O mais infame dos documentos
O mais infame dos documentos farrapos
Nenhum autor aborda o documento infame.
Ele é a marca de minha História regional da infâmia.
O mais infame dos documentos
Tudo se vincula num momento e de perde no seguinte. A história sempre se faz num presente alheio ao dos fatos. Perguntas vão e voltam. Como se financiou a Revolução Farroupilha? A famosa Coleção Varela, publicada sob o título de “Anais do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul”, contém em torno de 13 mil documentos sobre a guerra dos farrapos que podem dar respostas surpreendentes e curiosas a essa questão. No volume 3, sob o número 652, encontra-se aquele que se deveria chamar de o mais infame dos documentos, ou documento ignominioso, ainda mais se o lema dos farrapos era mesmo “liberdade, igualdade e humanidade” e se, na época da eclosão do movimento, a causa abolicionista havia vencido, como já se disse, em outros países ocidentais, inclusive nalguns da triste América do Sul. O tráfico no Brasil estava formalmente proibido. Domingos José de Almeida, autor do documento infame, foi o mentor intelectual dos farroupilhas. O historiador e general Morivalde Calvet Fagundes, repetindo muitos outros, garante que Almeida foi um dos que “definiu o rumo da revolução” (1984, p. 151). Ele chegou a ser ministro da Fazenda da República Rio-Grandense. Vicente da Fontoura, que o sucedeu no posto, acusou-o de malversação de verbas e outros deslizes burocráticos tão comuns atualmente.
Em 25 de outubro de 1845, Almeida comete o documento ignominioso. Em carta a David Canabarro, pede o testemunho do último chefe do exército farroupilha em seu favor numa causa infame: “Com a ocorrência de 15 de junho de 1836 que pôs a capital da Província em poder de nossos antagonistas, forçoso foi para cada um de nós, além de nossos serviços pessoais, concorrer com a quota que nos foi possível agenciar para obter objetos bélicos e todos os meios de prosseguir na empresa em que nós achávamos empenhados: a mim, pois, me coube despender no conserto da escuna ‘2 de Junho’, no armamento da escuna ‘30 de Maio’, na criação do Trem de Guerra, no feitio de roupas para o exército, e no suprimento de quantias à soma de Rs. 3.647$455…”. [N1] O financiador queria então receber.
Para sustentar a sua reclamação, explicava como financiara a parte que lhe coubera num movimento revolucionário cujos herdeiros ainda pretendem que tenha sido abolicionista: “Prevendo os resultados da retirada de 4 de janeiro de 1837 se nossos companheiros não fossem de pronto socorridos de cavalgadura, roupa, fumo e erva, nesse mesmo dia despachei 35 escravos, que de minha propriedade tinha já no departamento de Cerro Largo, com Vicente José Pinto para serem vendidos em Montevidéu e seu produto aplicar a esse importante fim”. A revolução farroupilha foi, portanto, financiada com a venda de homens. Uma revolução por igualdade, liberdade e humanidade sustentada com a venda de negros. Almeida ainda precisou para que o seu interlocutor não o tomasse por desonesto: “Tais escravos foram com efeito vendidos a Manuel Gonçalves da Costa, e pouco depois dois mais: um a José Tavares, de Taquari, em pagamento de cavalos que lhe comprei para o exército…”. Uma verdade incômoda.
Almeida apresenta provas documentais e garante que as quantias foram “fielmente aplicadas na manutenção da guerra”. Para confirmar que estava falando rigorosamente a verdade, recorre ao testemunho imparcial do inimigo. Correspondência sua ao general Neto, de 23 de março de 1839, sobre o caso, tendo caído em mãos dos adversários, havia sido impressa no jornal “O Mercantil do Rio Grande”, o que, segundo ele, “tanto me havia de servir um dia essa impressão para mostrar pelo veículo do inimigo a veracidade dos fatos”. Almeida dizia tudo isso a Canabarro para combater a “torpeza” e as “negras calúnias” que o faziam sentir “agonias mortais”, o que o obrigava a “apelar para o reto bom senso e a probidade de V.Sª”. No imaginário dos homens comuns, revoluções pela igualdade e pela humanidade normalmente libertam escravos, não se financiam com a venda deles. Ou, seja por decoro ou por discrição, não apresentam a fatura no caixa do novo regime. Era assim, ao menos, na mitologia. Que sirvam nossas façanhas de modelo a toda terra!