Marcas do Bullying
Publicado em 12 de fevereiro de 2016
Na semana em que passa a valer a lei nacional que institui o Programa de Combate à Intimidação Sistemática, ZH conta a história de quatro adultos que sofreram repetidas humilhações durante a vida escolar. Todos se queixam da omissão dos professores e das equipes pedagógicas
REPORTAGEM - Larissa Roso
EDIÇÃO - Ticiano Osório
IMAGENS - Júlio Cordeiro
DESIGN - Leonardo Azevedo
Para escapar do escárnio, Fábio Verçoza se demorava no vestiário até que os colegas terminassem de trocar de roupa e seguissem para a aula de Educação Física. O menino de 11 anos então apagava a luz, garantindo que não teria a nudez flagrada por um aluno que surgisse de repente. Constrangia-se pelo excesso de peso e temia a zombaria habitual por conta da sua homossexualidade latente. Quando não conseguia fugir – vivia apresentando justificativas para ser dispensado dos exercícios –, rumava para o campo de futebol. O suplício se repetia: dois meninos escolhiam os jogadores que comporiam os times. A dupla de líderes disputava primeiro os esportistas mais habilidosos, seguindo depois pelos intermediários, até que restassem os de pior desempenho. Fábio costumava ficar por último – não gostava de jogar, tinha dificuldade para correr. Naquele dia indelével, que resiste na memória com abundância de detalhes, o rechaço do grupo ficou ainda mais evidente: ninguém o queria na equipe, nem por compaixão. Fábio começou a chorar.
– Maricas! – debochou um garoto.
À primeira afronta, seguiram-se outras, em uma tensão crescente.
– Mulherzinha!
– Vai jogar vôlei com as gurias! – mandou alguém.
Sugeriram, entre risos, que o rejeitado atuasse como a bola do jogo. Sufocado por um histórico de ofensas, Fábio disparou para o confronto. Desajeitado, acabou apanhando. Pontapés e um soco no olho deixaram hematomas. Conduzidos à direção da escola, os envolvidos receberam bilhetes de advertência a serem entregues aos pais.
– Eu não quero mais fazer Educação Física – suplicou Fábio à mãe, que providenciou um atestado médico falso, alegando problemas de coluna, junto a um amigo da família.
Fábio era vítima de bullying, prática repetitiva de violência física e psicológica, que se caracteriza pela intimidação, humilhação ou discriminação entre pares – geralmente, crianças ou adolescentes que são colegas de escola ou convivem em outros ambientes. Na tentativa de combater o problema, a presidente Dilma Rousseff sancionou a Lei 13.185, que passou a vigorar na última semana, às vésperas do início de mais um ano letivo. O Programa de Combate à Intimidação Sistemática tem o objetivo de capacitar docentes e áreas pedagógicas para prevenir o bullying, muitas vezes subestimado como uma simples brincadeira infantil. Submetida a uma rotina de agressões, a vítima pode acabar sendo condenada a um penoso isolamento social, com prejuízo ao desempenho nos estudos e consequências que podem se estender ao longo da vida. Nesta reportagem, Zero Hora mostra o impacto de episódios de bullying na trajetória de quatro pessoas hoje adultas – além de Fábio, que aos 51 anos é assessor de gabinete da Secretaria Municipal de Cultura de Porto Alegre, são compartilhadas as lembranças e as reflexões da gerontóloga Gisele Varani, 51 anos, da pedagoga Tanusa Dresch, 31 anos, e do estudante de Administração de Empresas Pedro Maffei Frasca, 21 anos.
Rei Momo do Carnaval de Porto Alegre por 10 anos – o posto recebeu novo titular em dezembro último –, Fábio conseguiu ressignificar na festa popular uma das características que motivaram o martírio sofrido nos 11 anos em que frequentou um dos colégios privados mais tradicionais da cidade. Em duas horas de entrevista, recontou os momentos mais dolorosos. Chorou cinco vezes.
– Eu era negro, eu era pobre, eu era gay, eu era gordo – enumera. – Eu fugia do padrão.
