Meritocracia e desigualdade
Como a meritocracia contribui para a desigualdade
24/06/2016
Raimundo Nonato Leandro de Medeiros trabalha desde os 5 anos. Aos 45, é zelador de um edifício na zona oeste de São Paulo, onde é funcionário há mais de duasdécadas. Nos anos 1990, Medeiros saiu de um sítio da Paraíba para ser pedreiro nas obras da Faculdade de Tecnologia do Estado de São Paulo (Fatec). “Eu até poderia ter tentado estudar alguma coisa por ali, mas seria complicado, porque o trabalho ia das sete da manhã às cinco da tarde, muitas vezes noite adentro.” Teria sido mestre de obras, talvez? Engenheiro? “Quem sabe, nunca tive muito tempo para pensar nisso”, responde ele, que ganha, em média, R$ 1.800 por mês.
Na casa ao lado do prédio em que Medeiros mora vive Elington Fernandes, que também trabalha há pouco mais de 40 anos. Aos 65, é engenheiro civil na empresa que abriu quase duas décadas atrás. Filho de fazendeiros da Zona da Mata mineira, saiu da casa dos pais na década de 1970 para estudar Engenharia na Universidade Federal de Juiz de Fora. Quando se formou, em 1976, veio para São Paulo para trabalhar em uma empresa que fazia obras para a Companhia Siderúrgica Paulista. “Eu sempre me esforcei muito, até hoje não são raros os dias em que trabalho mais de 16 horas”, conta Fernandes, que tem salário médio de R$ 15 mil. “Mas fui, sim, muito sortudo por ter nascido na família em que nasci, que sempre me deu tudo.”
Debater o abismo entre realidades tão distintas, como as de Medeiros e Fernandes, e o quanto dele pode ser atribuído às oportunidades — ou à sorte — encontradas ao longo das trajetórias é o objetivo do economista americano Robert H. Frank, professor da Universidade Cornell. No livro Success and Luck: Good Fortune and the Myth of Meritocracy (“Sucesso e Sorte: A Boa Sorte e o Mito da Meritocracia”), lançado nos Estados Unidos em abril e em fase de tradução para o português, mas ainda sem previsão de lançamento no Brasil, ele conta uma história parecida com a de Medeiros.
Quando trabalhou como voluntário no Nepal, Frank contratou como cozinheiro um jovem de um vilarejo do Butão. “Ele continua sendo uma das pessoas mais trabalhadoras e talentosas que eu já conheci, sabia consertar o que você puder imaginar e, ao mesmo tempo, sabia lidar com as pessoas”, escreve Frank. Mesmo assim, continua, o pequeno salário que recebia como cozinheiro talvez tenha sido o mais alto em toda a sua carreira. “Se ele tivesse crescido em outras condições ou em um país mais rico, teria alcançado maior prosperidade e sucesso material?”, reflete.
Discussões e questionamentos semelhantes ganharam destaque nas redes sociais brasileiras no fim de maio. Diante da notícia de que o filho do presidente interino Michel Temer, Michel Miguel Elias Temer Lulia Filho, mais conhecido como Michelzinho, tem em seu nome, aos 7 anos, mais de R$ 2 milhões em bens, alguns internautas compartilharam a frase irônica “O legal da meritocracia é que você pode entrar na idade escolar com R$ 2 milhões em imóveis ou sem merenda, mas o seu sucesso depende só de você”. É mais ou menos essa a provocação principal no livro de Frank, que defende que, para obter sucesso, tão fundamental quanto ter talento e se esforçar é ter sorte — e aí está incluso tudo o que foge ao nosso controle, como nascer em uma família rica, frequentar boas escolas ou simplesmente nascer em um país desenvolvido. “Eu não defendo que as pessoas não sejam avaliadas e recompensadas por suas qualificações”, diz Frank. “Mas há muita gente talentosa e trabalhadora no mundo que não chega lá simplesmente por não ter sorte.”
Vantagem na largada
Na opinião do autor, isso é particularmente evidente (e tem consequências piores) em países onde a desigualdade social é maior — caso do Brasil, que costuma aparecer entre os 20 piores colocados em listas que medem a concentração de renda. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2014, feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o salário dos 10% mais ricos é quase 30 vezes maior que o dos 10% mais pobres.
