Mentiras do novo EM
Reforma do Ensino Médio: desmonte na educação e inércia do enfrentamento retórico
Denis Castilho*, Pragmatismo Político
No dia 17 de fevereiro de 2017 o texto final da Reforma do Ensino Médio foi publicado no Diário Oficial da União. Com a Lei 13.415, que faz alterações nas Diretrizes e Bases da Educação Nacional, apenas matemática, língua portuguesa e inglês serão disciplinas obrigatórias nos três anos de Ensino Médio. O currículo ficará dividido em duas partes. Uma primeira será comum a todos os estudantes e outra dividida no que o Artigo 36 da referida lei chama de “itinerários formativos”, que se desdobram em:
1) linguagens e suas tecnologias;
2) matemática e suas tecnologias;
3) ciências da natureza e suas tecnologias;
4) ciências humanas e sociais aplicadas;
5) formação técnica e profissional.
A principal questão a ser destacada neste primeiro momento é a seguinte: ao contrário do que o governo divulga, os itinerários formativos não serão necessariamente escolhidos pelo estudante. Serão contemplados conforme as condições da escola em ofertá-los. A premissa de escolha, especialmente em escolas públicas, portanto, é um engodo – uma ficção. Diante do déficit histórico e estrutural de recursos humanos nas escolas públicas, não é difícil prever o cenário nessas instituições. Por outro lado, no ensino privado esse quadro poderá configurar-se como novo nicho de mercado e até mesmo como bandeira de marketing tendo em vista que poderá ofertar maior leque de itinerários.
O texto também informa que a Base Nacional “incluirá obrigatoriamente estudos e práticas de educação física, arte, sociologia e filosofia”. Nota-se que esses campos não são chamados de disciplinas. Na realidade, também não serão obrigatórias, já que poderão ser diluídas em outras disciplinas. O mesmo vale para áreas como geografia, história e química, que também ficarão diluídas nos itinerários formativos.
A diluição, portanto, não afetará apenas as ciências humanas, mas o conjunto de disciplinas tradicionais, excetuando matemática, língua portuguesa e língua estrangeira (inglês). Além disso, no itinerário “formação técnica e profissional”, não haverá exigência de formação em licenciatura para a prática docente. De acordo com a Reforma, “profissionais com notório saber reconhecidos pelos respectivos sistemas de ensino poderão ministrar conteúdos de áreas afins à sua formação ou experiência profissional”. Somado a isso, caso o estudante comprove competência em alguns saberes práticos, “os sistemas de ensino poderão reconhecê-las e firmar convênios com instituições de educação a distância”. Dentre tantos absurdos dessa Reforma, portanto, três se destacam: 1) a diluição de disciplinas estruturantes; 2) a falsa premissa da escolha no sistema público; e 3) o atestado de notório saber.
A diluição e diminuição de ciências que possuem uma rica fundamentação teórica construída ao longo da história, aprofundará ainda mais os problemas atinentes à formação básica dos jovens. Não menos impactante serão os danos epistemológicos e os prejuízos no processo de construção de conhecimentos. O Ensino Médio se transformará em um líquido indigesto e carregado de conteúdos sem nexos, isso porque um professor de biologia, por exemplo, não é formado para trabalhar com química, e vice e versa. A aberração será ainda maior com os pseudoprofessores e seus “obtusos saberes”. Não é difícil imaginar no que isso vai dar. Uma aula de absurdos ou balaio de parvoíce?
A formação do professor é indispensável porque há saberes e competências que são específicos da docência. Ensinar bem uma matéria não requer apenas saber o conteúdo – é preciso compreender o complexo processo ensino-aprendizagem. Por isso, como aceitar um “notório saber” desprezando a formação docente? Conselhos e representações de categorias profissionais como da saúde admitiriam algo similar em seus ambientes profissionais? Evidente que não. Isso demonstra claramente a visão que este projeto (e outros como as OS’s na educação de Goiás) tem de escola, de educação, de sociedade. Além dos problemas didáticos, não resta dúvida que isso abrirá ainda mais brechas para contratações emergenciais, minando concursos e deslegitimando o sentido dos cursos de licenciatura.
Essa Reforma não tem nada de ingênua. Ela deixará o campo aberto à “escola sem partido”. Engana-se quem acredita que os prejuízos serão específicos à essa ou àquela disciplina. O prejuízo abrange a Educação como um todo. Atinge especialmente os estudantes da escola pública, que terão sua formação afetada e seu ingresso na Universidade Pública ainda mais dificultado. Pior que isso é o sentido da própria formação, que inevitavelmente se esvaziará de fundamento, de crítica e de coerência. Retrocesso e desmonte são termos generosos para adjetivar essa reforma.
Levantar essa previsão de desmonte na educação, no entanto, não significa que deixo de reconhecer os problemas atuais. Pelo contrário. Situações como essa servem também para ampliar o debate sobre a situação da educação e, evidentemente, sobre a formação do professor. Servem, inclusive, para revermos o modo como discutimos o ensino e como a escola real aparece em nossos debates. Como professor de um curso de licenciatura em Geografia, não poderia deixar de acrescentar alguns pontos que dizem respeito a essa disciplina.
O curso em que trabalho é ofertado na Universidade Federal de Goiás e também possui a modalidade bacharelado. A licenciatura, no entanto, é aquela que indiscutivelmente tem permitido maior alcance dos egressos ao mercado de trabalho. Esse dado acompanha a disciplina desde a sua institucionalização na Alemanha, em 1871, quando o primeiro curso de graduação em Geografia foi criado para formar professores e atender as demandas do ensino escolar, como explica o geógrafo espanhol Horácio Capel (2012).
