O papel(ão) do Judiciário
O poder da Justiça definiu os contornos do golpe contra Dilma e deu capa de legalidade com omissões, protelações e permissividades
Por Lúcia Rodrigues
Da Caros Amigos
O judiciário não é neutro. Tem lado. E é o lado da classe dominante. A máscara da justiça cega, surda e muda caiu por terra no Brasil. A deusa Têmis está desnuda e o mundo sabe disso. O golpe parlamentar que afastou a presidente eleita Dilma Rousseff do cargo encontrou seu porto seguro no QG do Judiciário brasileiro.
Um juiz de primeira instância amparado por uma Corte Suprema permitiu o estupro coletivo da Constituição por um grupo de deputados e senadores. O próprio Sérgio Moro começou a violação ao desrespeitar as garantias fundamentais previstas na Carta Magna. Há quem diga que o treinamento que Moro recebeu nos Estados Unidos, como revelado pelo jornal Washington Post, foi justamente para funcionar como a fagulha no combustível derramado pelo Congresso que incendiou o País com o fósforo riscado pela mídia empresarial, para que os donos do poder econômico retomassem o controle também do Estado. Segundo o jornal conservador, em 2007, Moro teria participado de um curso de três semanas patrocinado pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos voltado para potenciais líderes.
Como se sabe, os Estados Unidos não costumam apostar suas fichas em aventuras. Seu Departamento Estado, que está localizado a poucas quadras da Casa Branca, é o responsável pela implementação da política externa. O pré-sal é apenas um dos recursos que estão na mira dos estadunidenses. Os Brics (Brasil, Índia, China, Rússia e Africa do Sul) e seu banco, com a possibilidade de fortalecimento de uma nova moeda frente ao dólar, é um entrave demasiadamente robusto para ser enfrentado apenas com diplomacia yankee.
Justiça de classe
O Judiciário tem uma estrutura montada para julgamentos que atendam a interesses de classe. A constatação é do juiz João Batista Damasceno, que além de conhecer por dentro os meandros desse poder, também é estudioso do tema. Ele defendeu dissertação de mestrado na Universidade Federal do Rio de Janeiro sobre o assunto e explica que desde os tempos do Brasil Colônia a Justiça é comandada pelos do andar de cima.
A tradição brasileira se inspirou no modelo que surgiu com a Revolução Francesa. “A estrutura de funcionamento do poder Judiciário foi pensada pela burguesia que assumiu o poder em 1789”. O magistrado conta que 93% dos membros que escreveram a Constituição francesa, de 1791, eram juristas. “Juristas a serviço da classe burguesa, que estava tomando o poder, tomando as instituições na França e afastando a aristocracia, a nobreza”.
No Brasil as características foram adaptadas à realidade local. Mas desde a Colônia, o poder Judiciário serviu para garantir os interesses do capital. De lá pra cá, esses laços só se reforçaram. Exemplo cabal de como a Justiça é amoldada para atender a esses interesses está explícito no Documento Técnico 319, de 1996, elaborado pelo Banco Interamericano para a Reconstrução e o Desenvolvimento (Bird), que formata as linhas mestras da reforma do Judiciário para a América Latina e Caribe. “Esse documento foi organizado para garantir a estabilidade jurídica para os investidores. O capital quer ter o controle sobre a decisão da sentença”, enfatiza o juiz. “A reforma econômica requer um bom funcionamento do Judiciário o qual deve interpretar e aplicar as leis e normas de forma previsível e eficiente. Com a emergência da abertura dos mercados aumenta a necessidade de um sistema jurídico”, diz trecho do documento, que curiosamente só conseguiu ser aprovado durante o governo do presidente Lula, quando Henrique Meirelles, estava à frente do Banco Central.
No campo político, o Judiciário também sempre assumiu posturas conservadoras. No golpe de 1964, foi o Supremo Tribunal Federal que garantiu legitimidade a um governo que chegou ao poder pelos tanques. “O Judiciário sempre funcionou assim. Sempre teve arroubos de covardia diante dos poderosos. Foi o poder que mais falhou na República”, alfineta Damasceno.
