, é claro, da falta de mecanismos que possibilitem um efetivo acompanhamento da aprendizagem e do desenvolvimento de crianças e jovens. Segundo o texto do editorial do dia 12 de abril: 

Se o problema da escola brasileira fosse a falta de referenciais, currículos ou base sobre o que ensinar, estaríamos no melhor dos mundos. O problema é que as dificuldades estruturais ainda não foram resolvidas. Nessas condições, a excessiva atenção a BNCC funciona, em boa parte, como uma cortina de fumaça que nos impede de enxergar quais são, de fato, os verdadeiros problemas. Nesse sentido, mais do que discutir a Política da Base, deveríamos retornar às Bases da Política. 

Seguindo essa tendência de desobscurecer as questões que se encontram subsumidas nas entrelinhas  da proposição da BNCC, nos limites deste artigo, objetivamos identificar os perigos que as “novidades” (não tão novas assim) presentes na terceira versão da BNCC impõem  sorrateiramente às instituições de educação infantil, às/aos suas/seus profissionais e aos direitos das crianças de até seis anos a educação pública e de qualidade. 

Muitos são os retrocessos revestidos pela aura de novidade presentes no texto desta nova versão da BNCC, como a supressão do termo gênero do texto oficial do documento, o que representa um desrespeito à diversidade no interior das instituições de educação do país, além da retirada do Ensino Médio desta versão da BNCC, o que desconfigura a atual compreensão sobre a educação Básica, só para citar alguns exemplos mais evidentes. Contudo, uma destas novidades retrógradas, em especial, nos desperta interesse em função de sua pretensa objetividade instrumental. De acordo com a nova versão do documento, todas as crianças devem estar plenamente alfabetizadas até o fim do segundo ano do Ensino Fundamental. Ou seja, de modo extemporâneo, até os sete anos de idade, todas as crianças devem desenvolver competências de leitura e escrita, sendo que, nas versões anteriores da BNCC, o prazo era até a terceira série do Ensino Fundamental. 

Não bastasse o golpe desferido contra as bases democráticas da política nacional que se instauraram com o impeachment da Presidente Dilma Rousseff, esta medida se configura como mais um golpe contra os direitos historicamente adquiridos (melhor dizendo; conquistados) por diferentes setores da população brasileira e, neste caso,damos especial atenção aos direitos das crianças de até seis anos de idade à educação pública e de qualidade. 

Primeiramente, é preciso compreender que esta proposta de alfabetização das crianças até os sete anos de idade, está em consonância com a lei nº 12.796, de 4 de abril de 2013 e que, em certo sentido, desconstrói a noção recentemente produzidaem nossa legislação  educacional sobre a função social de creches e pré-escolas. A inserção destas instituições nos sistemas de ensino representa uma importante conquista dos movimentos sociais que, na década de 1970, lutavam pelo reconhecimento do caráter educativo das creches, instituições até então concebidas sob a égide do assistencialismo.  

A promulgação da Constituição Cidadã de 1988 – que a cada dia não cessa de ser descaracterizada por um grupo inescrupuloso de políticos facínoras que tendem, a todo o custo, vender nossa nação às grandes corporações – inaugura uma nova compreensão sobre a educação infantil como direito das crianças de zero a seis anos (e não só de suas famílias), o que é ratificado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional que insere as creches e pré-escolas nos sistemas de ensino, considerando ambas as instituiçõescomo parte integrante da primeira etapa da Educação Básica. 

Alterando o texto constitucional e da LDBEN, a lei 12.796/2013, dentre outras provisões, altera a obrigatoriedade das matrículas das crianças que passa a ser a partir dos quatro anos de idade. Pesquisadores, militantes e profissionais da Educação Infantil, vêm discutindo os eventuais efeitos desta medida para a área desde quando ela ainda era uma Emenda Constitucional (EC), mais precisamente a EC nº59/2009. Vital Didonet (2010), por exemplo, assevera que é preciso que todos/as, inclusive os reformadores da política educacional, tenham em mente que se trata de um alargamento da compreensão do conceito de obrigatoriedade escolar (não mais circunscrita apenas ao Ensino Fundamental, mas à Educação Básica). Para ele, é essencial reconhecer que esta ampliação compreende dois anos da Educação Infantil (quatro e cinco anos), nove de Ensino Fundamental (dos seis aos quatorze anos) e três de Ensino Médio (dos quinze aos dezessete anos). 

