Monitor da Doutrinação
Jornal Gazeta do Povo cria "Monitor da Doutrinação" para as escolas
por Ana Luiza Basilio 08/12/2017
Para especialistas, além de inconstitucional, iniciativa é alinhada à agenda do Escola sem Partido e pode gerar perseguição aos professores
Milton Michida/Governo do Estado de São Paulo
Para Daniel Cara, iniciativa é uma espécie de "tribunal pedagógico" e vai afetar a atuação dos professores
O jornal a Gazeta do Povo anunciou na quarta-feira 6 a criação de uma plataforma, Monitor da Doutrinação, dedicada a receber denúncias de doutrinação ideológica nas escolas e universidades do País.
Segundo informações da reportagem veiculada pelo jornal, são crescentes os casos de condutas inapropriadas de professores em sala de aula, a chamada doutrinação, “quando um professor usa seu tempo em sala de aula para extrapolar os conteúdos pré-definidos com claro posicionamento ideológico”.
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A ideia da plataforma seria reunir essas denúncias e promover averiguação dos casos. A primeira reportagem sobre o assunto afirmava que, uma vez recebidas as denúncias e checadas as informações, “a equipe da Gazeta entra em contato com a escola e, quando necessário, a Secretaria de Educação do estado ou do município para ouvir a resposta de quem de direito.
Segundo a Gazeta do Povo, a ferramenta não tem o objetivo de criar um ambiente de denuncismo
O texto disponível no site na sexta-feira 8, no entanto, suprimiu o trecho da reportagem, que foi atualizada com as seguintes informações: “É importante reforçar que a ferramenta não tem o objetivo de criar um ambiente de denuncismo entre alunos e professores. A confiança dentro das salas de aula deve ser mantida e reforçada.”
Para o doutor em Direito do Estado e professor Adjunto do Bacharelado em Políticas Públicas da Universidade Federal do ABC (UFABC), Salomão Ximenes, além de inconstitucional, a iniciativa pode ser configurada como um conjunto de crimes previstos no Código Penal, como ameaça, constrangimento ilegal e associação criminosa.
A iniciativa também é vista com preocupação pelo cientista político e coordenador geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Daniel Cara. “É muito grave um órgão da imprensa acuar servidores no exercício da profissão. Isso não é controle social, apenas uma estratégia para acuar os professores”, critica.
Para ele, o veículo cria um “tribunal pedagógico” para fazer pressão sobre as comunidades escolares e as escolas, alinhada à agenda do Escola sem Partido. “Isso vai fazer com que os professores tenham medo de abordar em suas aulas temas ligados à conquista dos direitos sociais, sexualidade e teoria da evolução, por exemplo”, avalia.
Na plataforma é possível buscar o registro das denúncias por modalidade de ensino - Fundamental, Médio e Superior - e também por estado. O que apresenta maior número de registros é o Rio Grande do Sul, com quatro denúncias.
A mais recente diz respeito ao Colégio Municipal Pelotense, em Pelotas (RS), acusado de se aproveitar da Semana da Diversidade para promover a ideologia de gênero. Entre outras críticas, o texto ataca uma palestra dada na escola sobre a experiência de um homem trans. “As informações apresentadas não tinham base científica alguma, eram só teses. O objetivo era doutrinar na questão de gênero”, aponta o relato.
Em São Paulo, a denúncia é contra a roda de debate Criança Viada Travesti na Escola realizada pela Faculdade de Educação da USP em outubro. No texto publicado no Monitor da Doutrinação há uma crítica ao fato do evento discutir possibilidades de crianças viverem fora da cis-heteronorma.
A agenda do evento, na época de sua divulgação, girava em torno da discussão sobre orientação sexual e identidade de gênero na infância e adolescência em espaços educativos. No post do Facebook de divulgação do evento, constam questionamentos tais como: “Como estudantes, profissionais de educação, pesquisadoras e ativistas vem lutando pra transformar a escola em um espaço de proteção, conhecimento e liberdade?”
A perseguição às atividades que pautam a diversidade e orientação sexual acontece devido à ideia da ideologia de gênero, “um discurso falacioso e criado para gerar pânico moral”, na opinião de Joanna Burigo, mestre em Gênero, Mídia e Cultura e colunista de CartaCapital.
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A especialista afirma que a agenda é construída dentro de alas bastante conservadoras, ligadas às religiões cristãs, e encontra interlocutores em organizações menores.
Joanna explica que os pressupostos dos estudos de gênero são totalmente contrários à chamada ideologia. “Diferentemente dos que nos chamam de ideólogos de gênero, não trabalhamos para que as crianças sejam o que elas ainda não sabem que são, mas pelo desenvolvimento de políticas públicas capazes de promover uma vida digna às pessoas que já não cumprem certas regras de gênero”, explica.
Em seu entendimento isso passa pelo debate da diversidade, da sexualidade e da identidade dos sujeitos, que deve ser abordado pela sociedade e pelas escolas.
“É muito importante que possamos nomear os espaços identitários, as marcações corporais e os eixos estruturais que nos impedem de ter direitos humanos integrais. Os direitos não podem ser discutidos na abstração. Os debates têm que partir de marcadores reais como raça e gênero para que possamos de fato alcançar o problema”, explica, criticando a perseguição feita a escolas e docentes.
Para Daniel Cara, além de se colocar na contramão disso, a iniciativa da Gazeta do Povo é ainda mais incabível, “justamente pelo fato da imprensa servir a um movimento ultraconservador com estratégias muito próximas do fascismo que acuam qualquer tipo de expressão e pensamento pautado no bom senso e na defesa dos direitos humanos”, reforça.