Filho de uma dona de casa que não completou a 4ª série do Ensino Fundamental – por ser magra demais, ela não suportou ser chamada de tuberculosa e abandonou a escola – e de um professor que pagou com sacrifício a cara mensalidade, Fábio teve de coexistir com os sobrenomes dos filhos de políticos, empresários e socialites. A implicância das crianças começou cedo. Na 1ª série, o garoto se encantou pelo vestuário impecável e pelas belas perucas da professora. As maneiras delicadas e o gosto por moda chamaram a atenção dos colegas, que passaram a abastecer a coleção de alcunhas que ele carregaria a partir dali, culminando com a briga no jogo de bola e indo além: baleia fora d'água, rolha de poço, sujismundo.
– Ele é a pessoa mais feia que eu conheço – declarou um guri certa vez.
– Mesmo que você não venha para o colégio, sua calça sabe vir andando sozinha – disse uma menina, em referência à única peça que Fábio vestia, costurada pela avó com um tecido de segunda mão, reaproveitado de um vestido.
Do lado de fora do colégio, a interação não era mais amena. Fábio geralmente não era convidado para passeios e celebrações. Percebia, nos cochichos, que os planos sempre o excluíam, e os colegas só falavam abertamente depois que os eventos haviam passado, para atormentar o companheiro refugado. No Ensino Médio, apesar do entorno pouco favorável, ele cometeu uma ousadia: chamou três turmas inteiras de estudantes do 1º ano para sua festa de aniversário. No salão de festas decorado para a ocasião, um amigo foi escalado para operar o toca-discos, como DJ. Uma imensa quantidade de petiscos aguardava pelos cerca de 90 convidados. Compareceram apenas 11 adolescentes. Naquele dia de julho, a mãe de um amigo tentou consolar o aniversariante:
– Está frio, chovendo. Não é porque não gostam de você.
Em uma época em que a prática de bullying não tinha a visibilidade dos dias atuais, a escola, segundo Fábio, se omitiu. Eram encaminhados aos supervisores os alunos de mau comportamento e notas baixas. Como ele não costumava se enfiar em confusão, permanecia fora do alcance do radar da equipe pedagógica. Sofria quieto, vez ou outra sendo defendido por alguma menina que se condoía dos ataques.
– Se eu apanhasse, como algumas vezes aconteceu, e chegasse em casa e dissesse para o meu pai, eu seria xingado. "Por que você não revidou? Por que você não foi homem para revidar?", ele perguntaria. Se eu falasse que era chamado de rolha de poço, ele me xingaria e perguntaria por que eu não emagrecia – relata Fábio, a voz entrecortada pelas lágrimas. – Reconheço a qualidade do colégio, tive o melhor ensino do mundo. Mas houve falta de sensibilidade de professores e orientadores, que viam e faziam que não viam. Ou não viam – completa.
Fábio Verçoza: "Eu era negro, pobre, gay, gordo. Tive o melhor ensino do mundo, mas faltou sensibilidade dos professores"
A conclusão do Ensino Médio foi libertadora. Fábio cursou três faculdades: Ciências, Arquitetura e, mais tarde, Direito. Tornou-se um professor atento, capaz de identificar, em sutilezas, se um aluno estava sendo vítima de algum tipo de abuso. Em uma das instituições onde lecionou, no início da década de 1980, criou um concurso de beleza de regramento flexível para a escolha da rainha e dos brotos. Permitiu que qualquer aluna interessada se inscrevesse, e não apenas as mais belas, eleitas em cada turma, como ocorria de praxe. Providenciava o figurino para quem não podia arcar com o custo da roupa e ensaiava coreografias para o grande dia. Confiantes, as gordinhas surgiam em vestidos de festa, com babados. Uma aluna com deficiência mental decidiu participar, e Fábio combinou com as demais concorrentes que seria concedido a ela o título de Brotinho da Amizade. Vibrando com a conquista, a garota recebeu a faixa e partiu para um giro pelo ginásio, sendo aplaudida pela plateia. De tão faceira, exagerou na comemoração – deu duas, três voltas, e teve de ser conduzida para fora da passarela pela organização, episódio que o professor narra aos risos.
