Não basta só cortar gastos
Não basta só cortar gastos, é preciso combater a sonegação, diz presidente do TCE-RS
Luís Eduardo Gomes
Com aprovação da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) pela Assembleia Legislativa na última terça-feira (14), os serviços públicos do Rio Grande do Sul serão afetados pelo congelamento de gastos, o que inclui a manutenção dos salários dos servidores nos níveis atuais, mas também os recursos para o custeio de suas operações. Um dos órgãos afetados, o Tribunal de Contas do Estado (TCE-RS), poderá, por exemplo, ter de reduzir o número de auditorias realizadas.
Em conversa com o Sul21, o presidente do TCE-RS, Cezar Miola, explicou como a aprovação da LDO deve afetar os trabalhos do tribunal e sobre como o tribunal pode ou não agir diante da decisão do governo do Estado de suspender repasses para os municípios e atrasar o pagamento da folha do funcionalismo estadual. Para Miola, as políticas de contenção de gastos que vêm sendo implementas pelo Executivo estadual devem ser acompanhadas por estratégias para aumentar a receita, como o combate à sonegação de impostos.
Sul21 – Como o congelamento do orçamento de 2016 afeta o funcionamento do TCE?
Cezar Miola: Temos demonstrado preocupação desde que a LDO foi encaminhada ao Legislativo. Não tivemos oportunidade de discutir o projeto com o Executivo. Fomos informados (de suas bases gerais) na véspera de o projeto ser protocolado (15 de maio). Até aqui (a entrevista foi realizada antes da aprovação da LDO, ocorrida em 14 de julho), não tivemos êxito de demonstrar o quanto esse congelamento vai refletir na vida do Tribunal, inclusive no funcionamento da máquina administrativa, no pagamento das despesas habituais. Durante 2015, vamos alocar parte dos recursos que seriam destinados a pessoal para manter o funcionamento do Tribunal, como honrar contratos de prestação de serviços e as diárias de viagem necessárias para realizar auditorias. Já a expectativa para 2016 é, sim, preocupante. Temos tentado implementar todas as medidas possíveis (de corte de gastos), mas não são muitas, uma vez que grande parte das despesas é com pessoal ativo e inativo.
Sul21 – Que medidas de cortes?
CM: Deixamos de prover cargos, por exemplo. O TCE tem cerca de 870 servidores ativos, incluindo os técnicos de nível superior (auditores públicos externos), os servidores de nível médio, os cargos em comissão e os conselheiros. Temos hoje 36 cargos vagos de auditor, um contingente importante para nossas necessidades. Não preenchemos os cargos porque não temos clareza do cenário. Vamos administrando as necessidades com os recursos humanos existentes, porque precisamos manter a prestação de serviço. Realizar o controle externo é uma tarefa muito grande, muito importante, que é cobrada pela sociedade, pela imprensa e pelas instituições de uma maneira geral. Então, estamos economizando onde é possível. Mas, mantido esse congelamento, é certo que teremos restrições ao desempenho normal de nossas atividades.
Sul21 – Que tipo de restrições?
CM: A diminuição de auditorias é uma possibilidade e é a que mais impacta. A auditoria é o eixo central de todos os processos de controle de contas que realizamos.
Sul21 – Então, mantido o congelamento, vai prejudicar a realização de auditorias?
CM: Ainda não posso precisar a dimensão desse impacto, mas a perspectiva de que tenhamos reflexo nessa área é concreta. É importante ressaltar que não vamos deixar de adotar todas as medidas possíveis para manter as atividades. Não vamos deixar de cumprir nossa missão. Vamos encontrar alternativas. É possível dizer que haverá algum tipo de prejuízo no universo examinado, na regularidade e na constância das auditorias, mas não vamos deixar de realizar nosso trabalho.
Sul21 – Outra questão que surgiu na discussão da LDO é de que o quadro financeiro do Estado não seria tão feio para exigir um crescimento zero da folha. Por exemplo, há a questão do aumento de energia elétrica e de combustível, que gerou aumento do ICMS. Dentro desse quadro, o TCE tem como fiscalizar se o orçamento precisa se manter no mesmo patamar?
CM: Tínhamos uma projeção de quanto poderia impactar a elevação dos preços dos combustíveis e da energia elétrica na receita do Estado…
Sul21 – A própria inflação também gera um aumento natural da arrecadação.
CM: Claro. Estamos em fase de acompanhamento. Se de um lado existe a projeção de crescimento da receita, por outro há previsão de PIB negativo para este ano. Então, ainda não é possível afirmar em que medida a elevação de tarifas vai realmente afetar a receita. É possível que parte do incremento da receita seja impactado pela diminuição do consumo provocado pela retração econômica.
