O que é BNC?
Base nacional comum curricular: o que é isso?
Respondemos a 14 dúvidas dos educadores sobre direitos de aprendizagem e conteúdos para todas as escolas, em discussão no MEC
Camila Camilo
Todo início do ano, ao definir o que ensinar, a professora de Ciências Dayana de Souza, da EM Vereador Edemundo Pereira de Sá Carvalho, em Araruama, a 108 quilômetros do Rio de Janeiro, recorre ao currículo da rede. Diante da mesma situação, José Iolanilson, docente de Geografia da EMEF Padre Inácio, em Boqueirão, a 146 quilômetros de João Pessoa, conta com o livro didático e o apoio da coordenação pedagógica. Já Luciana Balieiro, que leciona para a pré-escola na CMEI Humberto de Alencar Castelo Branco, em Manaus, faz um diagnóstico da turma e planeja as atividades seguindo a tradição da escola.
A definição de quais conteúdos ensinar e do que é desejado que os estudantes saibam é influenciada por diferentes referências. Buscando solucionar a questão, o Ministério da Educação (MEC) convocou pesquisadores, formadores de professores e representantes de associações como a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) e a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped). O grupo vem se reunindo periodicamente para criar a base nacional comum dos currículos, um descritivo de conteúdos e saberes necessários para cada ano e segmento da Educação Básica (leia no quadro abaixo exemplos de três outros países que criaram currículos nacionais).
O próximo passo será a apresentação de uma versão do documento aos secretários de Educação, que o levarão aos professores da sua rede para que seja discutido. "Queremos determinar direitos de aprendizagem e desenvolvimento. A proposta valerá para escolas públicas e particulares", afirma Maria Beatriz Luce, secretária de Educação Básica do MEC. "Estamos pensando qual Educação queremos e que cidadão vamos formar." O debate sobre um currículo nacional é antigo. De um lado, estão os defensores de referências que garantam ao alunado de qualquer cidade ser apresentado aos conteúdos essenciais ao desenvolvimento educacional do país - fundamental à equidade no ensino. Do outro, quem crê na impossibilidade da proposta, dadas as dimensões continentais do nosso território e sua variedade cultural. O argumento é facilmente derrubado, pois a ideia é que cada rede acrescente a ela pontos relacionados à realidade local.
Com a base comum se cumprirá a meta 7 do Plano Nacional de Educação (PNE) - fomentar a qualidade da Educação Básica, do fluxo escolar e da aprendizagem. A lei determina que até junho de 2016 ela seja encaminhada ao Conselho Nacional de Educação (CNE). Os professores, segundo o MEC, poderão opinar por meio de uma plataforma digital, ainda não disponível.
O documento será apenas o primeiro nível de concretização do currículo, que se completa após o trabalho das redes estaduais ou municipais e, posteriormente, de cada escola, com o projeto político-pedagógico (PPP). José Gimeno Sacristán, da Universidade de Valência, na Espanha, aponta no livro Saberes e Incertezas sobre o Currículo (542 págs., Ed. Penso, tel. 0800-703-3444, 72 reais) que as indicações governamentais não constituem por si sós o que vai ser ensinado nas salas de aula. "O currículo deixa de ser um plano proposto quando é interpretado e adotado pelos professores." Por isso, conhecer a proposta é fundamental para que você compreenda o que pode mudar na sua vida profissional e se posicionar.
Currículos pelo mundo
Estados Unidos
-
Início 2008.
-
Quem fez Um grupo privado de educadores, gestores e especialistas ligados à Educação.
-
Especificidades Foca no que ensinar e define padrões para as competências que os alunos devem ter em Língua e Matemática. Se baseia nos elementos comuns entre as unidades da federação.
Austrália
-
Início 2008.
-
Quem fez Uma instituição autônoma, com a ajuda dos melhores especialistas em cada disciplina.
-
Especificidades É baseado em boas práticas nacionais e internacionais e corresponde a 80% dos conteúdos (o restante cabe às escolas).
Argentina
-
Início 2004.
-
Quem fez Políticos, professores e técnicos.
-
Especificidades Define os conteúdos que devem fundamentar os currículos de todas as escolas. Os chamados Núcleos de Aprendizagens Prioritários (NAP) pautam a formação docente e a criação de material didático.
- Vídeo: entrevista com Célia Carolino sobre os níveis de concretização do currículo:
A existência de uma base curricular nacional é suficiente para a melhoria da Educação?
Não. Mas a iniciativa pode ser a espinha dorsal para a criação de outras políticas públicas ligadas à formação e à carreira docentes, às condições de trabalho e de aprendizagem e à infraestrutura. Uma vez definido o que as crianças precisam saber, fica mais fácil estabelecer o necessário para isso acontecer. "Se há uma base comum, é possível determinar seja no sertão ou na cidade, a estrutura para garantir que os alunos aprendam", diz Maria do Pilar Lacerda, diretora da Fundação SM.
