Mudanças na Base
Mudanças incorporadas na Base Nacional Comum Curricular por equipe ligada ao novo governo são questionadas
Divulgação da terceira versão do documento foi seguida de uma série de críticas e descontentamentos; polêmicas se concentram sobretudo nas partes relativas a educação infantil e alfabetização
Sob o governo de outro Presidente da República e respondendo a um novo ministro da Educação, um novo grupo de especialistas assumiu o processo de redação da Base Nacional Comum Curricular que, apesar de alguns meses de atraso, continuou seu curso. À semelhança do que se passou com as duas primeiras versões, a divulgação da terceira versão do documento, realizada no mês de abril, foi seguida de uma série de críticas e descontentamentos. Há polêmicas em todas as áreas e sobre o processo de elaboração em si, mas elas se concentraram, sobretudo, na fase da educação infantil e na alfabetização. Agora está nas mãos do Conselho Nacional de Educação discutir a proposta atual e propor um texto final.
No componente de língua portuguesa do ensino fundamental, onde entra a alfabetização, as discordâncias se iniciam já no texto de apresentação. Na versão atual, a oralidade ganhou destaque, assim como a função comunicativa da linguagem. Para Isabel Cristina Frade, professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) que coordenou o processo de redação da BNCC nas duas primeiras versões, a ênfase nas terminologias sobre o ato de comunicar pode acarretar uma visão reducionista da língua. “A língua é um processo de interação e negociação, não se trata apenas de comunicação. Essa é uma visão arcaica”, avalia.
Isabel também sentiu falta dos chamados “campos de atuação” que existiam nas versões anteriores – eram eles o literário, o investigativo, o político-cidadão e a vida cotidiana. Cada uma das habilidades vinha acompanhada de indicação de onde poderiam ser aplicadas em relação a esses campos. “As habilidades agora ficaram mais soltas, dificultando sua relação com as práticas sociais. Como não está vinculado a um uso, você não avalia as relações entre língua e sociedade, língua e poder”, explica.
No documento mais recente saíram os campos de atuação e entrou com força a noção de competência – são listadas dez competências específicas para a língua portuguesa, como valorizar a escrita como bem cultural da humanidade e ler textos com compreensão, autonomia, fluência e criticidade. “A ideia de competência fica desvinculada dos direitos mais amplos, sem a ligação com os princípios éticos. Mas a apropriação do conhecimento não se dá só pelos aspectos cognitivos. Essa é uma modificação que pode alterar bastante a interpretação da Base”, afirma Isabel.
O que as crianças vão ler
Para além das definições teóricas que afetam a própria visão sobre a língua e suas funções, há discordâncias também sobre questões bem práticas, como o peso da literatura dentro da Base. Embora todos pareçam concordar com o recém-falecido crítico e sociólogo Antonio Candido de Mello e Souza, que defendia a literatura como um direito e necessidade de todos os homens, pois não existe povo sem histórias, canções e lendas, a forma de abordá-la na BNCC é um palco de disputas.
A autora de materiais didáticos Zuleika de Felice Murrie, uma das redatoras da versão atual da BNCC, argumentou em um debate público promovido pela Universidade de São Paulo (USP) que a literatura ganhou peso no último documento ao ser destacada no eixo “educação literária”. Nem todos parecem encarar da mesma forma. “Na fase da alfabetização o foco da leitura está em textos denotativos. Fica parecendo que as crianças só vão compreender textos com um sentido muito preciso”, diz Isabel Frade.
Na avaliação da professora do Instituto Vera Cruz Maria José Nóbrega, que também presta assessoria pedagógica para diversos colégios, na versão atual da BNCC a literatura perdeu para os textos informativos seu lugar central na alfabetização, provavelmente com o objetivo de fazer o Brasil melhorar em provas padronizadas e rankings internacionais como o do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa, na sigla em inglês). “Embora constitua um eixo, algo que parece ser um lugar de prestígio, a literatura foi retirada do lugar onde normalmente se encontra na escola. Agora aparece só como prazer e fruição. Mas a inserção da criança na escrita se dá pela literatura. Quantos pais leem uma notícia de jornal para os filhos e não um livro?”, questiona.
Leiturometria
A progressão da leitura ano a ano com indicativo de número de palavras, tipo de sentenças e vocabulário é outro ponto contestado. No primeiro ano pede-se leitura de textos com “vocabulário previsível, orações e períodos curtos e recursos expressivos predominantemente denotativos; no caso de textos verbais, com aproximadamente 200 palavras”. A meta são textos com 300 palavras no 2º ano, e 400 para o 3º. Mesmo no 3º ano, continua-se pedindo predominância do sentido denotativo, ordem direta e vocabulário familiar.
