MEC produz fake news da BNCC
MEC produz fake news da BNCC do Ensino Médio, diz Callegari
Leandro Silva
Presidente da Comissão da Base no Conselho Nacional de Educação deixa função com duras críticas ao governo
Todos os estudantes do país, de escola pública ou particular, terão os mesmos direitos de aprendizagem. É assim que o Ministério da Educação (MEC) define os rumos da educação brasileira a partir da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Veiculada em rádio e TV, a propaganda oficial do governo federal enfatiza ainda que o documento que estabelece diretrizes curriculares da Educação Básica é democrático e respeita as diferenças.
Não é o que dizem, contudo, professores, estudantes e até o ex-presidente da Comissão Bicameral da BNCC no Conselho Nacional de Educação (CNE), Cesar Callegari, sobretudo no que diz respeito ao Ensino Médio. Ele chegou a renunciar ao cargo nesta segunda-feira (2) por discordar das propostas do MEC para tal etapa de ensino.
A Base do Ensino Médio foi entregue pelo MEC ao CNE em abril deste ano. Desde então, tornou-se alvo de críticas por pontos polêmicos, como liberação de ensino a distância, suposta privatização do ensino, ampliação de desigualdade educacional entre alunos. Soma-se aos problemas a comunicação do governo, apontada como ilusória por Callegari.
Além da propaganda atual, que abrange a BNCC no todo, o governo veiculou comercial da reforma do Ensino Médio afirmando que estudantes, de Norte a Sul do país, passariam a escolher o que estudar de acordo com vocação. Ademais, sinalizou aprovação majoritária de brasileiros para a novidade, embora nenhuma mudança tenha ocorrido de fato desde a divulgação da Medida Provisória nº 746/16 – convertida na Lei nº 13.415/17.
Um mês depois do cancelamento da audiência pública da BNCC do Ensino Médio na Região Sudeste, por causa de intenso protesto de professores e estudantes em São Paulo, Callegari falou sobre o documento e fez severas críticas ao governo. A mais dura delas é que o MEC produz fake News – fenômeno de propagação de notícias falsas – sobre as mudanças na educação brasileira, especialmente no Ensino Médio.
Confira entrevista concedida na última quarta-feira (25), por telefone, ainda na condição de presidente da Comissão da BNCC no CNE. Apesar da renúncia, ele exercerá mandato de conselheiro do órgão até outubro deste ano.
Portal CPP: Protesto de professores e estudantes cancelou a audiência pública da Região Sudeste do país sobre a BNCC do Ensino Médio, em São Paulo, no dia 8 deste mês. Haverá outra?
Cesar Callegari: O Conselho Nacional de Educação (CNE) não se reuniu depois daquele dia. Nossa primeira reunião será agora, nesta primeira semana de julho. Vamos avaliar muitas coisas, entre elas o reagendamento da audiência pública da Região Sudeste. Remarcação é possível. Temos que verificar no conjunto como as questões relacionadas ao debate da proposta do Ministério da Educação (MEC) serão de fato encaminhadas. O que aconteceu aqui [São Paulo], a manifestação dos diferentes grupos, é revelação de imensa inquietação de vários setores em relação à BNCC do Ensino Médio.
Como o senhor avalia a manifestação? De que forma ela se refletiu no Conselho?
O CNE tem que estar sensível a esse tipo de "grita". Não é possível fazer Base Nacional Comum Curricular, tampouco reforma do Ensino Médio, sem efetiva participação dos principais interessados, que são estudantes e professores. Temos de aprofundar a avaliação que estamos fazendo. Especificamente no que diz respeito ao documento para o Ensino Médio, vários dos integrantes [do CNE] têm apresentado severas críticas ao que foi apresentado pelo MEC. Arriscaria dizer que, se fosse para votar agora, a proposta seria rejeitada pelo Conselho.
Quais as principais críticas?