Se o país já tem os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e as Diretrizes Nacionais Curriculares, para que criar um currículo?
Os dois documentos trazem orientações para a escola, mas não têm a mesma função de um currículo nacional. Sobre os PCN, a pesquisadora Paula Louzano, doutora em Política Educacional pela Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, afirma que são apenas sugestões. "Eles não explicitam o que o professor tem de ensinar nem o que os alunos têm de aprender." Já as diretrizes foram pensadas para um contexto em que o docente tivesse uma formação que o capacitasse para adaptá-las à sua realidade, o que não ocorreu. "A proposta era avançada, mas, infelizmente, as condições de aplicação foram precárias, com formação docente aligeirada e falta de estrutura nas escolas", conta Carlos Roberto Jamil Cury, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG). "Redes e escolas incorporaram as diretrizes a seu modo e não se garantiu que conteúdos essenciais fossem ensinados em todo o país."
O documento influenciará a formação docente?
Sim. A existência de uma base curricular comum serve para que as graduações em Pedagogia, as licenciaturas e a formação continuada usem os direitos de aprendizagem dos alunos como escopo dos seus programas. Os cursos universitários são pouco voltados a situações práticas. Pesquisa da Fundação Victor Civita (FVC) em parceria com a Fundação Carlos Chagas (FCC), de 2008, mostrou que apenas 28% das disciplinas oferecidas se referem aos conteúdos e atividades da sala de aula. A promessa é que a nova referência curricular ajude a mudar esse cenário. "Não adianta dizer o que e como ensinar nas escolas se os professores não estiverem adequadamente preparados. Por isso, faremos a formação deles articulada com a base", declara Maria Beatriz, do MEC.
As avaliações externas mudarão?
Sim. Os exames nacionais deverão usar como matriz os direitos de aprendizagem descritos na base nacional. Atualmente, em escolas de cidades pequenas, em que as equipes pedagógicas não estão aptas a construir propostas curriculares coesas, o processo se inverte. "As avaliações externas surgiram antes de um currículo robusto e, como possuem indicadores sobre o que esperam que os alunos apresentem nas provas, viraram um norteador para a prática docente", diz Denis Mizne, diretor executivo da Fundação Lemann.
A base nacional é fixa ou pode mudar?
É importante que seja revista periodicamente, até mesmo para que se mantenha contemporânea. "As tendências e os resultados de pesquisas educacionais devem ser incorporados a ela de maneira dinâmica", indica Célia Carolino, docente da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). O ideal é que seja formado um grupo permanente que avalie a implementação da base e analise, de tempos em tempos, o que deu certo, o que precisa mudar e ser acrescentado. Também nessa etapa os professores devem ser convocados a participar. Como lidam com as turmas diariamente, podem indicar em que a referência está funcionando e em que pode melhorar.
O documento tratará da inclusão de alunos com deficiência?
O tema não está em discussão no MEC e, a princípio, a base não incluirá como adaptar os conteúdos a cada uma das deficiências - o que deve ser alvo de outra ação. É desejado que a inclusão de crianças com necessidades educacionais especiais (NEE) - tema caro a gestores e educadores que questionam a falta de formação, pessoal especializado e estrutura para cumprir a tarefa - seja uma das políticas públicas de melhoria da Educação a ser impulsionadas pela base comum. "Não basta dizer que o estudante deve aprender certo conteúdo até determinado ano. É preciso oferecer condições para isso acontecer, tanto na estrutura das escolas quanto na formação dos educadores", aponta Maria do Pilar, da SM.
A proposta vai substituir o currículo das redes que já elaboraram o seu?
Não. A intenção é que o documento traga indicativos do que as crianças e os adolescentes devem aprender nas diversas disciplinas ao fim de cada ano e segmento. A base deve ser o pilar das propostas curriculares das redes, que continuarão existindo e contemplando as peculiaridades da região e o que a comunidade da cidade ou do estado considera imprescindível ser ensinado nas escolas. Para Mizne, da Fundação Lemann, a base ditará aproximadamente 60% dos currículos. O restante ficará por conta das secretarias e das unidades escolares. "Se, por exemplo, um estado da Região Sul achar fundamental que determinada série se aprofunde no estudo sobre Anita Garibaldi (1821-1849), poderá fazê-lo."
O documento substituirá o PPP da escola?
Não. Após os direitos de aprendizagem e os conteúdos serem descritos pela equipe do MEC, cada Secretaria de Educação incluirá nele os temas regionais que seus alunos devem saber. Por fim, essa referência chega às escolas e serve de diretriz para o PPP, que será construído respeitando as necessidades e o contexto locais. "Cada escola é uma unidade única. Quem está nela precisa ter liberdade para analisar o caminho mais adequado a tomar", afirma Sônia Penin, professora e especialista em desenvolvimento curricular da Universidade de São Paulo (USP). "A organização da escola e do educador, assim como os materiais didáticos, é o que define o que e como ensinar", completa Cláudia Galian, pesquisadora da USP.