Essas determinações podem levar a textos artificiais, produzidos exclusivamente para servir às cartilhas de alfabetização. “São coisas que não se encontram em nossos usos sociais. O grau de complexidade de um texto tem muitas dimensões mais. Um texto publicitário é curto, mas complexo. Não é o tamanho que vai garantir a progressão”, diz Isabel Frade.
Maria José também é contra o critério do tamanho do texto para apresentá-los às crianças em fase de alfabetização. “A extensão do texto é determinada pelas condições de produção. Se é uma coluna, um conto, uma novela”, lembra. A professora critica ainda a preferência por vocabulário previsível e familiar. “Crianças adoram palavras novas. Isso jamais deveria ser um critério para seleção de textos.”
A progressão com base no número de palavras dos textos, segundo Zuleika, se justifica pela falta de fluência de leitura dos estudantes brasileiros, um problema identificado em várias avaliações padronizadas, como o Saeb (Sistema de Avaliação da Educação Básica), Saresp (Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo) e Pisa. “A maior parte dos nossos alunos não responde a certas questões porque não têm velocidade de leitura. Se a informação está no primeiro parágrafo, eles conseguem localizar. Se está no meio, eles não acham porque não chegam lá”, afirmou durante o debate na USP.
Zuleika explica ainda que as determinações específicas sobre a forma do texto são destinadas apenas para o eixo da leitura e, portanto, não se aplicam ao eixo da educação literária, onde o professor terá mais liberdade para a escolha das obras.
Alfabetização antecipada?
Uma das mudanças da nova versão da Base anunciadas pelo MEC com mais destaque foi a antecipação do fim do processo de alfabetização do 3º para o 2º ano. A novidade é vista com bons olhos por diversos especialistas no tema. “Traz uma pressão para o professor, mas é um benefício para o aluno. Se recebeu uma educação infantil adequada, toda criança é capaz de se alfabetizar nesse prazo”, garante a consultora pedagógica Roberta Bento, que fez uma análise do documento para a Fundação Lemann.
Para ela, a simples percepção da urgência por parte dos professores já pode trazer resultados positivos. “Na cultura do Brasil a gente vai sempre afrouxando as regras. Se a meta é no fim do 3º ano, achamos que tudo bem se ficar só para o meio do 4º ano. Por isso, sou a favor de puxar para um ano antes”, diz. Segundo ela, o atraso na alfabetização acarreta consequências graves para todas as áreas de conhecimento. “Se ainda exige muito esforço do cérebro encaixar as sílabas e palavras, ele fica ocupado demais na tarefa e o aluno não consegue aprender sobre o que está lendo”, explica.
Contudo, para Isabel Frade e Maria José Nóbrega, a antecipação é mais propaganda do que mudança de fato. “Estar alfabético (fazer a correspondência entre fonemas e grafias) não é estar alfabetizado. Pelo texto em si não há tantas mudanças nos objetivos de cada ano”, afirma Isabel. De fato, várias das habilidades de língua portuguesa previstas para o segundo ano são bem semelhantes entre as versões do documento, por exemplo, localizar informações pontuais, fazer inferências, compreender textos sobre temas familiares, identificar a função social de diferentes textos.
Além disso, na versão atual há uma repetição de objetivos para o 2º e o 3º ano. “Continua-se a pedir no 3º ano muitas das habilidades que já estavam no 2º, como a pontuação, segmentação. Se já completou a alfabetização, por que repetir essas habilidades no ano seguinte? Para mim, dizer que a alfabetização se dará até o 2º ano parece mais algo para que o documento seja classificado como exigente, uma Base que supostamente vai cobrar mais as crianças”, diz Maria José.
Como as habilidades ficaram separadas no decorrer do documento atual, fica difícil acompanhar a evolução delas entre um ano e outro. Mas em uma comparação do que é proposto no 2º e no 3º ano, constata-se uma série de descrições muito semelhantes. Duas habilidades, a EF02LP33 e a EF03LP25, propostas para dois anos diferentes, chegam a ter a redação exatamente igual: “Ler e escrever corretamente palavras com sílabas CV, V, CVC, CCV, identificando que existem vogais em todas as sílabas”.
