Mercadores da mentira
A epidemia de notícias falsas nas redes sociais
Kalleo Coura
O presidente do Senado Renan Calheiros (PMDB) bateu na mesa e disse: “quem manda no Brasil sou eu. Quem é Supremo Tribunal Federal?”. No dia seguinte, o ministro do Supremo Ricardo Lewandowski avisou: “Aécio, Collor e Sarney são os próximos a irem pra cadeia”. Collor, por sua vez, ameaçou: “se eu for preso, vai faltar cela”. De Curitiba, o juiz Sérgio Moro decretou: “Vou varrer o Brasil, minha meta é colocar todos os corruptos na cadeia”. Já o ministro Marco Aurélio “detonou” os colegas de trabalho e disse: “o povo vai derrubar o STF”. Diante do cenário, coube à presidente do STF Carmen Lúcia alertar: “vamos ter guerra, não tem como escapar”.
Estas frases de efeito que fariam os olhos de qualquer jornalista brilhar ao serem ouvidas, foram compartilhadas centenas de milhares de vezes na internet por brasileiros revoltados com a situação política do país. O único porém é que as frases nunca foram ditas, apesar de terem sido publicadas pelo site Pensa Brasil, cujo slogan é “em busca da notícia”.
O site integra um rol de portais que publicam notícias falsas ou sensacionalistas com imenso potencial para viralizar nas redes sociais, aproveitando-se do fato de que a maioria dos leitores não se preocupa em checar a fonte das informações. Além do Pensa Brasil, adotam a mesma estratégia, dentre inúmeros outros, sites como Folha Brasil, Folha Digital e Brasil Verde Amarelo.
Por que alguém perderia seu tempo criando e disseminando notícias falsas? Como as mentiras são democráticas e suprapartidárias, a resposta, tudo indica, é uma só: dinheiro. É possível ser remunerado por esta prática graças aos anúncios do Google Adsense. Nos Estados Unidos, um dono de um site de notícias falsas afirmou em entrevista ao Washington Post arrecadar US$ 10 mil dólares por mês com a prática.
Guerra de informações
Um levantamento feito pelo BuzzFeed nos Estados Unidos revelou que, nos três meses finais das eleições americanas, as notícias falsas foram mais compartilhadas do que as matérias reais envolvendo os então presidenciáveis Hillary Clinton e Donald Trump feitas por The New York Times, Washington Post, The Wall Street Journal, The Guardian e outros quinze sites jornalísticos. O placar foi de 8,7 milhões compartilhamentos para os posts mentirosos contra 7,3 milhões para as notícias verdadeiras. A comparação foi replicada no Brasil pelo BuzzFeed local apenas com textos sobre a Operação Lava Jato. As dez notícias falsas sobre a maior investigação do país tiveram 3,9 milhões de compartilhamentos contra 2,7 milhões das dez reportagens reais.
“Quando um discurso intencionalmente mentiroso é veiculado e recebe aplausos, alguma coisa muito grave se revela. No caso, as notícias falsas são acolhidas porque batem com a expectativa subjetiva das pessoas, confirmando teses preconcebidas”, afirma o filósofo Roberto Romano, professor de Ética Política no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp. “Esse é um problema seríssimo da democracia: ter um soberano, o povo, que opera segundo esse tipo de ideia preconcebida”, diz.
Nos Estados Unidos, a manchete falsa campeã de compartilhamentos foi “Papa Francisco choca o mundo e apoia Donald Trump para presidente”, com quase um milhão de compartilhamentos. Uma pesquisa feita com 3 mil pessoas pela Ipsos e divulgada em dezembro mostra que adultos americanos acreditam nas manchetes falsas em 75% das vezes. Pessoas que citam o Facebook como uma das principais fontes de informações tendem a acreditar mais nas notícias falsas do que quem depende menos da plataforma. “A opinião do público, como refletida nesta pesquisa, mostrou que as notícias falsas foram lembradas por uma parcela significativa do eleitorado que as viram como críveis”, afirmou Chris Jackson, relações públicas da Ipsos, ao BuzzFeed.
“As notícias falsas chegaram a um clímax nesta eleição. O nível de desinformação geral, que já era muito grande, piorou a ponto de influenciar um pleito no país mais poderoso do mundo”, analisa o jornalista Rosental Calmon Alves, diretor-fundador do Centro Knight para Jornalismo nas Américas da Escola de Jornalismo da Universidade do Texas. “Precisamos ter uma educação cívica para que os cidadãos entendam e saibam distinguir o que é verdade do que é mentira e o jornalismo tem a responsabilidade de ajudar a educar as pessoas sobre isso”.