Sul21 – De que outras formas o Estado poderia aumentar suas receitas?
CM: Fala-se muito da dívida ativa (débitos de pessoas e empresas com o governo) e dos percalços existentes para a cobrança, como devedores não localizados ou sem patrimônio para garantir as execuções. O ponto culminante desse processo é a emissão da certidão de dívida ativa (CDA), que permite a cobrança judicial. Isso é importante. O TCE tem recomendado que Estado e municípios tenham forte atuação no aumento da receita e não apenas na contenção de gastos. O Tribunal tem estimulado o protesto de títulos e certidões, como se faz com um cheque. Esse mecanismo tem potencial de induzir o pagamento de tributos, incrementando a receita, e também reflete na concretização da justiça fiscal. Muitos não recolhem tributos e, por diversas razões, acabam ‘beneficiados’ pela prescrição da cobrança. O instrumento do protesto fortalece a possibilidade de cobrança. Mas essa é a dívida constituída, que percorreu todo o caminho e não foi arrecadada. Há ainda um passo anterior, que é o combate à sonegação. É uma ação importante, que devemos estimular, a fim de que o tributo seja lançado e cobrado. Para isso, são necessários dois fatores: mecanismos de fiscalização que evitem a sonegação e a constante indução ao recolhimento dos tributos.
Sul21 – E como melhorar a fiscalização?
CM: União, Estados e municípios têm seus mecanismos, suas estruturas fazendárias. Evidentemente, é importante contar com quadros técnicos qualificados. Na esfera municipal, ainda há carências na fiscalização. Como forma de auxiliar as prefeituras, o TCE oferece cursos e treinamento aos servidores por meio de sua Escola de Gestão e Controle. Em um recente levantamento, verificamos que, em cerca de cem municípios do Estado (no total, são 497), não havia nem sequer um fiscal voltado regularmente a essa atividade. Mas isso vem mudando. Além de oferecer capacitação, o TCE passou a ter uma norma de acompanhamento e fiscalização dessa realidade.
Sul21 – É possível estimar o total da dívida ativa devida ao Estado?
CM: São mais de R$ 30 bilhões registrados no balanço do Estado como dívida ativa.
Sul21 – Esses valores já deveriam ter sido pagos ao Estado?
CM: Sim, mas uma boa parte desse montante é formada por créditos ditos podres, ou seja, não há mais possibilidade de cobrança.
Sul21 – Existe uma projeção de quanto desses R$ 30 bilhões poderiam ser recuperados?
CM: Essa é análise que não faz parte diretamente da atividade do TCE. A cobrança da dívida ativa é feita pelo Executivo. Se não me engano, há um cálculo de que um valor entre R$ 8 bilhões a R$ 10 bilhões seria recuperável. Por isso, ressalto a importância do combate à sonegação, para evitar que se chegue a situações como essa. Em relação aos municípios, temos dados indicando que a dívida ativa seja superior a R$ 4 bilhões. Como encontramos inconsistências nos balanços de diversos municípios, é possível que o montante seja muito maior.
Sul21 – Outra questão que surge é a dívida pública. Fala-se que o Estado já pagou em juros mais do que a dívida original. Existe a possibilidade de fazer uma auditoria nessa dívida ou é o que está aí e não há como fugir?
CM: Do ponto de vista do que foi acordado, é isso. Os valores que estão sendo pagos são os contratados. O que apontamos, eu mesmo escrevi um artigo (publicado na Folha de S.Paulo), é a iniquidade dos índices de correção, que foram objeto da recente lei aprovada pelo Congresso autorizando a renegociação da dívida (a renegociação ainda não foi realizada pela União). O cenário econômico mudou muito desde aquela época (1998, ano do acordo da dívida). Defendo a renegociação das bases contratuais. Se nas relações privadas de uma pessoa física com um banco, por exemplo, se admite rediscutir bases contratuais, por que não em uma relação federativa? É muito comum a gente ouvir que contratos não podem ser renegociados e que as dívidas precisam ser honradas, sob a pena de o mercado começar a ver isso (tentativas de renegociação) de maneira imprópria. Não se trata disso. Renegociar operações de crédito é algo absolutamente natural, normal inclusive em um ambiente comercial. Isso acontece quando se consegue demonstrar que há um absoluto desequilíbrio impactando na relação contratual. Então, chama a atenção que, em uma federação, em que o ente credor é a União e o devedor é o Estado – municípios brasileiros também -, esta relação seja tratada de maneira mais gravosa do que operações de crédito feitas, por exemplo, pelo BNDES com empresas privadas. Mas essa é uma questão que tem um forte componente político.