Por sua experiência prática, Maria José acredita que certos processos precisam mesmo de mais tempo e, assim, não é ruim que a esse processo se conclua no 3º ano. “Ter compreendido que as letras representam os sons da fala não significa que o estudante domine todas as convenções. Se é para dominar todas as convenções, como a segmentação e pontuação, ele precisa de mais tempo. Não vejo esse processo encerrado no 2º ano nem nas escolas de classe A de São Paulo onde presto assessoria”, alerta.
A pesquisadora em desenvolvimento infantil Elvira Souza Lima defende, contudo, que o problema não está no 2º ou no 3º ano, mas nos objetivos que incluem a escrita para os estudantes de 6 anos. “O que precisa ser repensado é a antecipação para menos de 7 anos de realizações que são próprias dos 7 anos”, defende. Antes de colocar as crianças para escrever, diz, há um trabalho amplo e complexo de movimento, artes, imaginação e narrativas.
Se essa base anterior à escrita for bem feita, o restante do trabalho pode acontecer sem pressa e, ainda assim, com muito sucesso. O grande segredo é o docente bem preparado. “A história da alfabetização, incluindo a do Brasil, mostra claramente que as crianças se apropriaram perfeitamente da escrita, em muitos momentos históricos, em várias culturas e com toda diversidade socioeconômica, ao ingressar na escola aos 7 anos completos – e a grande maioria sem haver passado por educação infantil”, diz.
Volta ao passado
A nomenclatura escolhida em alguns trechos do documento desperta apreensão. “Recitar o alfabeto”, “cópia” e “treinamento da coordenação motora para a escrita das letras” não são práticas desaconselháveis em si, acredita Isabel Frade, mas não precisavam estar presentes. “As terminologias não são neutras. Olhando em conjunto, esses termos podem dar um foco em algo que não é o mais importante”, afirma.
Na terceira versão houve ainda o retorno da palavra gramática. O eixo antes nomeado de “conhecimentos sobre a língua e sobre a norma padrão” foi rebatizado de “conhecimentos linguísticos e gramaticais”. “É um documento mais do que conservador. Vejo tudo isso como um retrocesso, pois foi assim que me alfabetizei – e eu nasci em 1942”, diz Maria José Nóbrega. Para além da nomenclatura, ela não vê relevância em algumas das habilidades determinadas nesse eixo. “As crianças de 3º ano ainda não sabem se a palavra asa se escreve com ‘s’ ou ‘z’, mas terão de aprender pronomes e adjuntos adnominais. E por que não adjunto adverbial? Não entendi a lógica.”
A autora Zuleika de Felice Murrie defendeu o uso de termos mais simples e conhecidos dos professores, assim como a inclusão da gramática como uma necessidade para compreender a língua, sem precisar de aprofundamentos nessa etapa. “É ter a noção dessas categorias gramaticais. E fomos pelos nomes da gramática tradicional porque todo mundo conhece. Base não é para ter definições teóricas de termos”, disse.
Para quem está na escola, contudo, muitas vezes a volta da gramática é vista como um retorno a uma tradição indesejável. “Nesta última versão houve mudanças inesperadas, inexplicáveis e delicadas. O próprio nome do eixo, de conhecimentos gramaticais, já remete a um tipo de competência que há no Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), mas que nos primeiros anos pode ser muito perigoso”, afirma Ricardo Chiquito, coordenador psicopedagógico do colégio particular Arquidiocesano, na capital paulista. Segundo ele, nos anos iniciais, a ênfase nas regras e categorias soltas pode tolher a capacidade de produção e criação. “Ficar na classificação pela classificação é uma visão em que nossa escola não acredita, pois isola a língua de usos sociais e culturais”, defende.
De forma geral, Chiquito se diz preocupado pelo fato de, embora com um texto mais enxuto nesta terceira versão, a BNCC estar “demasiadamente conteudista”. “O excesso de conteúdos tira da escola a perspectiva de um projeto singular. Temos escolas com currículos carregados, mas não esperávamos isso de uma Base”, diz. De qualquer forma, a escola em que trabalha já está promovendo encontros de formação entre os docentes com o objetivo de “fazer uma leitura cuidadosa, identificar os riscos e os avanços”.
Vale lembrar que a Base não é o currículo: a partir dela, redes e escolas definirão não só os conteúdos mais específicos a serem trabalhados, como também a forma de fazê-lo. Para muita gente, se não houver associação criteriosa de metodologia, a Base pode tornar-se uma curva cheia de óleo.