Notório saber na educação
“Notório saber” na educação desonera o Estado de sua responsabilidade
A estratégia coloca em sala de aula professores sem a qualificação adequada e ataca os cursos de formação docente
ANA ARCHANGELO 6 de fevereiro de 2017
O “notório saber” é medida de caráter excepcional para reconhecimento público de conhecimento e erudição. Em sua origem, portanto, não consiste em atalho a qualquer processo de formação. O Projeto de Lei 839/2016, contudo, valendo-se da Medida Provisória 746/2016 , subverte por completo seu sentido original. Propõe a certificação de conhecimento para professores da educação básica, em qualquer área do conhecimento, e para qualquer nível de ensino. Sua finalidade precípua é reduzir o déficit de professores da rede estadual de ensino, ampliando o contingente de profissionais “habilitados” a assumir a árdua e relevante tarefa de formar nossos jovens.
O Artigo 1º do PL prevê que a certificação pode ser feita por dois caminhos. No Inciso II, a certificação é conferida por uma banca de “professores notáveis” da rede estadual, escolhida pelo Dirigente de Ensino de cada região. Não fosse inviável pela ordem de grandeza dos números relativos ao sistema de ensino paulista, poderíamos dizer que tal inciso guarda o mérito de alguma elegância.
Viável, apenas o previsto no problemático Inciso I do Artigo 1º. Nele prevê-se que a certificação será feita por Instituições de Ensino Superior. O Projeto de Lei, contudo, silencia sobre os critérios para concedê-la. A que serve esse silêncio? Como certificar o “notório saber”? Mediante prova de conhecimentos específicos? Ou prova didática, que comprove competência pedagógica? Prova de títulos? Por meio de quais critérios o postulante deverá ser avaliado? Mais ainda, qual seria o interesse de uma Instituição de Ensino Superior em fornecer o certificado de “notório saber” àqueles que, em tese, seriam seus potenciais estudantes?
A formação de professores oferecida por instituições reconhecidas por seu mérito acadêmico e científico exige que os alunos não apenas dominem os conteúdos específicos de uma área de conhecimento, mas transitem entre conhecimentos de Psicologia, Filosofia e História, Ciências Sociais, Didática, Metodologia de Ensino, Políticas Educacionais e, fundamentalmente, tenham o contato qualificado, supervisionado e problematizador com a realidade educacional, com a sala de aula, com a prática pedagógica. Isso, inclusive, é o que exige a Deliberação 111/2012 (126/2014), editada pelo Conselho Estadual de Educação de São Paulo. Em uma formação sólida, a prática não está desarticulada da compreensão profunda dos processos históricos, sociais, culturais, psicológicos constitutivos dos sujeitos-aprendizes, das instituições e da sociedade.
Nossa história recente tem nos mostrado que quando a educação é compreendida como privilégio para poucos ou como mercadoria de baixa qualidade para muitos, e não como direito social, as distorções são inúmeras, e os danos, sérios. A adoção do “notório saber” para a Educação Básica é nociva a curto e a médio prazos e, portanto, desaconselhável. A curto prazo e a um só tempo, coloca em sala de aula professores sem a qualificação adequada e ataca os cursos de formação de professores comprometidos com a melhoria da qualidade da educação básica. Esses cursos concorrerão com a formação técnica e a possibilidade posterior de certificação de notório saber para a docência. Nesse cenário, a quem as licenciaturas seriam atrativas?
A médio prazo, isenta o Estado de sua responsabilidade com as políticas de formação de professores e de valorização da carreira docente. O Estado se desincumbe da responsabilidade pelo déficit de professores, que é real, em especial em algumas áreas do conhecimento; e que decorre da negligência para com a educação pública, em alguns casos, e de inúmeras medidas tomadas para desvalorizar a carreira docente, em outros. Mais uma vez assistimos a uma dinâmica que lança mão da negação dos reais determinantes do problema que o Projeto de Lei diz pretender solucionar, em prol de medidas paliativas, por meio das quais se expressa um profundo descaso para com a formação de professores e com a educação das crianças e jovens em nosso país.
Ana Archangelo é professora da Faculdade de Educação da Unicamp e Presidente da Comissão Permanente de Formação de Professores da Unicamp (CPFP)