Estado de exceção
A compreensão desse histórico facilita o entendimento do presente. A forma como o Supremo vem se comportando no processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff evidencia seu caráter de tribunal político na defesa do poder econômico. Até nas omissões, como foi o caso do protelamento do julgamento da ação em que o governo requeria o direito da presidente nomear para o cargo de ministro-chefe da Casa Civil, o ex-presidente Lula, essa postura esteve presente.
“Ao não tomar a decisão, a decisão foi tomada”, destaca o professor de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Frederico Almeida. Para ele, o golpe na democracia ocorreu no Judiciário. “O golpe foi dado no momento em que Moro divulgou os áudios com as conversas da presidente Dilma e do ex-presidente Lula. Porque isso inviabilizou que ele atuasse politicamente. Porque não é a mesma coisa você articular um governo de um quarto de hotel e do Palácio”, reforça. “O governo foi impedido de resolver problemas políticos por meios políticos. Se Lula tivesse sido ministro, faria toda a diferença”. Ao não julgar a ação que garantia o direito de Lula ser ministro influenciaram diretamente no processo. “Mesmo alegando que não, eles já estavam influenciando. Foi um órgão não eleito derrubando uma presidente eleita”, critica o professor.
Para o jornalista e sociólogo Laymert Garcia dos Santos (leia entrevista na página 17), as instituições estão sendo desmontadas via Judiciário. “A Constituição foi destruída por aqueles que deveriam preservá-la. Estamos vendo que a lei não vale mais nada. Tudo está sendo feito para que não pareça golpe, mas é golpe!”, afirma.
Ele destaca que o País vive hoje um estado de exceção e vê semelhanças com a República de Weimar, que caiu antes da ascensão do nazismo na Alemanha. “A República de Weimar foi implodida com a ajuda do Judiciário e se instalou um estado de exceção, que é quando o direito é suspenso. Hoje, já estamos vivendo isso no Brasil. Não existe a garantia de direitos nem para a presidente…”.
A interceptação e divulgação dos grampos com as conversas de Dilma com o ex-presidente Lula evidenciam a preocupação de Laymert. O estado de exceção pode atingir a todos. Além de monitorar a presidente eleita, Moro também grampeou 25 advogados e clientes que têm causas defendidas pelo escritório jurídico de defesa do ex-presidente, na capital paulista. “Não podemos admitir isso. Não podemos concordar que recursos fora da lei sejam utilizados. O presidente Lula teve a conversa com o (advogado) doutor Roberto Teixeira grampeada no momento em que a Polícia Federal chegou a seu apartamento para levá-lo coercitivamente. Quebrar o sigilo da conversa entre cliente e advogado é um absurdo”, critica o advogado de Lula, Cristiano Zanin Martins. Ele conta que os familiares de Lula que não são alvo das investigações da Lava Jato também foram atingidos pela medida arbitrária.
A condução coercitiva também foi utilizada de forma abusiva contra o ex-presidente e investigados na Lava Jato. Normalmente essa prerrogativa só ocorre após a pessoa se negar a comparecer à intimação judicial. No caso de Lula, ele nunca deixou de atender a nenhuma convocação judicial. Mesmo assim foi conduzido coercitivamente por policiais federais até o aeroporto de Congonhas, em São Paulo, onde seria embarcado em um avião da polícia para ser levado à presença de Moro, em Curitiba (PR) – uma versão é que o rapto do ex-presidente foi evitado por um oficial da Aeronáutica, legalista, que na falta de um mandado judicial, impediu que a aeronave decolasse ao ordenando que soldados da Força Aérea cercassem o avião.
Insegurança jurídica
O vazamento de áudios com conversas da presidente Dilma Rousseff por um juiz de primeira instância é considerado um ataque frontal à lei em qualquer país com regras democráticas. Mas no Brasil da “República de Curitiba”, o Supremo Tribunal Federal acabou por chancelar mais essa violação cometida por Moro ao não refutá-la de forma explícita.
A sucessão de arbitrariedades cometidas e ocultadas pelo Judiciário reforçam a convicção de que já vivemos em um estado de exceção em que a lei só serve para punir um lado. E o STF está sendo o órgão que com suas omissões e decisões tortas está permitindo que as instituições brasileiras estejam em xeque neste momento. “Presenciamos uma série de atos que confirmam a violência jurídica à margem do que a lei e a Constituição estabelecem. Um retrato de uma situação de abuso e extrapolação do poder de julgar. Hoje, infelizmente essas medidas estão sendo reproduzidas por outros juízes. Estão copiando os excessos da Operação Lava Jato”, lamenta Zanin ao se referir às práticas disseminadas por Moro.