Uma comparação que ajuda a entender o ponto de quem critica a meritocracia como sistema de seleção e também por que ela tem relação com a desigualdade é que o mercado de trabalho funciona como uma competição para a qual o participante começa a se preparar desde a infância. As pessoas acumulam capital humano, termo usado por economistas para denominar o conjunto de capacidades, competências e atributos de personalidade que favorecem a produção de trabalho. Para isso, contam com três recursos: os privados, os públicos e seus próprios talentos — daí a importância da educação. Como os recursos públicos e, principalmente, os privados não são os mesmos para todos, ao observar somente o final da corrida, o sistema privilegia poucos.
Ao aplicar essa lógica ao caso de Michelzinho, por exemplo, seria possível afirmar que ele, que frequenta uma das melhores escolas da capital paulista — cuja mensalidade pode passar de R$ 3 mil, quase três vezes a renda média per capita do país —, terá as mesmas chances de ser bem-sucedido que um dos alunos de escolas públicas estaduais que nem sequer têm merenda? De forma alguma, avalia o jornalista britânico James Bloodworth, 33, autor do recém-lançado The Myth of Meritocracy: Why Working Class Kids Still Get Working Class Jobs (“O Mito da Meritocracia: Por que Crianças da Classe Trabalhadora Ainda Têm Empregos de Classe Trabalhadora”, sem previsão de lançamento no Brasil). A motivação da pesquisa foi justamente sua experiência com o sistema educacional britânico. Aos 16, ele saiu da escola e, para voltar a estudar aos 19 e poder fazer as provas para universidades, precisou pagar 900 libras esterlinas (cerca de R$ 4,5 mil), por ser considerado um estudante “maduro”.
“Depois de pegar um empréstimo com minha avó, comecei a pensar: ‘Se eu não conseguisse juntar esse dinheiro, nunca teria chegado aonde cheguei’”, conta. Na divulgação do livro, meio sem querer, o jornalista provou seu ponto. Ao receber um convite do site Huffington Post para escrever um artigo de graça, ele simplesmente respondeu, no Twitter: “Acabei de escrever sobre a dificuldade que jovens da classe trabalhadora têm em se dar bem em suas profissões por causa da proliferação do trabalho não remunerado. Então, eis meu artigo: você faz parte do problema, Huffington”.
Entre os dados que considera alarmantes, Bloodworth cita os relacionados à educação superior e às profissões mais bem remuneradas — e como, de certa forma, eles estão interligados. Quem frequenta universidades mais novas, que tendem a atrair estudantes de baixa renda, em geral tem salários menores do que aqueles que estudaram em faculdades consideradas tradicionais e de elite. Na Universidade de Oxford, por exemplo, é interessante notar como isso aparece nos sobrenomes: são predominantes os que pertencem às famílias mais ricas do país, como Baskerville, Darcy e Montgomery. E, embora somente 7% das crianças britânicas frequentem colégios privados, 33% dos médicos, 71% dos juízes e 44% das pessoas que aparecem na lista dos mais ricos do jornal The Sunday Times estudaram nesse tipo de instituição. “Tentativas genuínas para proporcionar mobilidade social deveriam começar por reduzir a desigualdade entre ricos e pobres, não estratificando a sociedade com base em mérito”, argumenta Bloodworth.
O fim da mobilidade social, a desigualdade crescente e a formação de castas seriam as consequências devastadoras de sistemas puramente meritocráticos, de acordo com o autor britânico Michael Young, que cunhou o termo em 1958 no livro A Ascensão da Meritocracia. A obra de ficção era, na verdade, uma crítica à cultura do “self-made man”, a ideia de que as pessoas constroem por si mesmas o próprio sucesso. “Como um objetivo puro, a meritocracia é uma fantasia inatingível, ela se canibalizaria graças aos resultados extremamente desiguais que ela geraria”, diz Bloodworth. “Em uma verdadeira meritocracia, os malsucedidos encaram a vergonha dupla de saber que, sem dúvidas, mereceram esse destino.”
O Paradoxo
Ironicamente, não foi essa a interpretação da sociedade para o livro de Young. O sistema foi visto como positivo e como uma alternativa ao fisiologismo, ao nepotismo ou a privilégios relacionados à renda ou mesmo ao gênero. “Quando se discutem as consequências nefastas disso e procuram-se alternativas, a conclusão lógica é passar a avaliar as pessoas por mérito”, diz a antropóloga Livia Barbosa, da Universidade Federal Fluminense.