Como ficarão escolas em situação pouco convencional, como as rurais, as bilíngues e as quilombolas?
A medida deverá valer para todas as instituições, inclusive as que estão inseridas em contextos específicos. Isso não significa, porém, que ensinamentos e tradições passados de geração a geração, tão importantes para esses povos, desaparecerão das salas de aula. Nesses casos, as escolas não deixarão de lado os direitos de aprendizagem descritos na base e vão acrescentar a seu PPP o que é característico da comunidade. Vale lembrar que uma das estratégias para atingir a meta 7 do PNE é que os currículos das instituições de ensino do campo ou que atendam comunidades indígenas ou quilombolas incluam os conteúdos culturais correspondentes. O objetivo, com isso, é fortalecer as práticas socioculturais de cada região.
O uso dos livros didáticos mudará?
O trabalho com eles em sala de aula não muda. O que deve sofrer alterações é a produção dos livros. De modo geral, hoje, eles seguem os PCN e são analisados pelo MEC. A previsão é que passem a ser escritos e avaliados usando a base nacional como referência. Segundo Sacristán, da Universidade de Valéncia, esse é o caminho. Para ele, o livro didático é um dos mediadores entre a referência curricular oficial e a recepção do saber pelos alunos. Somente se adaptado a ela, o material contribui para que os objetivos de aprendizagem sejam atingidos. Com a nova base, a expectativa é corrigir um problema geral no país: "Em muitas redes, principalmente naquelas em piores condições, o material didático pauta o currículo, e não o inverso", explica a pesquisadora Paula.
A existência de uma base nacional comum prejudica a autonomia do educador?
Não. Como política pública, ela visa a igualdade entre todos os estudantes ao definir os mesmos conteúdos e direitos de aprendizagem para o Brasil inteiro, independentemente do contexto em que vivem. Não deve, no entanto, intervir na metodologia de ensino nem em projetos, atividades e sequências didáticas desenvolvidos em sala. Isso continuará a cargo dos educadores. A proposta do governo deve ser lida e analisada por eles, e não ditar como devem trabalhar. "Um bom currículo tem uma linguagem clara e objetiva, fala diretamente com o professor e respeita a experiência que ele traz", afirma a pesquisadora Paula. Por isso, quem está em sala de aula diariamente deve participar da construção da nova referência. Michael Young, da Universidade de Londres, na Inglaterra, acredita que o documento dá liderança aos docentes à medida que permite a interpretação e a adaptação do seu conteúdo. O especialista defende também que os elaboradores do currículo pensem em como o professor pode fazer para que os alunos progridam nos conceitos estudados.
O horário de trabalho pedagógico coletivo (HTPC) deve ser incluído na proposta?
Não. O principal foco do documento é o aluno e a garantia do seu direito à aprendizagem. Contudo, o HTPC é uma oportunidade preciosa para que a equipe pedagógica de cada instituição discuta a relação entre a base, a proposta definida pela rede e o PPP. Uma parte da formação necessária para se adequar às novas referências pode, inclusive, ser realizada nesses encontros, dos quais a escola não deve abrir mão. Vale destacar que são os educadores que devem, diante do contexto local, planejar o trabalho para que os objetivos definidos para os estudantes sejam plenamente atingidos. "A discussão sobre documentos oficiais, a análise de materiais curriculares e o planejamento de sequências de atividades com base nos objetivos de aprendizagem são tarefas essenciais na formação docente", analisa Célia, da PUC.
O documento deve conter indicações sobre avaliação?
A intenção do governo é se concentrar nos direitos de aprendizagem de todos os alunos. Sendo assim, a medida deve pautar as avaliações externas, não aquelas que ocorrem periodicamente nas salas de aula. Cabe ao educador a decisão sobre a melhor maneira de verificar a aprendizagem da turma, que está ligada aos objetivos definidos por ele, assim como a metodologia adequada ao ensino de cada um dos conteúdos.
O que muda na vida dos estudantes?
Os defensores do documento afirmam que ele é uma medida de igualdade que repercute diretamente na vida de crianças e adolescentes. "Com a base, será dada coerência ao sistema educacional, pois todos terão uma meta de aprendizagem igual a alcançar em todo o país," analisa Eduardo Deschamps, secretário de Educação de Santa Catarina. Dessa forma, se o estudante for morar em outra cidade, for transferido da rede pública para a particular ou simplesmente trocar de escola, a continuidade dos conteúdos e das expectativas de aprendizagem tende a ser mais organizada.
http://revistaescola.abril.com.br/politicas-publicas/base-nacional-comum-curricular-curriculo-ppp-mec-812097.shtml