Ele ressalta que, devido à insegurança jurídica criada por essas decisões discricionárias de Moro, tramita no Supremo uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) para que o órgão estabeleça regras contra a insegurança jurídica. Zanin revela que em 2013, o STF censurou Moro pelo monitoramento indevido entre cliente e advogado. “O ministro Celso de Melo considerou o caso gravíssimo”. Mas no caso dos grampos de 2016, não se viu nenhuma admoestação ao juiz. “Conversei com vários advogados estrangeiros. E a visão que eles têm é de que o Brasil está de ponta cabeça, e de que não há mais lei, que qualquer um pode ser vítima de medidas abusivas”, diz Zanin.
“Sérgio Moro é a patologia mais aguda desse modelo. Criou uma ilha de exceção em Curitiba, onde suspendeu a maioria das garantias constitucionais, com o beneplácito das instâncias superiores”, reforça o professor de Direito da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, Yuri Carajelescov. “Perdemos as balizas do estado democrático de direito com a criação de ilhas de exceção. Hoje se prende para depois se comprovar o crime. A exceção virou regra. Mas no direito penal não se pode supor, tem de se provar. Pela lógica da suposição é possível prender até o Papa Francisco”, critica Yuri. O professor da FGV ressalta que Moro age de forma discricionária porque não encontra a resistência nas instâncias superiores. “Por isso, o Lula disse que o Supremo estava acovardado”.
O presidente da Associação Juízes para a Democracia (AJD), André Bezerra, alerta para a inadaptação do Judiciário no modelo democrático previsto na Constituição de 1988. “Temos de um lado, o STF formado por membros escolhidos sem nenhuma participação da sociedade civil E de outro, um Judiciário formado por instâncias inferiores (primeira e segunda), cujos membros são oriundos de um ensino jurídico acrítico que, no final das contas, legitima a ideologia punitivista e naturaliza as desigualdades da sociedade brasileira”.
A preocupação de André também é compartilhada pelo professor Yuri Carajelescov. Ele ressalta que os juízes julgam de acordo com suas experiências e seus valores. “Paulo Freire dizia que a percepção do mundo se dá a partir de onde estão colocados os seus pés”. A maioria esmagadora dos juízes advém das classes média e alta. O reflexo disso se expressa, por exemplo, no perfil da população carcerária que abarrota os presídios. “O Judiciário não aplica a lei friamente. Há o subjetivismo do juiz. O resultado é o que vemos nas prisões. O filme Meu Nome Não É Johnny mostra como a juíza é indulgente com o rapaz (traficante) de classe média alta. Ela o identifica como se fosse um filho. Essa é seletividade da Justiça”.
A forma como se constitui esse poder explica o resultado de suas sentenças. Apesar de o acesso à carreira se dar por meio de concurso, ele está longe de ser republicano. Os concursos são organizados e as questões elaboradas pelo próprio Judiciário. Isso dá margem para a perpetuação de feudos e de clãs familiares nesse poder. “Esses concursos são à base de conhecimentos enciclopédicos, de decoreba. É preciso acabar com isso. É fundamental uma central nacional de concursos para tirar dos tribunais esse poder. A prova oral então é uma excrecência, permite a manipulação de toda a sorte de subjetivismo. Os concursos precisam ser democratizados. É preciso tirar o poder dos tribunais manterem seus feudos. Eu já fiquei sabendo de concurso aberto só para receber uma determinada pessoa”, revela Yuri.
Justiça seletiva
“O Judiciário internamente é pouco democrático, o que possibilita amplos poderes aos presidentes dos tribunais, que sequer são eleitos por todos os juízes. Sem contar que os membros do Judiciário são recrutados de uma parcela da sociedade, a sociedade branca, submetida, praticamente desde o dia do nascimento, ao bombardeio da propaganda dos meios de comunicação em favor da concepção autoritária de poder, vide os programas policiais. Esta propaganda midiática reflete-se no comportamento dos membros da sociedade, inclusive daqueles membros que fazem parte do Judiciário”, frisa André.