Se a função estratégica e o importante papel da ciência geográfica no processo de colonização fossem os fatores indutores de sua institucionalização universitária, Halford Mackinder e seus colegas da Real Sociedade Geográfica não teriam incentivado a expansão do ensino de geografia nas escolas do Reino Unido como estímulo à criação de uma cátedra de Geografia e posterior institucionalização de um curso superior. Ou seja, a grande demanda pela formação de profissionais no campo da geografia vem das escolas. Outras formas de instrumentalização dessa ciência, a exemplo de seu papel nas estratégias imperialistas, que existiram antes mesmo de sua institucionalização universitária, realmente pertencem ao arsenal de funcionalidade da geografia, mas não seriam capazes de promover tamanha expansão como promoveu a demanda por formação de professores.
O fato é que não apenas a geografia, mas outras disciplinas também expandiram seus cursos de graduação em diversos países por esse mesmo motivo. No Brasil não foi diferente. Além da geografia, cursos como história também foram (e são) criados principalmente para atender as demandas do ensino escolar. Não muito distantes estão disciplinas como a física, a biologia e a química, que também têm um forte vínculo com a formação de professores. No que diz respeito a expansão dos cursos de licenciatura, geralmente são acompanhados pela especialização característica de cada ciência e também pela disseminação de laboratórios e/ou grupos de pesquisas. Poucos, no entanto, são voltados para o ensino. A maioria sequer considera a transversalidade da formação docente em suas pesquisas e práticas, mesmo estando alocados em um curso de licenciatura.
Na maioria de nossas instituições, a formação de professores e todo respaldo necessário a isso, infelizmente vai sendo sobreposta por outras atividades. Os grandes projetos geralmente não são direcionados necessariamente ao ensino. As prioridades são outras. A escola e o mundo real da educação, nesse sentido, vão escapando das teorias e se tornando cada vez mais abstratos. Diante disso, como defender uma escola se em nossas discussões ela pouco aparece ou aparece abstrata? Qual o sentido de cursos de licenciatura em institutos e faculdades nos quais as prioridades não estão necessariamente voltadas à formação de professores? A contradição é evidente.
Isso tudo demonstra que a luta também deve acontecer no interior de nossas próprias instituições. A Reforma do Ensino Médio acarretará efeitos não apenas na formação escolar, mas também na formação do professor. É necessário questionar, portanto, o sentido político da reforma, os interesses acobertados, mas também o modo como o ensino é pautado na graduação. Um amplo debate deve ser feito nesse sentido. Ou construímos esse canal de diálogo ou simplesmente seremos comandados por interesses cada vez mais indiferentes à educação. Ou construímos uma estratégia de luta ou teremos os cursos de licenciatura ainda mais esvaziados e desvalorizados. Não menos prejudicados estarão suas estruturas complementares, incluindo laboratórios, grupos de pesquisas, programas de pós-graduação, centros de pesquisas etc., que sobrevivem muito mais em função das demandas da graduação do que de qualquer outra coisa.
O modo como a Reforma do Ensino Médio foi aprovada denota o autoritarismo do governo, mas também a nossa incapacidade de organização e de luta no tempo correto. No final de 2016 os estudantes ocuparam escolas e universidades, protestaram e tentaram dizer alguma coisa. No entanto, além de serem desqualificados por parte de seus próprios professores, tiveram sua mobilização enfraquecida até mesmo por sindicados da categoria. A ocasião era propícia a uma efetiva mobilização nacional envolvendo professores, estudantes e organizações relacionadas à educação. Mas isso não aconteceu.
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Os poucos professores que ensaiaram algum tipo de mobilização, foram taxados de invasores. Se o posicionamento daqueles que deveriam protagonizar as mobilizações foi brando, o resultado não poderia ser diferente: a tácita imposição de um projeto que escancaradamente vem entregando o país aos interesses das grandes corporações está sendo imposta sem a devida resistência.
O momento suscita organização e construção de uma estratégia de luta. Suscita capacidade de diálogo e de proposição mesmo quando não se concorda com um determinado formato de enfrentamento. O contraponto deve ser protagonizado não apenas por professores de determinada disciplina, mas por todos. A Reforma do Ensino Médio faz parte de um conjunto de ações que pretendem minar a formação básica e tolher o pensamento crítico. Isso, como todos sabem, foi feito sem debate, sem consulta e sem representatividade. Por esse motivo, ou construímos coletivamente uma estratégia de ação, ou perderemos espaços que dificilmente serão reconquistados. Ou promovemos um amplo debate com participação de diferentes sujeitos da educação e setores da sociedade, ou deixaremos a formação dos jovens ser ainda mais abalada. Ou lutamos agora, ou cairemos, mais uma vez, na inércia da retórica e no labirinto das lamentações.
*Denis Castilho é geógrafo e professor do Instituto de Estudos Socioambientais da Universidade Federal de Goiás e colaborou com Pragmatismo Político.
Referências:
CAPEL, Horacio. Filosofía y ciencia en la Geografía contemporánea. Una introducción a la Geografia. (Nova edição ampliada). Barcelona: Ediciones del Serbal, 2012.
Diário Oficial da União – 17 de fevereiro de 2017. Disponível em: http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=17/02/2017&jornal=1&pagina=1&totalArquivos=440 (acesso em: 18 fev. 2017).
Lei Nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/Lei/L13415.htm (acesso em: 18 fev. 2017).
http://www.pragmatismopolitico.com.br/2017/02/reforma-do-ensino-medio-desmonte-educacao-inercia.html