OS gerenciar educação e saúde
Projeto que permite a organizações sociais gerenciarem educação e saúde provoca protesto acalorado
Jaqueline Silveira
O projeto que abre caminho para as organizações sociais (OS) gerenciarem áreas essenciais do Estado, como saúde, educação, cultura e assistência social, mobilizou centenas de servidores estaduais de diferentes setores, além de estudantes, na audiência pública, realizada na tarde desta segunda-feira (30), no teatro Dante Barone da Assembleia Legislativa. Sem espaço para todo o público, foram instalados telões do lado de fora e também no plenarinho para que as pessoas pudessem acompanhar a reunião. Depois de quase três horas de audiência, que foi promovida pelas Comissões de Constituição e Justiça (CCJ) e de Segurança e Serviços Públicos e Frente Parlamentar em Defesa do Serviço Público, foi aprovada uma carta ao governador José Ivo Sartori (PMDB) pedindo a retirada do projeto do Legislativo.
Relatora do projeto na CCJ da Assembleia e uma das proponentes da audiência, a deputada Manuela D’Ávila (PCdoB) afirmou que a proposta das organizações sociais é inconstitucional. “O PL não é constitucional porque não respeita a constituição brasileira. É o Estado abrindo mão do serviço público, da transparência”, argumentou ela, sobre o papel obrigatório do Executivo na prestação dos serviços essenciais à população. Manuela lembrou que em São Paulo ocorreram “inúmeros escândalos” como, por exemplo, a fraude da merenda, ocasionada pela falta de transparência, a partir da administração das instituições de ensino pelas OS. As denúncias, acrescentou a parlamentar, motivaram a ocupação das escolas por estudantes no Estado mais importante do país.
Especialista em administração pública e social, o professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Aragon Érico Dasso Júnior foi convidado pelos organizadores da audiência para fazer uma exposição sobre as consequências do gerenciamento de áreas essenciais do Estado pelas OS, que são organizações não governamentais (ONGs). Se o projeto do governo Sartori for aprovado, fundações, órgãos e instituições públicas podem ser transformadas em OS. Nessa lista, podem ser incluídos hospitais, escolas, museus e teatro. Isso porque a proposta do Executivo contempla oito áreas: pesquisa científica, desenvolvimento tecnológico, gestão, proteção e preservação do meio ambiente, ação social, esporte, saúde e cultura
O cenário apresentado pelo professor é o mais prejudicial possível ao serviço público prestado à população. Em comparação à legislação de 1998 criada no governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC), assinalou Aragon, o projeto do governo Sartori é “mais trágico” porque amplia as áreas que podem ser administradas por OS, ao incluir também a assistência social e o esporte. Ele afirmou que até hoje “nunca se comprovou” a eficiência das organizações sociais. “São Paulo, talvez, seja o melhor exemplo de fracasso dessa experiência”, ressaltou o representante da UFRGS. A partir do momento que o Estado repassa um serviço a uma organização não governamental, observou ele, extingue-se um órgão público, permitindo que não seja respeitado o princípio da impessoalidade e a lei de licitações, a 8666. “Eu posso contratar quem eu bem entender”, exemplificou o professor, já que a proposta dá poderes ao governador para a escolha da OS e dos funcionários, pois não precisa de concurso público para a contratação.
Incompetência para administrar o Estado
Aragon frisou que, à medida que o governo repassa os mesmos recursos, servidores e bens para uma OS gerenciar o serviço público admite ser “incompetente para gerar o Estado.” Na opinião dele, a contratação de OS precariza o serviço público e fragiliza os direitos sociais. “Além da OS ser um claro desmonte do serviço público, o resultado dessa tragédia virá em cinco anos com a redução dos indicadores sociais”, alertou o professor da UFRGS, referindo-se, por exemplo, à saúde e à educação.
Defesa do governo
Debaixo de muitas críticas pela ausência de, pelo menos, um secretário do governo Sartori na audiência, o representante da Casa Civil César Marsillac limitou-se a comentar o conteúdo do projeto das OS. Ao iniciar sua manifestação, ele foi interrompido pelo coro de “retira, retira” pelas centenas de participantes da audiência, que pretendem barrar a matéria da AL. Em resposta, ele afirmou que o Executivo enviou o projeto com bastante tempo para o Legislativo com o fim de ser analisado por todas as comissões que tratam do tema.
O subchefe Legislativo na Casa Civil explicou que a proposta do governo tem por objetivo “a qualificação do serviço” público e que as OS não têm “fins lucrativos.” “Ele está enrolando”, gritavam os manifestantes, interrompendo a fala do representante do Executivo. Marsillac afirmou que o projeto é uma cópia da lei de 1998 com as mesmas áreas contempladas e que 17 Estados já adotam o gerenciamento de instituições e órgãos estatais, por meio de organizações socais. Haverá um conselho de administração, conforme o subchefe Legislativo, para fiscalizar a prestação de serviços das OS, além do controle pelo Tribunal de Contas do Estado (TCE). Por fim, ele afirmou que não há inconstitucionalidade no projeto, como afirmou a deputada Manuela. Ao final de 2015, segundo Marsillac, o Supremo Tribunal Federal julgou constitucional a lei federal de 1998. “Não paira qualquer dúvida sobre a constitucionalidade (do projeto)”, concluiu o representante do governo.