Uma crítica de fundo é que a lei do Ensino Médio [Lei nº 13.415/17] e a respectiva BNCC dessa etapa de ensino limitam os direitos de aprendizagem dos jovens brasileiros ao que couber, apenas ao que couber, em 1.800 horas, o que corresponde a cerca de 60% da carga horária atual. Isso vai na contramão de tudo o que se faz no mundo, que é avançar na realização de direitos educacionais de uma juventude que precisa ser cada vez mais preparada para enfrentar os desafios da contemporaneidade.
Outro aspecto problemático é que na proposta do MEC, com exceção de Língua Portuguesa e Matemática, todas as disciplinas ficam diluídas em área de conhecimento. Entretanto, não há qualquer clareza daquilo que deva ser assegurado. Isso é muito sério. Quando você pensa em Base Nacional Comum Curricular você tem que dizer quais são os domínios conceituais próprios a cada uma das disciplinas. Você não pode pensar em interdisciplinaridade sem considerar as disciplinas. O que quero dizer é que esses domínios conceituais não estão nem minimamente indicados na proposta do MEC, ou seja, que estudantes certamente não terão condições de pensar sobre o que receberão, de estabelecer visão crítica e criativa em relação ao mundo.
O que seria, em termos práticos, limitação de direitos de aprendizagem?
Diferentemente do que se pensou quando a BNCC foi estabelecida pelo Plano Nacional de Educação [PNE], a proposta do MEC limita os direitos de aprendizagem a apenas uma parte do esforço educativo. É um processo excludente que limita tudo a 1.800 horas. A outra parte, muito significativa, diga-se, fica na dependência de existirem condições de implementação, de existir vontade política de fazer.
A exclusão parte do princípio de desigualdade estrutural entre escolas, por exemplo? O senhor se refere a oportunidades distintas conforme condições de cada rede de ensino?
Um ponto é exclusão de direitos mesmo, como disse. Outro é que realmente não considera condições adversas da maioria das escolas de Ensino Médio no Brasil. Há casos sem professores suficientes, sem laboratório, sem recursos didáticos, superpopulação de alunos por sala, condições muito precárias. Inclusive, nas escolas em que a precariedade é maior, exatamente aquelas que atendem à população de baixa renda e jovens com maior vulnerabilidade, a exclusão será ainda mais profunda.
Atualmente, o governo veicula propaganda em rádio e TV afirmando que estudantes de todo o país terão as mesmas oportunidades a partir da Base. Em outro momento, propagandas oficiais da reforma do Ensino Médio diziam que estudantes passariam a ter escolha em relação ao que estudar...
Não é verdade que haverá opções. Outro ponto que eu queria chamar atenção, aliás, é justamente sobre as propagandas do governo. Não haverá escolha para a maior parte dos estudantes. Primeiro porque o MEC não apresenta, em termos de itinerários formativos, como mencionei, nada do que deveria ser assegurado. Segundo porque na maior parte das escolas não há mínima condição para que se desenvolva educação de qualidade adequada. Nesses casos, além de não haver opção, certamente vão sobrar frustrações.
O governo falou muito de flexibilização do currículo a fim de tornar o Ensino Médio mais atrativo, ou seja, na tentativa de reduzir alto índice de evasão. Não faz sentido?
A flexibilização é um atributo dos currículos. Todos eles devem ser sempre flexíveis e contextualizados. A diversificação, que é o termo mais apropriado, relacionado ao fato de cinco itinerários formativos, é, em tese, positiva. Seria ótimo se os jovens pudessem fazer escolhas. O problema é que não é condizente com a realidade.
Até porque a maior parte da Base está voltada à Língua Portuguesa e à Matemática, não?
O governo na sua proposta dá mais ênfase à Língua Portuguesa e Matemática, que são duas disciplinas importantes, sem dúvida, mas não as únicas. As demais são fundamentais, inclusive para que se aprenda Português e Matemática. Então, não pode passar essa ideia de que só Português e Matemática são importantes.
