Marielle, uma voz

Marielle, uma voz



 

“ Quando é aba­tido o que não lutou só, o ini­migo ainda não venceu.”
– BER­TOLD BRECHT.

A chuva caía tor­ren­ci­al­mente sobre a ci­dade. Iansã man­dava seus raios e os cla­rões ten­tavam negar a noite que in­siste em suas som­bras. Os corpos não se viam, a pele negra se con­funde com a noite, os rios de sangue fluem para a vala, de todas as fe­ridas abertas, dos na­vios des­car­re­gando sua carga hu­mana acor­ren­tada, no verde dos ca­na­viais, nas fa­velas, nas ru­elas da velha ci­dade, das fle­chas de São Se­bas­tião.

O sangue, ferro ver­melho, rio que tanto car­rega a vida como se esvai para fora dela, também dá cor às ban­deiras que a de­fende. Na noite as cores se amam no negro, o ver­melho, o lilás, o preto. Iansã manda seus raios.

Outro corpo cairá. Na noite não sa­be­remos seu nome, dos so­nhos que car­re­gava, dos braços que o es­pe­ravam no vazio da volta. No porão do navio ne­greiro se con­tará a carga fal­tante. No mar es­curo o es­que­ci­mento fará parte da me­mória dos peixes. São muitos e diá­rios, aqueles que partem sem deixar seu nome para que gri­temos, para que nossas lá­grimas de dor e raiva al­cancem seu corpo, para que o abutre do es­que­ci­mento não di­la­cere sua me­mória.

Os ín­dios e as mon­ta­nhas guar­darão suas almas, das sen­zalas se ou­virão cantos in­com­pre­en­sí­veis, o bater dos pés no chão para que a terra acorde de seu pe­sa­delo de morte. O ar da noite ge­lará por um ins­tante e cada gota de chuva bri­lhará como uma es­trela.

Nunca sa­be­remos todos os nomes. Al­gumas vozes, no en­tanto, car­regam a magia de falar por todas as vozes es­que­cidas, sei lá por que razão, rolam de sua face lá­grimas de ou­tras gentes, sen­tindo em seu corpo o açoite e o tiro, a dor e a falta. A voz da me­mória é que fala nelas e com sua força rompe o te­cido do tempo e a pre­tensão da noite, re­volve a terra numa agri­cul­tura re­versa, des­plan­tando o oculto. Nessas vozes cantam cân­ticos an­ces­trais, contam-se his­tó­rias de nossos avós, que lançam faíscas de luz na noite do es­que­ci­mento. Iansã manda seus raios.

Tal magia se ad­quire ao se comer o mesmo pão do so­fri­mento, quando se vive na noite ao lado dos ex­plo­rados, quando se nasce onde não se pode viver, quando se vive ali onde a regra é morrer. É a voz de quem so­bre­viveu aos seus e levou suas almas cos­tu­radas no ves­tido, no lenço preso na ca­beça, na ban­deira que leva com seus mortos para mar­char nas ave­nidas que levam nomes de seus as­sas­sinos.

São vozes que brotam do fundo da terra, das covas rasas, das valas e que se servem da boca de pes­soas vivas, no sen­tido mais vivo da pa­lavra viva. Dos lá­bios e lín­guas no prazer dos beijos, dos açoites de ver­dades que rasgam os véus es­curos da noite que in­siste. Iansã manda seus raios e o clarão mostra o que a noite oculta.

Por conta dessas vozes vivas sa­bemos dos ou­tros que a noite es­conde. Sua voz tem nome e corpo, mas sua es­ta­tura pro­jeta algo muito além do por­tador da voz, porque foi buscar seu ta­manho na me­mória dos ín­dios e das mon­ta­nhas, das sen­zalas e fa­velas, da força dos pés que acordam a terra. Por isso po­demos dizer seu nome e ao dizê-lo acordar os mortos que car­rega, de­volvê-los aos braços que es­pe­ravam, ao ca­minho in­ter­rom­pido que tri­lhavam. Iansã nos ilu­mina com seus raios.

Hoje di­zemos Ma­ri­elle. Uma voz co­le­tiva que tem nome, que se ocupou em lutar contra a noite, que car­rega no seu corpo negro todas as mu­lheres as­sas­si­nadas, todos os corpos e todo o sangue, todos os nomes ex­pro­pri­ados de seus donos, todos os so­nhos, toda a vida que a morte car­regou para o oco da noite. Que diz alto os nomes dos as­sas­sinos e os acusa. Esta voz tem um nome e di­zemos: Ma­ri­elle. Iansã ilu­mina seu corpo com seus raios. A voz tem um nome, Ma­ri­elle. 

E Ma­ri­elle foi morta outra vez. No navio ne­greiro, no ca­na­vial, nas ruas es­treitas do Rio de Ja­neiro, na fa­vela, na fá­brica, em casa, agora no carro. Mas esta morte tem um nome, porque car­re­gava muitas vozes, porque nunca es­tava so­zinha, nunca será es­que­cida, porque através dela é que lem­bramos dos es­que­cidos. Seu nome é Ma­ri­elle, seu nome é mu­lher, seu nome é negra, seu nome é jus­tiça, seu nome é luta, seu nome é so­ci­a­lista, seu nome é Ma­ri­elle.

Iansã chora tem­pes­tades.

Cada gota de chuva lava nossa ci­dade, cada raio a ilu­mina. Cada gota de sangue que cai na terra re­nasce em nossa luta... que nunca ter­mina... nunca… nunca ter­mina.


Mauro Luís Iasi é pro­fessor ad­junto da Es­cola de Ser­viço So­cial da UFRJ, pes­qui­sador do NEPEM (Nú­cleo de Es­tudos e Pes­quisas Mar­xistas), do NEP 13 de Maio e membro do Co­mitê Cen­tral do PCB.

Re­ti­rado do Blog da Boi­tempo.

http://www.correiocidadania.com.br/2-uncategorised/13161-marielle-uma-voz 




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