Os midiagogos
Os midiagogos não permitem que você corrija aluno
- Paulo Ghiraldelli
01/08/2016
Não se pode mais corrigir o aluno, dado que a sala de aula é lugar de ideologias e de “variados pontos de vista”?
O jornal O Globo mostrou uma curiosa prova de uma aluna. Diz o jornal que foi a mãe que mandou. O texto da prova estava até que bem feito, do ponto de vista formal. Mas a garota tirou zero. Ela fez uma espécie de apologia do capitalismo, condenando a visão de que este causa pobreza etc. A mãe quis mostrar com isso como que o projeto “escola sem partido” tem razão. A professora, provavelmente anti-capitalista, não aceitou a visão pró-capitalista da garota, e descontou dando-lhe na nota. Como resolver o problema?
Resolver isso não é difícil, e sempre ensino como fazer. E claro que não é pela via do projeto inconstitucional chamado “Escola Sem Partido”. Mas hoje, ao ler tal coisa, li também vários comentários no Facebook de professores, principalmente de história, citando os midiagogos. Eis o que vi: “toda aula tem ideologia”, “tudo é político” e a aula tem que ter “dois lados” e “visões dos lados opostos” etc. Alguns que são dessa opinião que é semi-verdade, voltaram a citar midiagogos para comentar também o episódio posto em O Globo. Uma confusão mental terrível. Uma confusão feita pela esquerda, que teima em não refletir. Uma confusão que é, de certo modo, apenas o avesso da direita.
Dizer que a sala de aula é ideológica e que o melhor que se pode fazer é ouvir vários lados transforma a escola numa bancada de jornal da TV Cultura (o jornal opinativo que ninguém aguenta, e por isso conduz o povo para o Jornal Nacional), onde os midiagogos trabalham de graça, furando o olho de jornalistas profissionais. Escuta-se um lado, escuta-se outro, e eis que a verdade jornalística surge como sendo o conhecimento. Não! Na escola não é assim. Não pode ser assim. O conceito de escola não permite. O conceito de conhecimento não implica nisso. Conhecimento, ao menos desde Platão, é “crença verdadeira bem justificada”. E a justificação não se faz pelo “ouvir dois lados”, mas por reflexão sobre o que se ouviu e por investigação paralela à reflexão e, como disse, uma praxe que depende do tempero dos clássicos.
Na escola, o conhecimento é assim obtido não solitariamente, mas com a colaboração do que é conhecimento já admitido pela cultura ocidental melhor elaborada: o que está no saber que tem a pretensão de objetividade e neutralidade. Um Machado de Assis na literatura, um Newton na Física, um Platão na filosofia, uma geometria de Euclides e assim por diante, eis os conteúdos básicos necessários. Os experimentos, os exercícios, a reflexão e a investigação não existem sem os clássicos. Sem eles, tudo isso patina na lama do senso comum.
Na escola há uma aspiração, por parte de certos saberes, à neutralidade e à objetividade. Essa pretensão pode não se realizar de forma absoluta, mas segundo o critério de pensamento culto do Ocidente, ela se faz por meio dos clássicos. Os clássicos são o particular elevado a universal. Então, ganham uma forma de neutralidade e objetividade. Como os alunos devem aprender? Claro que investigando e refletindo. Mas, principalmente, não ouvindo vários lados de opiniões de modo ingênuo, mas ouvindo os clássicos. Lendo os clássicos. Depois, mais tarde, mescando as experiências de vida com o que leram no ensino anterior, justamente os clássicos. Assim a vida realiza experiências não de forma crua, mas calçada por uma atitude culta, por uma personalidade cultivada, e a cultura, por sua vez, desse modo, não se torna vazia, mas banha a experiência de vida potencializando-a. Isso e´a escola. Opinião do lado de lá e de cá não é aula e não é escola. Opinião do lado de lá e do lado de cá levou a aluna citada em O Globo a fazer uma apologia do capitalismo e dizer que está certa, pois o que fez, provavelmente, foi colocar sua apologia contra a da professora, que fez a apologia do anti-capitalismo. Texto apologético, sem vida e sem a referência progressivamente banhada pela vida, não é texto acadêmico, nem no ensino médio. Não tem como ser avaliado. E se o professor fica falando o que o midiagogo fala, desqualifica a escola, transforma tudo em senso comum de TV.
Os professores precisam defender a escola contra essa banalização do boneco midiagogo de plantão. Eles precisam recuperar, por essa via que mostrei, que sempre foi a via das boas escolas, a autoridade própria de corrigirem legitimamente os alunos. Eles são os condutores do ensino. Eles são os que avaliam. Não devem cair no engodo da banalização da aula pelos midiagogos. Não precisam se autodesprestigiar.
As pessoas que gostam do gurus midiagogos, que não sabem ser outra coisa senão seguidores, ficam fulas da vida comigo por eu dizer isso. Não me importo, não sou político, não preciso de eleitor, também não vivo da palestras, não preciso de pessoas me aplaudindo. Não posso abrir mão de falar isso que falo, ao menso não no Brasil. Nosso país está perdendo a noção do que é corrigir um aluno na escola. Já não se pode corrigir ninguém. Então, todo mundo sai da escola como quem saiu de palestra e acaba achando mesmo que é vômito ideológico. Isso é o fim da escola.
Paulo Ghiraldelli, 58, filósofo. São Paulo,
28/07/2016.
http://ghiraldelli.pro.br/filosofia/midiagogo.html
Os falsos professores - a incapacidade de avaliar e entender o papel da escola