No entanto, ao ficar de fora da obrigatoriedade escolar, a creche corre o risco de voltar a ser alvo de escassos investimentos em termos educacionais, retrocedendo ao fosso que, historicamente, promoveu a cisão entre creches e pré-escolas. E mais, para nós, uma questão central ainda não está clara: a quem, efetivamente, serve a antecipação da obrigatoriedade da educação pré-escolar? É preciso ponderar que, neste momento da vida, é essencial para o desenvolvimento das crianças, a convivência com o meio familiar e, neste sentido, seria mais adequado promover políticas públicas de permanência das crianças no seio das famílias como vem acontecendo em alguns países europeus, como por exemplo, na Suécia, no Reino Unido e na Croácia que  recentemente ampliaram o período da licença maternidade/paternidade, chegando a conceder mais de 400 dias de licença remunerada,em alguns casos, para pais e mães estarem mais próximos de seus/suas filhos/as nos primeiros anos de vida.  

É preciso ponderar também que a meta colocada pela BNCC que visa alfabetizar todas as crianças brasileiras até os sete anos de idade. Além de pretenciosa e inatingível (posto que desconsidere as verdadeiras questões estruturais que assolam há tempos a educação nacional como já pontuado),  pode acarretar em uma deturpação da função social da pré-escola. 

Como dito, no Brasil, a inserção das creches e pré-escolas nos sistemas de ensino se conformou como importante avanço das políticas públicas de educação, pois ratifica a proposição da criança como sujeito de direitos. Nesse sentido, as instituições de Educação Infantil, de acordo com o artigo 29 da LDBEN, têm como finalidade “o desenvolvimento integral da criança de até 5 (cinco) anos, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade.” Essa preocupação com a formação integral das crianças, expressa na LDBEN e reiterada pelas Diretrizes curriculares Nacionais para a Educação Infantil  (DCNEIs), está e consonância com tendências internacionais  que propõem uma abordagem curricular para a Educação Infantil comprometida com a formação holística, isto é, que objetiva contribuir efetivamente para o desenvolvimento das crianças, afastando-se de enfoques preparatórios e de antecipação precoce da escolarização obrigatória. 

Acreditamos que, se uma das metas da BNCC é alfabetizar as crianças até os sete anos de idade, este objetivo fere a compreensão a cerca da função social da educação infantil que, na atualidade, é concebida como espaço social de formação integral das crianças, dividindo com as famílias e a comunidade a educação e os cuidados de meninos e meninas. Com essa afirmação não queremos dizer que somos avessos à presença da Educação Infantil na BNCC. Pelo contrário, acreditamos que a inserção de creches e pré-escolas no texto da base se mostra relevante, pois permite efetivar as Diretrizes Curriculares, o que já foi alvo de intensa reflexão, neste jornal, por Ademilson de Sousa Soares. Contudo, em função do momento político-econômico que vivenciamos no país, a discussão da alfabetização a qualquer preço (colocada pela terceira versão da BNCC), pode acarretar em interpretações errôneas por parte dos/as docentes que atuam em creches e pré-escolas país a fora, que podem compreendê-la, não sem motivos, como um rol de competências que as crianças devem adquirir no âmbito da permanência na Educação Infantil, antecipando, desse modo, práticas de escolarização precoce. 

Por fim, mesmo não sabendo “como será o amanhã?”, mas podendo prever alguns dos pequenos golpes na educação brasileira, que são parte do golpe de estado maior que foi impetrado contra nossa frágil, jovem e indefesa democracia, urge a necessidade de mobilização de todos/as (profissionais, militantes e pesquisadores/as) da área da educação da criança de zero a seis anos para lutar contra os desmandos deste desgovernado governo que insiste em sucatear nossa educação, pois, no país do carnaval e no qual não sabemos “o que”, realmente, “irá nos acontecer”, como já dizia o velho palhaço, “quem não se comunica se trumbica”. 

Referências:  

DIDONET, Vital. Desafios Legislativos na Revisão da LDB: aspectos gerais e a educação infantil. In: Insumos para o debate II – a emenda constitucional nº 59 e a educação infantil. São Paulo: Campanha Nacional pelo Direito a Educação, 2010. 

HADDAD, Lenira. Tensões universais envolvendo a questão do currículo para a Educação Infantil. In: SANTOS, Lucíola Licínio de C. P. et al. Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente. Belo Horizonte: Autêntica, (Coleção Didática e prática de ensino). 2010, p. 418-437. 

CAMPOS, Rosânia. BARBOSA, Maria Carmen Silveira. BNC e Educação Infantil: quais as possibilidades? Revista Retratos da Escola, Brasília, v. 9, n. 17, p. 353-366, jul./dez. 2015. 

 

https://www.pensaraeducacaoempauta.com/os-perigos-da-nova-versao-da-base-n 




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