Agora, os problemas da evasão, que acontece já no primeiro ano do Ensino Médio, surgem em decorrência de problemas acumulados ao longo do Ensino Fundamental. Muitos estudantes chegam ao Ensino Médio com defasagens graves. A isso se soma estrutura pouco significativa para esses estudantes, isto é, eles começam a perceber que aquele formato não se relaciona com as vidas deles. São processos muito desarticulados das diferentes disciplinas, às vezes deficiências próprias de professores, que carecem de formação melhor, enfim, um caldeirão de problemas que levam à evasão e reprovação.
Resumidamente: não se pode mexer apenas no Ensino Médio. Não dessa forma.
Propagandas da BNCC também falam em documento democrático e que respeita as diferenças. Professores rechaçam e reclamam de falta de participação, o que vai contra teor democrático da proposta. Há críticas inclusive voltadas ao CNE, que, para educadores, teria desconsiderado contribuições de audiências públicas da BNCC do Ensino Fundamental, em 2017. Como o senhor responde a tal posicionamento?
Vamos por partes. Da participação no que diz respeito às mudanças do Ensino Médio é verdade. Não podemos nos esquecer de que tudo isso nasceu de uma Medida Provisória do governo Michel Temer (MDB), depois convertida em lei sem qualquer participação do campo educacional brasileiro. Essa queixa é procedente.
Agora, da participação pelos documentos entregues ao CNE nas audiências que realizamos sobre a BNCC do Ensino Fundamental e Educação Infantil, ano passado, muita coisa foi considerada, assim como muita coisa não foi. Considerado, na verdade, tudo foi. Garanto porque presido, até o presente momento, a comissão da Base.
O que precisa ficar claro é que o CNE é um órgão colegiado. As decisões são tomadas por maioria. Algumas coisas passam; outras, não. Por exemplo: na Educação Infantil o texto foi mais avançado do que o inicial, proposto pelo MEC. A mudança só foi possível graças a contribuições que colhemos nas audiências públicas. Tivemos aspectos sobre educação de escolas indígenas, educação quilombola, computação e novas tecnologias. Muitos avanços.
Mas houve retrocessos também. O fato de o documento ter sido aprovado sem nenhuma referência explícita às questões de gênero e orientação sexual, por exemplo. Apresentei várias emendas, mas elas foram rejeitadas pela maioria. Em síntese, o que finalmente foi decidido dependeu do voto da maioria.
Mas é bom lembrar que também há autonomia para as redes de ensino. A Rede Municipal da cidade de São Paulo, por exemplo, não deu a menor bola para essa exclusão e incluiu referências explícitas a gênero e orientação sexual no seu documento.
As informações da construção da Base, seja do Ensino Fundamental, seja do Ensino Médio, são claras?
Tem muita informação confusa. E muito dessa confusão até o próprio governo tem produzido. As orientações que o MEC tem dado vão na contramão das orientações que nós conseguimos colocar na Base do Ensino Fundamental. Ou seja, que a base não é currículo, que ela tem que ser apenas referencial para elaboração curricular das escolas e redes de ensino, no exercício da autonomia. Cabe às escolas, aos professores e à equipe escolar tomar decisões com a base como referência. Mas a decisão é autônoma, é autoral.
O MEC neste instante quer transformar a BNCC do Ensino Fundamental em currículo e quer impor aspectos do documento como se tudo aquilo tivesse que ser obedecido pelas redes. Isso é um absurdo. Completamente contrário às normas, aos interesses da educação brasileira e ao respeito à própria pluralidade do sistema educacional do país.
As escolas têm que reagir contra isso. É uma violência, um autoritarismo inaceitável.
Qual o papel dos professores neste processo de mudanças na educação?
Aos profissionais da educação cabe ajudar a população a tomar consciência do que podemos chamar de fake news governamental. É esclarecer o que é propaganda e o que é verdade. As escolas e os professores têm responsabilidade muito grande nesse sentido.