De volta ao exemplo das crianças em idade escolar, um argumento recorrente entre quem defende a meritocracia é que ela acabaria com a possibilidade de a criança mais rica ser beneficiada apenas pelo dinheiro. Afinal, se ela não trabalhar duro e não tiver talento, de nada adiantará a riqueza inicial — que pode, inclusive, se transformar em desvantagem caso a pessoa passe a acreditar que tem “a vida ganha” e, portanto, não precisa se esforçar. “Quando nascemos, independentemente do local, somos todos zero quilômetro, não sabemos absolutamente nada”, diz o diplomata Paulo Roberto de Almeida, consultor do Instituto Millenium, entidade de perfil liberal. Como exemplo, ele cita a própria carreira. Nascido em família de baixa renda, atribui o sucesso aos estudos, em parte realizados por conta própria em uma biblioteca perto da casa onde cresceu. “Eu me fiz nos livros, pelos livros e para os livros.”
Para o cientista político Luiz Felipe d’Ávila, diretor do Centro de Liderança Pública, uma educação precária é, sim, uma desvantagem competitiva. Porém, ao mesmo tempo, só frequentar uma boa escola ou faculdade não basta. “Para ter sucesso hoje, é preciso saber lidar com pessoas e ter vivências que muitas vezes ninguém ensina no colégio”, diz. Um indivíduo talentoso e esforçado pode, e deve, buscar mais diferenciais e habilidades. Um caso que ganhou destaque na mídia recentemente é o do chef Marcelo Ribeiro, responsável pelo cardápio do restaurante Depósito Gourmet, no Rio de Janeiro, que recebeu duas indicações ao prestigiado Guia Michelin. Ex-vendedor de balas na Central do Brasil, Ribeiro cursou culinária no Senac de Niterói e, por meio de estágios em hotéis, chegou ao posto atual.
“Aqui a meritocracia é tida como algo injusto, com exceção do universo das empresas, em que é vista com bons olhos”, diz Barbosa, autora do livro Meritocracia à Brasileira: O que É Desempenho no Brasil. Ela explica que o termo só passou a ser conhecido no país na última década, e com um viés mais politizado do que em nações como os Estados Unidos, onde a meritocracia é encarada como ideologia e bastante analisada no mundo acadêmico. Mas, mesmo no dia a dia, argumenta, aplicamos a meritocracia de modo quase inconsciente. “Se você precisa pintar a casa, não sairá à procura do ‘pior pintor’. Sempre queremos o melhor. Por que haveria de ser diferente nas empresas?”
Outro problema, na opinião de Barbosa e Almeida, é que no Brasil, talvez por conviver com outras ideologias de hierarquização, a meritocracia é um pouco às avessas. O sistema é aplicado principalmente na seleção de profissionais, como em concursos públicos, mas são criadas aberrações como a “indústria dos concursos”, em que milhares de pessoas gastam tempo e dinheiro para fazer parte de um funcionalismo que não continua a avaliá-las por mérito ao longo da carreira. A antropóloga afirma ainda que a sociedade brasileira nunca reivindicou de fato a meritocracia, embora esta talvez seja uma boa maneira de combater a corrupção. “As pessoas pedem menos corrupção e leis para isso, mas não enxergam a meritocracia como o único sistema que, de certa forma, neutraliza critérios que geram privilégios e facilitam a corrupção”, ressalta.
O Fator Acaso
Além da desigualdade, a influência do acaso puro numa carreira, sem necessariamente estar relacionado a desigualdades de classe, gênero ou raça, divide opiniões. Para defender o argumento, o economista Robert Frank buscou exemplos também na própria trajetória e em estudos já realizados. Em seus primeiros anos como professor em Cornell, Frank se divorciou e não conseguiu escrever os artigos necessários, pelas regras da instituição, para não ser demitido depois do período de três anos iniciais. Entretanto, talvez por sorte, foi mantido no cargo. No ano seguinte, conheceu um professor visitante que o encorajou a escrever sobre o mercado de trabalho. Foram quatro artigos, todos publicados nas principais revistas da área em poucos meses.