Engana-se quem imagina que apenas pessoas com menos instrução sejam iludidas por notícias falsas nas redes sociais. Recentemente o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Og Fernandes compartilhou em seu Twitter trechos de uma entrevista em que Marcola, líder do Primeiro Comando da Capital (PCC), dizia: “Eu li 3 mil livros. Eu leio Dante, mas os meus soldados, todos são estranhas anomalias do desenvolvimento torto deste país”. De fato, a entrevista foi publicada pelo jornal O Globo, mas trata-se de uma ficção, escrita por Arnaldo Jabor. Alertado, o ministro tuítou: “Sobre a entrevista do Marcola ser falsa, eu a recebi e não pesquisei, mas em sendo assim, as intenções foram ‘psicografadas’ pelo Jabor”.
Como notícias falsas favoráveis a Trump e desfavoráveis a Hillary foram propagadas por veículos estatais russos e por agitadores pró-Rússia na internet, pesquisadores americanos afirmaram que existia uma estratégia do governo russo para confundir a fronteira do verdadeiro e do falso e assim influenciar os resultados das eleições americanas e também de países europeus.
Segundo uma reportagem do The New York Times, em novembro o então primeiro ministro italiano Matteo Renzi discutiu privadamente com Obama e com a chanceler alemã Angela Merkel sobre como a campanha russa de desinformação poderia afetar os países. Renzi, alvo de inúmeras notícias falsas, renunciou ao cargo depois da derrota no referendo para reformar 43 artigos da Constituição do país.
Na primeira semana de dezembro, 900 mil alemães ficaram sem acesso à internet e a telefones devido a ataques de hackers russos, o que levou o governo a temer que o país seja o próximo foco de disseminação de notícias falsas propagadas pelos russos para “desestabilizar as democracias ocidentais”. A preocupação é tamanha que o governo estuda impor uma lei para multar o Facebook em até € 500 mil pela distribuição de notícias falsas. As eleições alemãs serão realizadas em outubro de 2017.
Nos Estados Unidos, mesmo depois da posse de Trump, a discussão sobre a verdade dos fatos e as notícias falsas continua quente. Inconformado com o tratamento crítico dado pela imprensa à cerimônia de posse do novo presidente, o porta-voz da Casa Branca Sean Spicer afirmou, sem base na realidade: “esta foi a maior audiência em uma cerimônia de posse, ponto final. Pessoalmente e em todo o mundo”. Dias depois, numa entrevista à MSNBC, ao ser questionada a respeito dessa afirmação, a assessora presidencial Kellyanne Conway respondeu a um repórter: “Não seja tão exagerado. Você está dizendo que é uma mentira. Nosso chefe de imprensa, Sean Spicer, apresentou fatos alternativos a isso”. Conway não explicou qual seria a diferença entre “fato alternativo” e deturpação da realidade. No dia seguinte, Spicer mais uma vez denotou desapreço pela verdade: “algumas vezes, nós podemos discordar dos fatos”.
http://jota.info/especiais/mercadores-da-mentira-23012017
Depois de uma enxurrada de críticas, Google e Facebook anunciaram medidas para tentar conter a onda de mentiras
Como enfrentar as notícias falsas?
Segundo especialistas em Direito Digital consultados pelo JOTA, o Brasil já dispõe dos meios adequados para combater as notícias falsas. “Além da responsabilização civil, sempre que implicar calúnia, injúria e difamação, tanto o autor do texto quanto a pessoa responsável pelo site que o está postando podem ser responsabilizados”, afirma o advogado Ronaldo Lemos, pesquisador e representante do MIT Media Lab no Brasil.
Lemos, que é vice-presidente do Conselho de Comunicação Social do Congresso Nacional, é avesso à ideia de derrubar sites que explicitamente mentem e ganham dinheiro com a mentira. “Acho perigoso ter um árbitro sobre o que são as notícias falsas. Tenho medo de que desta discussão surjam novos incentivos e novas formas de gerar mais remoção de conteúdo e censura. Já temos diversas crises de liberdade no país“, afirma Lemos.
A ferramenta Control+X da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI) ajuda a ter uma ideia deste dilema. Ela divulgou dados preocupantes do tratamento dado à liberdade de imprensa por parte do Judiciário. Em 2016, políticos ajuizaram 97 ações requisitando que meios de comunicação se abstivessem de publicar algo relacionado a eles, um crescimento de 300% em relação a 2012. Pior: enquanto 13% dos pedidos de censura prévia foram aceitos pelos juízes em 2012, neste ano, os deferimentos chegaram a 15%. Nestes casos, não se trata de notícias falsas, mas, em tese, de conteúdo noticioso de fato.