O presidente da AJD alerta para o perigo representado pelo envolvimento do Judiciário com a mídia. “O Judiciário deve tomar cuidado para não ser pautado pela mídia. Primeiro, porque os interesses que movem as empresas de comunicação nem sempre são coincidentes com o interesse público buscado pelo Judiciário. E, em segundo lugar, porque há matérias relacionadas às minorias, cuja garantia de direitos cabe também ao Judiciário. Exemplo: o caso dos presos, cujas demanda nem sempre contam com a simpatia da opinião pública, especialmente a influenciada pela mídia”.
Yuri é um dos que criticam duramente a relação simbiótica entre Judiciário e mídia e cita o caso da Operação Lava Jato como exemplo. “Moro só atua com desenvoltura porque tem o respaldo dos meios de comunicação. Um juiz obscuro que se tornou celebridade, e ganha prêmio da (revista estadunidense) Time”. A falta de controle do Judiciário é um dos aspectos que preocupam juristas e operadores do direito. Um juiz federal de Curitiba, que prefere não se identificar, relata à reportagem sua angústia. “Minha preocupação é com a efetividade dos direitos fundamentais, em particular com os direitos fundamentais assegurados aos mais fracos e marginalizados. O risco que vivemos, no momento, é que algumas conquistas sejam deitadas por terra. O problema todo é que se imagina que o Direito seja técnico, anódino, neutro. E a aplicação da lei é tudo, menos isso”, afirma a fonte.
“O Direito não irá democratizar a sociedade. Pode contribuir para que haja mais democracia, mas não para democratizá-la. E o pior de tudo que pode fazer é vender a ideia de neutralidade. Porque isso lança um certo verniz de ‘cientificidade’ ou ‘isenção’ para efetivar tomadas de posição, ocultando o jogo. Precisamos gerar constrangimento, no bom sentido. A comunidade política deve discutir as decisões judiciais, mesmo quando tem de cumpri-las”. O magistrado não vê neste momento nenhum contrapeso que pudesse fazer frente ao STF. “Infelizmente, no momento, não há. Em termos ideais, teríamos de repensar o sistema político como um todo. O modelo de democracia delegativa se exauriu. É preciso uma reforma política urgente. Mas não qualquer uma. Precisamos daquela que fortaleça a representação popular. Para que a maioria do povo possa se reconhecer no Congresso. Precisamos de uma Emenda Constitucional para tratar das competências do Supremo Tribunal Federal”
O anonimato garante ao juiz federal que atua na mesma cidade de Moro a certeza de que o conteúdo da entrevista não poderá ser utilizado contra ele. Hoje, até mesmo os juízes estão sendo alvos de perseguições apenas por atuarem juridicamente em favor dos mais vulneráveis. A reportagem de Caros Amigos apurou que há pelo menos seis casos de juízes com esse perfil que estão sendo vítimas de processos movidos por seus pares do poder Judiciário.
O juiz Damasceno é um dos que já foi processado. O crime? Pendurar um quadro em seu gabinete com uma ilustração do cartunista Latuff, intitulado Cultura de Paz, que retrata um homem negro pendurado em uma cruz sendo alvejado por um policial militar. Por esse motivo, ele sofreu uma representação por suposto descumprimento do dever funcional. De acordo com a Corregedoria, o quadro atacava a Polícia Militar e não poderia continuar pendurado na parede do Judiciário, porque representava uma crítica a outra instituição.
O processo contra o magistrado foi movido pelo filho de Jair Bolsonaro (PSC-RJ), o deputado estadual Flavio Bolsonaro, do mesmo partido que o pai. O fato da presidente do Tribunal à época ser filha de policial acabou agravando a situação de Damasceno, que teve de retirar o quadro de seu gabinete. Outra magistrada que sofre perseguição por ter exercido seu papel é a desembargadora Kenarik Boujikian. Por ter concedido alvará de soltura para presos que já haviam cumprido pena, ela está sendo acionada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. Para o Tribunal, Kenarik não poderia tomar a decisão de forma “monocrática”, ou seja, sozinha.
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