Geralmente, esses periódicos aceitam menos de 10% do material que recebem e podem levar até um ano para responder. “Tenho orgulho dos estudos, mas não acho que tinham qualidade muito superior aos que foram recusados. E a probabilidade de ter os quatro aprovados em um período de tempo tão curto é pequena, o que me leva a crer que meu sucesso editorial repentino foi uma grande sorte.” Ele atribui a isso o fato de ter superado a avaliação seguinte e mantido o emprego na universidade.
Em um estudo emblemático realizado em 2006, o sociólogo Duncan Watts, pesquisador da Microsoft, e sua equipe buscaram avaliar o quanto o sucesso depende do acaso. No experimento chamado Music Lab, feito com 14 mil pessoas nos EUA, a ideia era responder a essa pergunta para músicos iniciantes. Em um site, publicaram 48 nomes de bandas independentes e uma música de cada uma. Os visitantes poderiam fazer o download de qualquer uma delas, desde que as avaliassem depois de ouvi-las, para criar um ranking objetivo da qualidade das músicas.
Com isso em mãos, os pesquisadores, então, criaram oito novos sites com as mesmas bandas e canções. Dessa vez, porém, os visitantes poderiam ver o número de downloads e a avaliação que outros usuários tinham feito das faixas. E o resultado foi surpreendente: a música que no ranking objetivo ficou em 26º lugar, por exemplo, teve sua posição variada de forma drástica nos outros sites, da primeira colocação até a última. “O destino dela dependeu da reação das primeiras pessoas que fizeram o download”, escreve Frank. “É claro que trabalhos inquestionavelmente bons têm maiores chances de superar até comentários negativos, mas o sucesso de algo tão subjetivo como a arte aparentemente depende da sorte de as primeiras impressões serem positivas.”
O Vencedor Leva Tudo
O acaso puro pode ser determinante entre aqueles que são igualmente talentosos. No livro Fora de Série — Outliers, de 2008, o jornalista Malcolm Gladwell lista uma série de acontecimentos ao longo da história que mostram a influência de fatores improváveis para o sucesso, entre eles a data ou o ano de nascimento. Um exemplo é o hóquei canadense. A seleção é formada por idade, e a data-limite para se candidatar é 1º de janeiro. Por isso, um menino que completa 10 anos em 2 de janeiro pode jogar no mesmo time de outro que só terá a mesma idade quase 12 meses depois. E 12 meses, nessa fase, fazem grande diferença no desenvolvimento físico. Não à toa, aponta Gladwell, 40% dos garotos dos principais times fazem aniversário entre janeiro e março, contra 10% entre outubro e dezembro.
Resultados parecidos foram observados pelas economistas Kelly Bedard e Elizabeth Dhuey quando analisaram a relação entre as notas e o mês de nascimento de estudantes. No teste feito com alunos da quarta série, os mais velhos tinham notas consideravelmente mais altas que os mais novos. Ao transferir a análise para faculdades, elas descobriram que os alunos mais jovens correspondem a 11,6% das turmas. A diferença inicial de maturidade aparentemente não diminui com o tempo. “É ridículo e muito estranho que nossa escolha arbitrária de datas-limite acarrete esses efeitos duradouros e que ninguém pareça se importar com isso”, escreve Dhuey.
Esse tipo de fenômeno recebeu até uma denominação própria, criada pelo sociólogo Robert Merton: o “efeito Mateus”. É uma alusão ao Evangelho segundo Mateus, que afirma “Porque a todo aquele que tem será dado e terá em abundância; mas, daquele que não tem, até o que tem lhe será tirado”. Ou seja, às vezes, por um golpe de sorte, algumas pessoas acabam recebendo grandes vantagens em relação às outras, e isso, no fim, gera ainda mais desigualdade.
O raciocínio se aplica também aos chamados mercados “winner take all” (“o vencedor leva tudo”), como explica Robert Frank. Atualmente, vivemos uma era em que poucas posições de trabalho concentram rendas muito altas e desproporcionais em relação às outras. E, para concorrer a essas vagas, os candidatos estão cada vez mais qualificados. “Em competições muito acirradas, tudo precisa correr perfeitamente”, conclui o economista.