Além disso, quero reforçar que até me surpreendo com o fato de que representantes dos interesses da população, que é o caso do Ministério Público, não tomem atitudes mais veementes em relação à propaganda enganosa do governo.
O senhor diz medidas judiciais?
Sim. O Ministério Público, tão diligente no sentido de fazer com que a lei seja obedecida e a conduta dos agentes públicos seja respeitosa, está permitindo circulação de propaganda claramente enganosa. E com milhões de reais sendo gastos para produzir ilusão.
O senhor desconhece casos de acionamento do MP contra esse tipo de comunicação do governo?
Não vi. Surpreendentemente não vi nada até agora.
Professores reclamam da abertura para educação a distância no Ensino Médio, o que chegou a ser discutido com possibilidade de até 40% do ensino nessa modalidade. Qual a avaliação do senhor?
Isso é um dos aspectos mais nefastos da Lei do Ensino Médio. Na realidade nem se fala de percentual. Alguns estão falando em 40%, o que já seria absurdo, mas minha posição é que zero da Educação Básica seja a distância. Os jovens têm o direito à convivência, antes de tudo. E uma convivência mediada por profissionais da educação. O território escolar é fundamental para o desenvolvimento, para que haja prática de valores fundamentais como solidariedade, respeito à diversidade e trabalho colaborativo. Isso não se faz atrás de uma tela de computador em um quarto escuro. Não.
As novas tecnologias estão aí, são realidade, mas elas têm que ser postas a favor da escola, não em substituição. A escola é um território absolutamente indispensável para uma sociedade democrática, plural, como imagino que deva ser.
Este dispositivo da lei para oferecimento a distância é um atentado. Um dos mais graves atentados ao direito educacional brasileiro. Tem que ser combatido.
A propósito, ensino a distância foi tema de cartazes na manifestação de professores na audiência cancelada aqui em São Paulo. Eles dizem que é uma forma de privatizar o ensino, uma vez que atenderia a empresas do setor privado de ensino EAD. O senhor concorda?
Concordo. Possivelmente quem está interessado nessa brecha da lei são as grandes empresas privadas, que hoje já operam no Ensino Superior a distância em larga escala. Devem estar esfregando as mãos vendo as oportunidades que podem surgir para a venda de pacotes para escolas públicas e privadas de Ensino Médio no Brasil. É sim uma maneira de privatizar. O problema é grave, gravíssimo. É a dissolução da escola como território das relações sociais.
Sobre a Educação de Jovens e Adultos (EJA), que foi foco de discussões para totalidade a distância, a avaliação é a mesma?
Sim. Considerando a precariedade daqueles que podem chegar a utilizar esse recurso, com pouca capacidade de leitura, escrita, interpretação de texto, pacotes a distância para a Educação de Jovens e Adultos podem significar exclusões ainda maiores. Sem contar a parte do acesso tecnológico.
No meu modo de entender, a Lei do Ensino Médio deve ser revogada integralmente, e a BNCC a ela referida, rejeitada e devolvida ao MEC.
Defendo que professores e estudantes discutam com a sociedade caminhos a seguir, mas sem ter como referência um documento com tantos problemas.
Mas a revogação depende de um colegiado de maioria...
Sim, sempre depende. Mas o fato de não termos maioria dentro de um órgão como o CNE, que é pró-governo, não significa que deixemos de lutar. Temos que incentivar a mobilização das bases educacionais do Brasil para que o próprio Conselho seja pressionado e tome tal atitude.
Acho que, nesta altura, temos que procurar exercer o máximo da missão do profissional de Educação, que é elevar o nível de consciência não só dos seus alunos, mas da própria categoria. E agir.
Termino com uma frase do Guimarães Rosa, que diz mais ou menos assim: “Melhor faz quem luta com as mãos, do que quem abandona as mãos para trás”.
https://www.cpp.org.br/informacao/entrevistas/item/12641-cesar-bncc