OS para lavagem de dinheiro
Dezenas de representantes de sindicatos de servidores públicos e deputados também fizeram suas manifestações ao longo da audiência. Presidente do Centro dos Professores do Rio Grande do Sul (Cpers/Sindicato), Helenir Schürer destacou que as OS se “prestarão para lavagem dinheiro e acomodar cabo eleitoral”. Com a contratação das organizações sociais, observou a dirigente sindical, o governo se desresponsabiliza por “qualquer política pública” à população. Helenir relembrou, ainda, que outros governos – Germano Rigotto (PMDB) e Yeda Crusius (PSDB) – já tentaram emplacar proposta semelhante e não conseguiram devido à mobilização dos servidores. “Estes, agora, não passarão”, enfatizou a presidente do Cpers.
“O professor é meu amigo, mexeu com ele, mexeu comigo”, gritaram os muitos estudantes presentes na audiência, em solidariedade aos professores. Na sequência, a estudante Fabíola Loguercio se manifestou, classificando a proposta como “um cheque em branco” ao governador Sartori para “colocar seus amigos sem concurso público.” “Não vamos aceitar que o governo mexa com o que é nosso”, avisou ela, afirmando que as organizações sociais irão “estimular a corrupção no Estado.” “Não tem arrego, privatiza minha escola e eu tiro seu sossego”, cantaram em coro os estudantes, após a manifestação da colega. Já o deputado do PSOL, Pedro Ruas, destacou que o projeto tem de se der retirado da Assembleia. O governo, por enquanto, prometeu ao Cpers deixar a proposta paralisada por 90 dias no Legislativo. “Quando ele estiver na Assembleia é uma espada na cabeça. Vamos tirar desta Casa o PL 44”, alertou o parlamentar.
Presidente do Sindicato dos Escrivães, Inspetores e Investigadores de Polícia do RS (Ugeirm), Isaac Ortiz defendeu que os trabalhadores saiam às ruas para barrar retrocessos no Estado e no país. “O PL é um afronta ao serviço de saúde, de segurança. Esse PL 44 não serve para nós, não serve paara ninguém”, acrescentou Ortiz. Já o presidente do Sindicato dos Servidores Públicos do Rio Grande do Sul (Sindsepe), Claudio Augustin, ressaltou que conhece o funcionamento das organizações sociais há muito tempo e que os serviços gerenciados pelas OS só pioraram, como, segundo ele, ocorreu quando uma OS assumiu os postos da saúde da Capital. “Não pode privatizar o que é dever do Estado, as funções típicas do Estado”, argumentou ele. “O Estado não pode abrir mão do seu papel em funções estratégicas”, completou o deputado Adão Villaverde (PT).
Representantes de sindicatos ligados à comunicação também se manifestaram. Presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do RS, Milton Simas, afirmou que o “cenário é terrível” e que a intenção é “esvaziar as fundações de comunicação pública” com a privatização ou sua extinção. “Não vamos descansar enquanto esse PL não for pro lixo”, garantiu Simas. O presidente do Sindicato dos Radialistas do RS, Edson Caverna, por sua vez, reclamou do número de viaturas e policiais acompanhando o pequeno protesto dos funcionários da TVE, na manhã desta segunda-feira, em frente à emissora, administrada pela Fundação Piratini, que pode ser transformada em uma OS. Já a diretora do Semapi, Mara Feltes, disse que o governo Sartori “só não tem projeto para encarar a sonegação”, porque seu vice, José Paulo Cairoli (PSD), é um empresário, criticando o PL 44. “É o projeto do empreguismo, não tem maquiagem, é privatização, é o desmonte das fundações”, disparou Mara.
Já o presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT) no RS, Claudir Nespolo, alertou que o projeto “abre as portas para precarizar o serviço público de A a Z”, questionando o número pequeno de deputados na audiência. Representante do coletivo da Cultura, Gabriel Costa lembrou que, se o projeto for aprovado, “a cultura se tornará uma mercadoria para poucos.” “Esse PL tem de ser retirado, não tem de ser negociado. A cultura é um direito de todos, não se desfaçam dela”, pediu ele.
Ao final da audiência, a deputada Stela Farias, também proponente da atividade, junto com outros deputados tentou sem sucesso entregar a carta com o pedido de retirada do projeto da Assembleia diretamente ao governador ou ao chefe da Casa Civil, Márcio Biolchi (PMDB). O documento acabou sendo entregue ao subchefe Legislativo da Casa Civil, César Marsillac.
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