A indústria cultural é repleta de exemplos. Frank menciona a trajetória dos atores Al Pacino, famoso por seu papel em O Poderoso Chefão, e Bryan Cranston, mais conhecido a partir de 2008 por viver Walter White na série Breaking Bad. Embora ambos fossem talentosos e já trabalhassem na área, conseguiram os papéis que alavancaram suas carreiras principalmente por sorte. Al Pacino foi escolhido por insistência do diretor Francis Ford Coppola, contrariando as indicações do estúdio; Cranston, graças às recusas de John Cusack e Matthew Broderick.
“As pessoas não gostam de ouvir que o sucesso tem a ver com sorte, elas não querem admitir o papel do acaso em suas vidas”, disse o escritor Michael Lewis no discurso para a turma de formandos da Universidade Princeton em 2012. Autor de A Grande Aposta e Um Sonho Possível, ambos adaptados para o cinema, ele narrou uma série de eventos improváveis que o ajudaram a se tornar famoso e bem-sucedido. “Em um jantar na universidade, sentei-me ao lado da esposa de um figurão de um banco de Wall Street, o Salomon Brothers. Ela foi com a minha cara e meio que forçou o marido a me dar um emprego, com uma posição que me permitiu observar de perto a loucura crescente”, descreve. O resultado da experiência virou o best-seller O Jogo da Mentira.
“De repente, todo mundo me falava que nasci para ser escritor, mas até eu podia ver que aquilo era absurdo”, continua. Afinal, quais as chances de se sentar justamente ao lado da senhora do Salomon Brothers e cair nas graças dela? E o privilégio de poder estudar em Princeton, uma das melhores faculdades do país? “Eu tive sorte, e isso não é falsa humildade.”
Reconheça os seus privilégios
Em resposta a questionamentos e críticas, Frank explica que não se deve deixar de avaliar as pessoas com base em seus talentos e esforços. Afinal, como argumenta o cientista político D’Ávila, de nada adianta você ter a sorte de conseguir uma oportunidade incrível em uma área que não domina. “Diga aos seus filhos para trabalhar duro e não esperar por um momento de sorte”, defende Frank. “Mas, assim que se tornarem bem-sucedidos, faça-os enxergar o quão sortudos eles foram.”
Isso porque quanto mais as pessoas acreditam que mereceram e conquistaram tudo sozinhas, menos elas sentem que devem algo à sociedade. Como argumento, Frank cita um estudo de 2013 feito pelos cientistas políticos Benjamin Page, Larry Bartels e Jason Seawright, das universidades americanas Northwestern e Vanderbilt. Eles mostraram que o 1% mais rico da população é extremamente ativo politicamente e mais resistente que o restante dos americanos a gastos do governo, impostos e regulações. “Quando você acredita ter alcançado tudo sozinho, fica propenso a se recusar a pagar impostos, por exemplo, pois acha que o governo está ‘roubando’ algo seu por direito”, explica.
É um sentimento parecido, talvez, que faz a elite ainda achar natural proibir empregados de frequentarem os mesmos lugares que ela. Um caso recente exposto na mídia foi o do Country Club do Rio de Janeiro, onde placas anunciam que as babás dos filhos dos frequentadores não podem usar os mesmos banheiros que as sócias.
Mas, citando o bilionário Warren Buffett, “alguém está sentado à sombra hoje porque alguém plantou uma árvore há muito tempo”. Isso leva de volta à discussão sobre desigualdade e capital humano: é muito mais provável e fácil acumulá-lo quando se tem a sorte de crescer em ambientes favoráveis, o que requer dinheiro e um alto grau de investimento público — da educação à saúde e infraestrutura. Segundo Frank, somadas aos investimentos, as políticas públicas, como ações afirmativas para minorias, são importantes para reduzir as desigualdades que podem prejudicar o sistema.
No Brasil, o caso mais emblemático é o das cotas raciais e sociais em universidades. Embora elas existam desde os anos 2000 em algumas instituições, só em 2012 foi aprovada uma lei que prevê a reserva de 50% das vagas em todos os cursos de universidades federais para quem fez o Ensino Médio em escola pública, negros, pardos e indígenas.
O objetivo é diminuir as disparidades de acesso: naquele ano, durante o debate no Supremo Tribunal Federal para avaliar a constitucionalidade da nova lei, o ministro Ricardo Lewandowski lembrou que apenas 2% dos negros conquistam diplomas universitários no país. De acordo com o IBGE, em 2008, 60,3% dos jovens brancos frequentavam universidades, contra 28,7% dos negros e pardos. O número subiu para 40% em 2014, e a estimativa da Secretaria de Políticas para a Promoção da Igualdade Racial (Seppir) é de que, no final deste ano, prazo-limite para a adequação à nova lei, as novas políticas garantam o ingresso a 150 mil estudantes negros, ou 50% das vagas.
