Nossa democracia
‘Nossa democracia é uma fina camada de gelo sobre um oceano de ódio e intolerância’
Marco Weissheimer
A recente agressão ao estudante indígena na frente da Casa de Estudante da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o ataque a clientes e funcionários do bar Odeon por, supostamente, ser um “bar de petistas” e pessoas sendo hostilizadas nas ruas em função da cor da roupa que estão vestindo devem acender o sinal vermelho de alerta para todo o país para o clima de ódio que está ganhando espaço na sociedade brasileira. A advertência foi feita pelo professor Marcelo Kunrath, do Departamento de Sociologia da UFRGS, durante a aula pública realizada na tarde desta quarta-feira, em frente ao prédio da Faculdade de Educação (Faced). Iniciativa de um grupo de professores do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da UFRGS, o encontro reuniu centenas de estudantes, professores e funcionários da universidade que debateram o atual momento político vivido no país e as ameaças que pairam sobre a democracia brasileira.
A professora Soraya Cortes, diretora do IFHC, abriu a aula pública esclarecendo que os professores do instituto que aceitaram participar do encontro falariam em nome próprio, não expressando posições oficiais de seus respectivos departamentos. “O que nos une hoje aqui é a defesa da democracia”, assinalou. Ao falar da efervescência social e política vivida pelo país, Marcelo Kunrath destacou a necessidade de lutar pela manutenção das condições de possibilidade da própria democracia, que estão sob ameaça. Na avaliação do sociólogo, a transformação do debate político no país em um debate moralista que, supostamente, opõe o bem contra o mal é algo profundamente nefasto para a democracia brasileira. Mais de um participante da aula pública falou sobre a fragilidade dessa democracia que parecia estar consolidada.
“A democracia que nós construímos nas últimas décadas é uma fina de camada de gelo sobre um oceano de autoritarismo, ódio e intolerância”, afirmou Kunrath, que lembrou alguns dos casos de violência e agressões ocorridos em Porto Alegre nos últimos dias. “Isso para não falar do que está acontecendo na internet que se tornou também um canal de disseminação do ódio”, acrescentou. Além da ameaça de ruptura social, o professor da UFRGS também alertou para o risco de rupturas institucionais de várias ordens. “Quando um juiz reconhece a ilegalidade do seu ato, mas o justifica pelo objetivo que está buscando, está praticando uma ruptura grave”, exemplificou. Kunrath também criticou a atuação da mídia, que estaria desconstruindo as fontes da própria legitimidade enquanto fonte de informação confiável”. Neste cenário, o sociólogo defendeu como tarefa urgente uma disputa cultural pelos valores da democracia, que estão sob ataque.
“A corrupção nunca preocupou as elites brasileiras”
A professora Celi Pinto, do Departamento de História da UFRGS, lembrou que, no mesmo lugar onde estava ocorrendo a aula pública, ela se defrontou pela primeira vez com o autoritarismo. “Foi neste prédio que me defrontei, em 1968, com policiais agentes do DOPS entrando no Colégio de Aplicação para fichar alunos e depois invadindo a Faculdade de Filosofia”. Celi Pinto sustentou que a crise atual não se deve aos grandes problemas que os governos do PT acumularam nestes últimos 14 anos, mas sim às suas qualidades e aos seus acertos. Em 1964, assinalou, o capitalismo brasileiro e a banca internacional estavam sendo confrontados por projetos de reformas que ampliavam direitos e a própria democracia. É isso que está na base também da crise atual, assinalou, enfatizando que a corrupção nunca foi algo que preocupou as elites brasileiras.
“Não podemos esquecer esse cenário. Não é por nada que a Fiesp está apoiando o golpe e as manifestações contra o governo, colocando aquele pato amarelo ridículo na avenida Paulista. Devemos olhar o contexto maior que estamos vivendo. Neste período, todas as experiências de esquerda no continente estão sendo pressionadas e derrubadas. Não estamos brincando com amadores”, advertiu a professora do Departamento de História. E acrescentou, chamando a atenção de todos para a gravidade do momento: “Temos um Legislativo sequestrado por Eduardo Cunha e com síndrome de Estocolmo, um Executivo paralisado, um Judiciário que está se espetacularizando e uma massa de pessoas despolitizadas nas ruas se manifestando contra os partidos e a política. Esse é um cenário extremamente perigoso”.
