Modelo educacional finlandês
A receita do modelo educacional finlandês: pense diferente
Claudia Wallin * De Helsinque
“Sisu”, no impenetrável idioma finlandês, é uma palavra ingrata que desafia os neurônios de legiões de tradutores. Em português, talvez a forma mais eficaz de decifrar o termo seja compará-lo ao atributo peculiar dos maus perdedores de eleições no Brasil: resiliência sem fim, na determinação obstinada da busca do êxito mesmo em face do mais ribombante fracasso. Na Finlândia, “sisu” simboliza a própria alma do povo deste país, que enfrentou a dor da fome, das guerras, da dominação e da miséria até descobrir que a educação pública de qualidade era o caminho para quebrar o ciclo da pobreza.
A revolução educacional promovida pela Finlândia a partir dos anos 70 coincidiu com uma impressionante transformação econômica deste país, que só conheceu o asfalto na década de 20 – e só conseguiu inaugurar seus primeiros 14 quilômetros de rodovia em 1963. A sociedade agrária e desigual do passado deu lugar a uma sofisticada sociedade de informação e bem-estar social, que projetou em seguida os indicadores da economia finlandesa para o topo das estatísticas mundiais.
A experiência finlandesa é particularmente interessante, por duas razões: a primeira delas é que a reforma mais radical do modelo de educação, posta em prática na década de 90, foi introduzida em meio à pior crise econômica já vivida pelo país desde o pós-guerra.
Também é interessante porque, naqueles anos amargos, a Finlândia lançou mão de uma estratégia de estreita interação entre as políticas de educação, as estratégias econômicas e o setor empresarial – em especial a Nokia, que viria a se tornar na época o mais poderoso motor do crescimento e da transformação do país.
Em 1993, a Finlândia atravessava o auge da recessão que colocava o país de joelhos. A taxa de desemprego era de 20%, o setor bancário entrava em colapso, o PIB registrava um declínio de 13%, a dívida pública atingia patamares estratosféricos. Medidas imediatas eram necessárias para combater o caos provocado pela crise bancária finlandesa e irrigar a economia, após a perda dos essenciais mercados soviéticos enterrados junto com a URSS.
O governo respondeu à crise de forma inesperada.
“A primeira medida foi realizar investimentos pesados no setor de inovação e alta tecnologia”, diz o educador finlandês e então Ministro da Educação, Pasi Sahlberg, observando que a estratégia de sobrevivência da época para superar a crise também envolveu doses de privatizações e um maior grau de liberalização da economia.
Ao mesmo tempo, a educação pública de qualidade foi impulsionada como fator-chave na rota para uma nova prosperidade.
“Os investimentos no acúmulo e no desenvolvimento do conhecimento foram considerados como uma medida decisiva para o futuro econômico do país, a partir do consenso de que as tecnologias de comunicação e uma economia baseada no saber eram a melhor forma de sair da crise”, acrescenta Sahlberg.
A sólida base do sistema já havia sido lançada nos anos 70: a criação de um Estado de bem-estar social deu a todos os cidadãos oportunidades iguais de acesso à educação, formando assim uma incubadora de cérebros que alavancou o crescimento do país. Agora, a recessão dos anos 90 avisava que era chegada a hora de uma revolução ainda mais radical.
Foi então que os finlandeses criaram uma força-tarefa para elaborar as diretrizes de uma renovada estratégia de educação. O mutirão reuniu ao redor da mesa não apenas políticos e educadores de escolas e universidades, mas também empresários do país.
Os representantes da empresa Nokia, que em 1992 tomou a decisão crucial de concentrar suas atividades unicamente no setor de telecomunicações, eram defensores vocais da educação pública de alta qualidade. Diziam que atenção especial deveria ser dispensada à peruskoulu (a educação de ensino fundamental e médio), por ser o alicerce básico de todo o desenvolvimento do conhecimento e das aptidões de um indivíduo.
“Em nosso diálogo com a Nokia, para nossa surpresa, ouvimos idéias surpreendentes sobre como desenvolver a peruskoulu”, conta Pasi Sahlberg.
A lógica dos executivos da Nokia era cristalina: o medo do fracasso mata a criatividade de um indivíduo, que por sua vez enterra a capacidade inovadora de uma nação. Em outras palavras, quando as pessoas estudam ou trabalham em um ambiente dominado pelo medo de errar ou fracassar, elas param de pensar de forma independente.
Um dos diretores da Nokia colocou a questão nos seguintes termos:
“Se empregarmos um jovem que não possui todos os conhecimentos de matemática ou física necessários para trabalhar aqui, temos pessoas que podem ensinar essas coisas a eles com facilidade. Mas se empregarmos alguém que não sabe como pensar de forma diferente e criar ideias originais, ou que tem medo de cometer erros, não há nada que possamos fazer. Façam o que tiver que ser feito para manter o sistema de educação atualizado, mas não acabem com a criatividade e a mentalidade aberta nas escolas.”
Pensar fora da caixa tornou-se assim o mantra e a força do modelo educacional finlandês – um modelo que prefere ensinar os alunos a pensar, e não a memorizar. E uma inovadora cooperação entre as escolas e as empresas finlandesas, em especial a Nokia, passou a fazer parte do currículo escolar.
“A indústria finlandesa não só promoveu ativamente a melhoria do aprendizado, como também apoiou e ainda apoia programas inovadores de parceria com as escolas públicas”, destaca o educador Pasi Sahlberg.