Embora os dados mostrem que o sistema tem dado certo e que o número de negros com ensino superior atualmente chega a 6%, há quem defenda a volta da meritocracia pura, nos moldes do que era o vestibular antigamente, ou a adoção de um processo de seleção mais completo, que avalie também outras capacidades e habilidades dos estudantes. “O modo como as seleções são feitas hoje é arcaico”, critica D’Ávila.
Com tamanha polarização de opiniões, como convencer as pessoas a apoiar os investimentos que, indiretamente, as ajudaram a alcançar o sucesso? Para Robert Frank, basta fazê-las reconhecer o quão sortudas elas foram — e se sentirem gratas por isso. Alguns experimentos, entre eles um conduzido por Yuezhou Huo, pesquisadora assistente de Frank, mostram que quem expressa o sentimento é mais propenso a contribuir com o bem comum. No estudo em questão, Huo prometeu um prêmio em dinheiro a quem completasse um questionário sobre situações positivas. A um dos grupos, pediu que listassem fatores além do próprio controle que ajudaram a causar a situação; a outro, pediu uma lista de qualidades e ações próprias que podem ter gerado o fato positivo; e um terceiro grupo, para controle do experimento, precisou apenas explicar possíveis motivos para o evento acontecer. Depois de completar o questionário, eles poderiam escolher entre doar parte ou o prêmio inteiro para caridade. Os incentivados a citar causas externas doaram 25% a mais do que quem mencionou apenas qualidades e ações próprias.
A relação da gratidão com a generosidade é percebida por Medeiros, zelador do prédio paulistano. Sem saber do livro de Frank ou das pesquisas, ele afirma acreditar que o maior problema na sociedade atualmente é esse — e ele não está restrito aos mais ricos. “Quando as pessoas conseguem qualquer coisinha, às vezes só passar a usar um tênis ou uma roupa mais da moda, parecem se esquecer das outras”, observa, e diz ficar chateado quando vê que alguns de seus amigos cujas trajetórias de vida foram muito parecidas com a sua o discriminam e são egoístas. “Eles precisam lembrar que sempre, não importa de onde você veio e aonde você chegou, alguém o ajudou no caminho.”
Manual da Sorte
Dois passos para atrair o melhor para a sua vida
Esqueça a superstição, os amuletos, os talismãs e até mesmo as macumbas. Segundo o psicólogo Richard Wiseman, autor do livro O Fator Sorte, é possível aprender a ser sortudo em dois passos básicos.
1 - Relaxe e enxergue as oportunidades
Em alguns testes, Wiseman percebeu que quando estamos tensos e ansiosos, muitas vezes não conseguimos perceber boas oportunidades que estão na nossa frente. “Os azarados perdem oportunidades porque estão muito focados procurando por algo específico, enquanto os sortudos são mais relaxados e abertos”, explica
2 - Aprenda a lidar com o azar
Para um efeito meio “Pollyanna” (personagem famosa por só ver o lado bom em tudo), é preciso aprender a enxergar o aspecto positivo de situações ruins, pois isso diminui o impacto emocional que elas podem ter. De certa forma, tem relação com a primeira dica: menos estressadas, as pessoas conseguem relaxar e alcançam boas oportunidades.
#gratidão
Aprenda exercício para passar a valorizar mais aqueles momentos em que tudo corre bem na vida
Além de tornar as pessoas mais generosas, a gratidão faz bem para a saúde. Estudo feito por pesquisadores da Universidade da Califórnia – Davis e da Universidade de Miami concluiu que quem percebe o sentimento tem dores no corpo com menor frequência e intensidade, dorme melhor, tem mais amigos, é mais alerta, menos ansioso e agressivo e mais feliz. Para quem ainda é resistente a publicar fotos de #gratidão no Instagram ou torceu pelo fim do botão da florzinha no Facebook, criado temporariamente para o Dia das Mães, uma dica é usar o mesmo instrumento da pesquisa: anotações. Durante dez semanas, experimente manter um diário com tudo aquilo que fez você se sentir grato. Não custa tentar.