A relação entre privacidade e democracia
Felipe Gonçalves Silva, professor do Departamento de Filosofia da UFRGS, abordou, por sua vez, a relação entre privacidade e democracia. É fundamental, defendeu, estabelecer esse vínculo de uma forma não individualista, pois a esfera privada não é uma esfera de isolamento, possuindo uma posição defensiva e uma posição positiva no terreno da luta política. Em sua posição defensiva, disse Felipe Silva, a esfera privada protege a liberdade de pensamento de tal modo que a possibilidade de tornarmos públicas nossas posições não seja prejudica por uma exposição coagida das mesmas. Mas ela também tem, acrescentou, uma função positiva na construção de contra-poderes ao poder estabelecido.
O pesquisador lembrou a obra “Origens do Totalitarismo”, de Hannah Arendt, para falar dos riscos da supressão da privacidade. Segundo Hannah Arendt, o poder totalitário não se instala apenas pelo controle da esfera pública. Ele envolve também a supressão da esfera privada por meio da instauração de uma polícia secreta. “Não somos contra o combate às patologias de nosso sistema político. Somos contra a tentativa de derrubar um governo eleito, com o uso de quebra de sigilos telefônico, exposição coagida de opiniões e utilização seletiva e manipulatória do poder Judiciário”, afirmou Felipe Silva.
Operação de desconstrução simbólica
O professor Caleb Faria Alves, do Departamento de Antropologia da UFRGS, enumerou a série de mensagens fantasiosas e falsas que vêm circulando na internet e na própria mídia para falar da operação de desconstrução simbólica em curso no Brasil. “Ontem recebi uma mensagem que dizia que a Dilma estava desesperada por dinheiro e, por isso, estava multando carros nas ruas, usando até o Exército para fazer isso”, exemplificou Caleb Alves, citando também a divulgação em rede nacional de televisão de conversas privadas entre a esposa de Lula e o próprio filho.
“O que está em jogo aqui são signos sociais de pertencimento”, assinalou. O que essas mensagens dizem é que essas pessoas (Lula e sua família) não podem estar no lugar onde estão, pois, supostamente, não pertencem a ele socialmente. O que está em jogo, acrescentou o professor da UFRGS, é a construção de legitimidade em torno da questão: a quem pertence esse espaço público.
Retomando o ponto desenvolvido pelo sociólogo Marcelo Kunrath, a cientista política Maria Isabel Noll destacou que a sociedade brasileira é profundamente conservadora e não tem uma paixão particular pela democracia. “Talvez, nós, cientistas políticos, tenhamos sido demasiadamente otimistas com os avanços da democracia brasileira”. A crise atual, assinalou ainda, é decorrente também de traços de longa duração em nossa história, como a existência de um Estado muito pesado e avesso a mudanças e uma cultura de mudanças negociadas, sem que o custo dessas negociações seja transparente. Na mesma direção, o cientista político Benedito Tadeu César defendeu que não estamos na iminência de um golpe de Estado clássico, mas sim diante da possibilidade de uma ruptura institucional, com todos os poderes sendo questionados. “O equilíbrio entre os poderes, fundamental para a democracia, foi rompido”, afirmou.
Bernadete Menezes, da coordenação da Associação de Servidores da UFRGS (Assufrgs), parceira na realização da aula pública, assinalou que, apesar das diferenças com o governo Dilma, a entidade tem lado. “Estamos saindo de quatro meses de greve, mas temos lado. Estamos hoje aqui reunidos para fazer política e defender a nossa frágil democracia. Temos que alagar a democracia. Só isso vai impedir o golpe”, disse Berna lembrando que os limites dessa democracia aparecem ainda no âmbito da própria universidade. “Nós nem conseguimos fazer uma Comissão da Verdade aqui dentro da UFRGS para elucidar o que aconteceu durante a ditadura”, lembrou.