“Diversas universidades também passaram a ter uma cooperação ativa com os setores de pesquisa e desenvolvimento das empresas do país”, acrescenta ele.
A ênfase nas ciências matemáticas e na tecnologia contribuiu marcadamente para o crescimento da Nokia como líder global em telefonia móvel, assim como da gigante Stora Enso na produção de papel e celulose.
Já no fim da década de 90, a Finlândia tornou-se uma das mais avançadas e especializadas economias do mundo em tecnologia de comunicações. Em 2001, o país foi alçado para o topo do índice mundial de competitividade do Fórum Econômico Mundial. A partir do novo milênio, passou a figurar de forma consistente entre os líderes dos rankings internacionais de prosperidade, competitividade e redes de comunicação, tornando-se o primeiro país do mundo a tornar a internet de banda larga um direito humano para todos os cidadãos.
Em 2010, a Finlândia gastou quase 4% do PIB em pesquisa e desenvolvimento – o nível mais alto de todos os países da OECD, depois da Suécia.
Mais: os finlandeses, que também ostentavam índices invejáveis de desenvolvimento sustentável, boa governança e transparência, passaram ainda a integrar – ao lado dos vizinhos escandinavos – o topo da lista das nações mais felizes do mundo.
Como memória de um passado infeliz, ficaram na história finlandesa os sete séculos vividos sob o domínio sueco e soviético, as guerras, a fome que matou um terço da população no século 17, e a pobreza que levou milhares de pessoas a abandonar o país em busca de uma vida melhor na Suécia.
“A experiência conduzida pela Finlândia nos anos 90 representa um exemplo de como a educação pode se tornar uma grande força motriz para a transformação e o crescimento econômico. A Nokia e a peruskoulu foram atores críticos para tirar o país da crise”, diz Pasi Sahlberg.
O educador finlandês chama a atenção, porém, para o fato de que o sucesso da reforma educacional finlandesa teve como alicerce principal o desenvolvimento de uma política de educação pública no contexto de um Estado de bem-estar social:
“O capital social criado a partir da responsabilidade de oferecer condições básicas de bem-estar para todos forneceu o contexto social favorável para o êxito do sistema de educação”, ele enfatiza.
“Até 1990, os tempos foram marcados pela criação de um sistema de educação pública baseado em políticas sociais. Após 1990, as iniciativas foram concentradas nas ideias e inovações que moldaram o sistema educacional finlandês como parte integral do complexo sistema social, econômico e político do país”.
O alto grau de instrução da população se reflete também na representação política do país: quase 70% dos deputados eleitos para o Parlamento nas eleições de 2015 têm formação universitária, segundo apontam as estatísticas oficiais do país.
Como as felicidades e as desgraças são cíclicas, a crise financeira global de 2008 e a atual conjuntura mundial impuseram novos desafios à Finlândia, que atravessa hoje um delicado momento de ajuste econômico.
Para equilibrar as contas públicas, o exótico governo finlandês acaba de anunciar duas medidas: reduzir os salários dos membros do Executivo, e aumentar os impostos sobre os cidadãos mais ricos.
E apesar de cortes severos nos gastos públicos terem sido necessários nos últimos anos, um dos princípios estratégicos para resgatar a economia finlandesa continua sendo a manutenção de um nível alto de investimentos em educação e pesquisa, da ordem de 6,3% do PIB.
Neste ano em que os asiáticos brilharam nos resultados escolares, a Finlândia obteve o sexto lugar no ranking mundial de educação da OECD, baseado no desempenho dos estudantes em matemática e ciências. O Brasil ocupa a 60ª posição da lista.
O desafio de manter a excelência do sistema ocupa a mente dos finlandeses, que divulgaram recentemente o novo currículo a ser implementado no ensino básico em 2016. Se não chegou a abolir completamente a tradicional divisão do conteúdo escolar por matérias, a Finlândia decidiu incorporar definitivamente ao currículo a idéia do ensino por tópicos, ou “fenômenos”: por exemplo, em vez de uma aula de História os alunos podem ter uma aula de Primeira Guerra Mundial, planejada em conjunto pelos professores de História, Geografia, Línguas e Física.
Os novos tempos exigem que as escolas e a economia da Finlândia continuem a se reinventar, como sempre fez a Nokia em seus 150 anos de existência: a gigante finlandesa, que começou sua história como fabricante de galochas de borracha para em seguida tornar-se líder mundial no setor de telecomunicações, acabou vendendo no ano passado sua divisão de telefonia móvel ao grupo americano Microsoft por US$ 7,183 bilhões – o futuro da empresa está desde então reorientado para a produção de tecnologia de ponta no setor de redes de transmissão de dados.
Mas o bom combate do país na área da educação permanece sendo a batalha contra as assimetrias sociais, que passaram a mostrar as garras nas últimas duas décadas. Diz Pasi Sahlberg:
“O crescimento da desigualdade social significa geralmente o aumento de problemas sociais, como a violência. Portanto, o desafio da Finlândia não é tentar manter os mais altos índices de desempenho escolar do planeta, e sim lutar para que o país continue sendo uma sociedade igualitária, e mantenha sua posição de liderança como o mais igualitário sistema de educação do mundo.”
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Texto publicado originalmente no Diário do Centro do Mundo