– Me vi em muitos dos meus alunos. Fiz o inverso do que fizeram comigo. Era um acerto de contas – diz.
Fábio recusou propostas de emprego feitas pelo colégio que o traumatizou, desprezando um considerável aumento de salário. Até pouco tempo atrás, evitava passar pela frente da escola, desviando por outras ruas para chegar ao destino. Não teve como escapar do confronto quando, recentemente, foi convocado para um compromisso de trabalho. Pela primeira vez em mais de 30 anos, teria que voltar ao cenário de pesadelo. Programou-se para sair com antecedência, sabendo que precisaria de minutos extras para vencer o trajeto. Avançava em passos curtos, suava em profusão, tremia. Parou por instantes na frente do prédio até juntar coragem, planejando ir direto para a sala da reunião, sem deter o olhar em nada. Surpreendeu-se ao ser tomado também por recordações boas. Conhecedor dos caminhos, resolveu espiar o pátio. Chorou. Fez uma selfie, postada no Facebook com uma legenda que pareceu enigmática para muitos: "Gente, eu consegui!".
– Senti uma mistura de coisas: a lembrança do que eu tinha passado e a emoção de voltar a minha história. Talvez hoje eu seja do jeito que sou porque passei por aquilo.
Bullying
– Agressão repetitiva que ocorre entre pares (colegas de aula, crianças moradoras do mesmo condomínio ou alunos da escolinha de futebol, por exemplo). A prática de intimidação, humilhação ou discriminação, podendo haver também violência física, acaba por gerar isolamento social. A vítima passa a não ser convidada para participar de brincadeiras, trabalhos em grupo, festas.
– Há um desequilíbrio de poder entre as partes envolvidas. A vítima geralmente se sente impotente para reagir. Baixa autoestima e sensação de culpa costumam estar presentes. A criança ou o adolescente se sente também responsável pelas agressões sofridas ("por que sou tão gorda?", "por que vim com essa roupa?"), postura que legitima e reforça o comportamento do agressor.
– É característica do bullying a presença de uma audiência, que corrobora os ataques, ri ou se omite. Em menor número, há os que defendem o agredido.
O que é?
Sinais de alerta
Como agir
Prevenção
Fonte: Carolina Lisboa, professora do Programa de Pós-graduação em Psicologia da PUCRS, especialista em bullying e cyberbullying
A nova lei
Os objetivos do Programa de Combate à Intimidação Sistemática, instituído pela Lei 13.185, de 6/11/2015:
– Prevenir e combater a prática de bullying em toda a sociedade.
– Capacitar docentes e equipes pedagógicas para a implementação das ações de discussão, prevenção, orientação e solução do problema.
– Implementar e disseminar campanhas de educação, conscientização e informação.
– Instituir práticas de conduta e orientação de pais, familiares e responsáveis diante da identificação de vítimas e agressores.
– Dar assistência psicológica, social e jurídica às vítimas e aos agressores.
– Integrar os meios de comunicação de massa com as escolas e a sociedade, como forma de identificação e conscientização do problema e como forma de preveni-lo e combatê-lo.
– Promover a cidadania, a capacidade empática e o respeito a terceiros, nos marcos de uma cultura de paz e tolerância mútua.
– Evitar, tanto quanto possível, a punição dos agressores, privilegiando mecanismos e instrumentos alternativos que promovam a efetiva responsabilização e a mudança de comportamento hostil.
– Promover medidas de conscientização, prevenção e combate a todos os tipos de violência, com ênfase nas práticas recorrentes de intimidação sistemática (bullying), ou constrangimento físico e psicológico, cometidas por alunos, professores e outros profissionais integrantes de escola e de comunidade escolar.
Como vai funcionar
– O programa poderá fundamentar as ações do Ministério da Educação e das secretarias estaduais e municipais de educação.
– É dever do estabelecimento de ensino, dos clubes e das agremiações recreativas assegurar medidas de conscientização, prevenção, diagnose e combate à violência e à intimidação sistemática.
– Serão produzidos e publicados relatórios bimestrais das ocorrências de bullying nos Estados e municípios para planejamento das ações.