Sul21 – Ligando esses dois últimos pontos. A dívida ativa da União certamente também é gigantesca e certamente não será recuperado em sua totalidade. Se empresas têm, de certa forma, perdão da dívida, poderia também existir uma conciliação da União com os Estados?
CM: Parto do pressuposto de que o poder público não deve conceder qualquer espécie de perdão, com exceção para as situações autorizadas em lei. Mas é também verdade que a questão da dívida envolve uma situação federativa. A Famurs (Federação das Associações de Municípios do RS) tem levantado um discurso forte sobre a rediscussão do pacto federativo. E a rediscussão do pacto federativo se faz por meio de medidas concretas, de definição clara de atribuições e de fontes de recursos para dar conta dessas atribuições. Em relação à dívida, verificamos que a União não tem demonstrado disposição para renegociá-la. Historicamente, o RS paga a título de dívida mais do que consegue investir nos serviços de saúde. O entendimento que tenho, embora não seja necessariamente uma posição institucional do TCE, é de que essa situação não é razoável.
Sul21 – A situação da economia tem afetado os municípios. O senhor já disse, em algumas oportunidades, que se solidariza com os prefeitos que não estão conseguindo cumprir o que é determinada pela Lei de Responsabilidade Fiscal, mas alertou que não podem tomar medidas que infrinjam a lei. Nesse momento de crise, como chegar ao equilíbrio entre fazer ajustes e não infringir a lei?
CM: A Lei de Responsabilidade Fiscal prevê mecanismos que devem ser considerados pelos órgãos de controle quando há impacto significativo da atividade econômica na receita pública. O Tribunal procura, por exemplo, aprofundar o exame da redução das transferências do FPM (Fundo de Participação dos Municípios), que é uma receita importante para prefeituras. Avaliamos o impacto que um eventual decréscimo dessa receita teve nas contas. Se o município conseguir demonstrar que a receita prevista não se realizou e causou desequilíbrio, o Tribunal considera esse fator porque é seu dever, uma vez que não foi um ato de negligência no processamento e na condução da gestão administrativa. Mas também procuramos sempre ponderar se a receita não está superestimada e acaba não se realizando porque de fato não tinha potencial para isso. Mais recentemente, surgiu a questão dos convênios. Os municípios passaram a invocar o fato de que determinadas ações, serviços e programas se viram afetados pelo não repasse ou pelo repasse atrasado.
Sul21 – Nessa questão dos repasses, temos visto diversos hospitais no interior diminuindo ou fechando serviços. Alguns hospitais alegam que isso ocorre porque diminuiu o repasse de verbas do Estado. Outros dizem que os valores aprovados para 2015 são diferentes dos de 2014. Como o TCE fiscaliza essa diminuição de repasses que resulta na não realização de serviços básicos e necessários?
CM: Do ponto de vista fiscal, se o fator de desequilíbrio é a não transferência de recursos que estavam acordados, contratados e conveniados, isso será ponderado, sim, porque se contava com aquele ingresso e isso não aconteceu. De nenhuma forma, o Tribunal cogita aplicar pena ao administrador quando essas situações ficarem comprovadas. O grande problema é a prestação de serviços à população, mas o Tribunal tem capacidade limitada nesse aspecto, uma vez que envolve a gestão e o repasse dos recursos disponíveis em um Estado em situação crítica.
Sul21 – O TCE tem poder de determinar quais repasses devem ser priorizados?
CM: Não. O que existe é uma exigência constitucional envolvendo os recursos da Saúde, por exemplo, naquele mínimo que o Estado está obrigado a aplicar. Isso também ocorre na Educação. A gestão financeira e do fluxo de caixa é do respectivo ente. O Tribunal não tem força coercitiva, um comando em relação a esse assunto, mas observa se os contratos e convênios estão sendo honrados. Se não estiverem, o porquê disso é objeto de apontamentos, mas não faz determinações, porque, no caso do Estado, fica evidente que há insuficiência de recursos para o custeio do conjunto das demandas.
Sul21 – O TCE pode tomar alguma medida em relação ao atraso da folha de pagamento dos servidores?
CM: Isso é muito preocupante, porque o que se deseja é que o Estado consiga honrar seus compromissos mais básicos, como a folha de pagamento. A Justiça determinou que não houvesse parcelamento dos salários, que os valores fossem pagos nas respectivas datas. No TCE, o processo é de monitoramento. Sabe-se que não se está deixando de atender determinado compromisso por determinação, e sim por um contexto deficitário agudo.
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