Morreu de frio

Morreu de frio

Um homem morreu de frio aos pés de todos nós

Um homem morreu de frio nas ruas de Porto Alegre.

Ele não estava perdido em meio a um deserto onde não havia viv’alma para socorrê-lo. Ele não dormia oculto no labirinto selvagem da amazônia. Ela não caiu de nenhum avião entre coordenadas inóspitas e inacessíveis aos seus semelhantes. Não. Ele estava ali, na calçada, aos nossos pés. Ao alcance de nosso olhar. De nossas mãos.

Quantos passaram por ele? Quantos perceberam sua presença na calçada, sua bebida e sua nudez, sua dor incógnita e sua insana fragilidade?

Quantos sentiam frio sob casacos grossos, luvas e cachecóis?

Ele morreu sozinho com milhares ao seu redor. Milhares de iguais. Ao seu redor.

E ele morreu sozinho.

Ele morreu de frio.

Ele morreu diante de milhares de olhares… Frios.

O terceiro milênio avança e o ser humano surpreende com suas tecnologias, inovações, descobertas. O ser humano avança no tempo e descobre tudo, menos a premissa básica de ser humano.

O ser humano inventa novas formas de riqueza, novas formas de gastar suas fortunas e  reinventa o poder. Só não inventa um jeito de se importar com o outro. Ao contrário, se despe cada vez mais de sua condição humana, como se ela fosse um estorvo.

O ser humano aprimora seu cérebro e ruma, a passos largos, para a irracionalidade. E é uma irracionalidade tão bizarra que nem os irracionais o acompanham. O sentir é um lixo a ser varrido para baixo do tapete.

Não é possível que na era dos aplicativos, dos mil dispositivos de segurança, dos carros entupindo ruas, das modas consumistas em série absurda, que não houvesse um cobertor para que aquele homem não morresse de frio. Um cobertor, um naco de calor, um cantinho, uma nesga mínima de olhar.

É impossível que na era das redes sociais, onde todos têm opinião formada sobre tudo e se intitulam protagonistas, onde todos têm tempo para cuidar da vida de todos e se exibir para que todos possam ver, que ninguém tenha dedicado um mínimo instante para prestar atenção naquele homem. Para se importar com ele. Nem quando ele se despiu e tantos viram seu gesto tresloucado. Não, ninguém deu importância.

É um absurdo que em dias de poderes corrompidos que falam de bilhões, nenhum “poderoso” tivesse meia dúzia desses trocados, os que nem são seus, para que aquele homem não morresse de frio. Que esse aparato público todo, inventado para sustentarmos na justificativa de que é preciso um sistema para coordenar a possível vida melhor para todos nós, que esse monstro gigantesco que sustentamos com nossos impostos não o enxergou. Mesmo tendo tantos olhos bem vivazes em si.

Mas o ser humano morre de frio e de fome a um palmo de nossas mãos. Em muitos cantos do mundo. Em muitos portos sem alegria, ancoradouros de nossa indiferença.

Um homem morreu de frio na ruas das festas com as glórias do futebol, na rua de tantas manifestações políticas de Porto Alegre. Mas ninguém se manifestou.

 

http://www.correiodopovo.com.br/Blogs/oscarbessi/2017/07/2293/um-homem-morreu-de-frio-aos-pes-de-todos-nos/ 




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