As eleições de 2016 também superaram os últimos pleitos em pedidos para retirar sites do ar ou suspender programação de rádio ou circulação de jornais. Foram 606 pedidos – dos quais 342 foram atendidos pelo Judiciário –, contra 582 em 2014 e 412 em 2012. Entre os Estados com mais de dez ações, os que mais tiveram pedidos deferidos foram Ceará (76% dos casos), Espírito Santo (75%) e Bahia (71%).
Outra pesquisa citada por Lemos, feita pela PUC-Rio, mostra que de sete em cada dez casos julgados pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) em que há conflito da liberdade de expressão com os direitos de personalidade, os segundos acabam se sobrepondo ao primeiro.
O promotor Frederico Meinberg Ceroy, coordenador da comissão de direito digital do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, também não vê com bons olhos a possibilidade de tirar do ar sites que publicam apenas matérias mentirosas. “Qual a diferença na prática destes sites com o Sensacionalista, que produz humor com notícias falsas? Tem que ver especificamente quem é o prejudicado com a notícia. Você está usando o nome de alguém em vão. Quem se sentir prejudicado é a parte legítima para propor uma ação”, diz Ceroy. “Caso contrário, amanhã sites jornalísticos também vão ser censurados. Qual é diferença entre uma notícia falsa e uma matéria em que a fala de um entrevistado foi alterada?”, questiona o promotor, na mesma linha de raciocínio do representante do Pensa, Brasil.
“Enunciados, sobretudo escritos, têm uma carga muito grande de ambiguidade e não existe um parâmetro para dizer: este discurso tem 90% de enunciados verdadeiros, este outro 50%. É impossível”, analisa o filósofo Roberto Romano. “A única maneira de conseguir vencer um discurso ambíguo ou mentiroso é justamente pensar, criticar e comparar — e isto depende muito do grau de inteligência e de cultura de uma população”.
Já o advogado Renato Opice Blum, especialista em Direito Digital, acredita que, em último caso, como medida extrema, cabe a retirada de um site mentiroso do ar. “A liberdade de expressão protege a manifestação do pensamento. Não estamos falando disso, mas de uma alteração da verdade, com algum objetivo que não conhecemos”, afirma Opice Blum. Para o advogado, além da responsabilidade civil e da possibilidade de responder por injúria, calúnia e difamação perante as vítimas das mentiras, autores de sites de notícias falsas podem ser alvos também de ações relacionadas ao direito do consumidor. “Na prática você está apresentando um produto, a informação, que é fraudulento. É enganoso na apresentação. Você está ferindo o propósito do consumidor, mesmo que a remuneração seja indireta”, diz. Segundo ele, esta prática pode gerar uma ação de qualquer órgão do consumidor e de qualquer um que sentir lesado para reparação do conteúdo mentiroso e, em caso de recusa, retirada do conteúdo e, em último caso, do próprio site do ar.
O jornalista Rosental Alves discorda dessa visão. “Os aproveitadores das mentiras oferecem um perigo à sociedade maior do que o das mentiras, que são circunstanciais. O maior perigo, estrutural, é a criação de um ambiente caótico onde o Estado ou a Justiça se vejam tentados a usar alguma forma de censura ou alguma forma centralizada de determinar o que é verdade e o que é mentira. O remédio não pode ser pior do que a doença”, afirma. Para Alves, o caminho é mais liberdade, embora a imprensa tenha uma atitude muito passiva em relação à educação midiática dos leitores, assumindo a ideia de que as pessoas sabem distinguir o que é notícia, de opinião; verdade, de mentira. Neste sentido, é extremamente relevante a iniciativa do site da revista VEJA de escancarar inverdades disseminadas online.
A advogada Letícia Provedel, que defende Gilberto Gil na causa contra o Pensa Brasil, acredita que a principal forma de vencer as mentiras online é responsabilizando os autores civil e criminalmente. “Se não doer pesado no bolso, quem está sendo remunerado ao disseminar mentiras não vai parar”, afirma.
Recentemente o site Business Insider mostrou que o algoritmo do Google tende a privilegiar notícias falsas, já que mostra em cima nos resultados das buscas os links que estão sendo mais clicados. A empresa, por sua vez, anunciou que irá retirar os anúncios do Adsense de sites de notícias mentirosas – o que tiraria do mercado aqueles que estão atrás de lucro fácil. O Facebook, depois de tentar minimizar o impacto das notícias falsas nas eleições americanas, anunciou que irá facilitar a sinalização pelo próprio usuário de que determinada notícia é falsa e que criará sistemas para detectar o que os usuários irão sinalizar como falso – antes das próprias pessoas o fazerem. Além disso, anunciou parcerias com serviços de checagem e com organizações que buscam fazer uma alfabetização midiática dos cidadãos.“São iniciativas como estas que devem ser feitas. Devemos combater as notícias falsas com mais informação e com informação de qualidade. Não com mais censura”, afirma Ronaldo Lemos.