Levante contra o Império
Moacyr Flores: “Não foi o Rio Grande que se levantou contra o Império”
Moacyr e sua máquina de escrever | Foto: Cleber Dioni Tentardini
Cleber Dioni Tentardini
Moacyr Flores ainda conserva a máquina de escrever em que compôs “O modelo político dos Farrapos” seu primeiro livro sobre a Revolução Farroupilha, resultado de sua dissertação de mestrado em História. No quase meio século transcorrido desde então, ele trocou a velha Lettera 22 por um computador, mas não se afastou do tema e é hoje uma fonte inevitável quando se quer abordar a questão farroupilha, que ainda levanta muitas perguntas sem resposta. Ele recebeu o JÁ em sua casa no dia 22 de julho para uma entrevista exclusiva para esta edição.
JÁ – Quais eram as motivações, o pensamento político que animava a Revolução Farroupilha?
Moacyr Flores – Eu pesquiso desde a década de 60, mas minha dissertação de mestrado, em 1978 foi que deu origem a um livro. Ali eu estudei o liberalismo. O que os farroupilhas discutiam antes da revolução, fanaticamente, violentamente, era o liberalismo. Uma ideia de liberdade, mas em um sistema excludente. Porque só tinha liberdade, direitos, quem era proprietário, quem não tinha propriedade era um cidadão de segunda classe, não podia votar nem ser votado. No fim do Império, havia 84% de analfabetos em todo o Brasil. Os letrados é que decidiam. Os jornais eram políticos e dirigidos aos 16% de letrados.
Por isso, dizer que o Rio Grande do Sul se levantou contra o império é uma falácia. Quem se levantou foi um grupo de intelectuais e militares, que fizeram a revolução. Havia estancieiros, charqueadores. O Bento Gonçalves era um militar, coronel e comandante de uma divisão da Guarda Nacional em Jaguarão. Domingos José de Almeida era major da Guarda Nacional.
O que lhe chamou atenção para pesquisar sobre esse tema?
Eu fui aluno do professor Dante de Laytano e entrei na PUC como auxiliar dele. A sua contribuição com a história do Rio Grande do Sul é fantástica, e o pessoal não tem valorizado. Eu aprendi muito com ele, fora da sala de aula também. Eu tinha pensado em fazer a dissertação sobre a política da Carlota Joaquina, mas fui ver o arquivo dela que está em Petrópolis e me apavorei de tantos documentos. E teria que viajar para Inglaterra, eu como professor não teria como. Aí pensei na Revolução Farroupilha, todos os intelectuais haviam escrito alguma coisa, mas fui ver a documentação e me encantei. E ninguém havia feito uma abordagem sobre a estrutura política da República Rio-grandense. Falavam das batalhas, dos personagens. Bom, então eu tive que estudar o que era o liberalismo da época, que não tem nada a ver com o de hoje. Porque não existiam partidos mas grupos políticos que estavam em torno de um militar. Li os seis volumes da coleção Varela, passei por todos os documentos, li os jornais da época. Minhas férias eram dentro dos arquivos. Fomos a Biblioteca de Rio Grande, que eu considero a melhor sobre livros antigos, a Biblioteca de Pelotas, vi a documentação de Assis Brasil e fui a Piratini, evidentemente, onde fiquei hospedado num quarto que havia no próprio museu histórico. E não dormi porque fiquei lendo a documentação. Minha dissertação ficou com 220 páginas, escrita numa máquina de escrever que ainda guardo. “Ideias políticas da Revolução Farroupilha”. Depois, lancei o livro com novo título: “Modelo Político dos Farrapos”. Dos 22 livros que lancei, sete foram sobre os Farrapos, e esse eu considero o melhor por ter feito uma abordagem inédita. Eu queria descobrir qual era o pensamento político na época. Era um verdadeiro caos porque as ideias eram importadas da Europa e mal interpretadas. Como era um grupo pequeno de intelectuais que escreviam nesses jornais, eles manipulavam as ideias e se apresentavam ao povo como verdadeiros salvadores.
Quem era o povo, nessa época? Os escravos?
Em 1835, por aí, havia 170 mil habitantes em toda a província do Rio Grande do Sul. Em Porto Alegre, todo o território do município que ia de Viamão a Triunfo, havia 14 mil moradores. A cidade de Porto Alegre, tinha cerca de dois mil habitantes. Era um núcleo pequeno. A maioria das pessoas se conhecia. A Santa Casa ficava fora da cidade. Por isso conseguiram fazer uma revolução a cavalo. Porque o Rio Grande do Sul era um ermo. A Província era despovoada. O maior núcleo era Rio Pardo, que tinha uns três mil moradores, a cidade era maior que Porto Alegre. É que Rio Pardo abrangia quase a metade da província. Dali saíram Bagé, Alegrete, Rosário…
A economia estava nas chácaras, que produziam mais do que as grandes fazendas de criação e alimentavam os habitantes. As chácaras vendiam leite, frutas verduras, ovos, porcos, galinhas. Era a fonte de água também. As fazendas de criação mandavam gado para as charqueadas do Uruguai porque não pagavam imposto. Se enviassem para Pelotas, por exemplo, tinha que pagar. Outra questão é que os fazendeiros não gastavam o dinheiro aqui, compravam móveis em Montevidéu, as mulheres compravam vestidos na França.
E o trabalho de doutorado seguiu nessa linha.
Aí eu fui pesquisar o modelo social e o modelo econômico dos Farrapos. Abordei a organização da sociedade, a família, as instituições, o papel da Igreja, fundamental, apesar de ser pouca, aqui não havia seminários, local onde o pobre se alfabetizava. O seminário era proibido aqui porque os jovens tinham que ir para o Exército a fim de defender as fronteiras.
A maior parte dos escravos trabalhavam nas charqueadas?
Os escravos representam 40% dos habitantes da província. Eram comprados ainda meninos por comerciantes no Rio de Janeiro e revendidos aqui. Com 14 anos esses escravos já realizavam todas as tarefas de um adulto podendo inclusive ser convocados para a guerra. E a menina, dos 12 aos 15 aos, era a idade do casamento. Fiz esse estudo social com a população de Caçapava como mostra da Campanha, porque foi lá que os Farrapos sustentaram a guerra. Então levantei a constituição da família, do estancieiro, a sua relação com os escravos, com os peões. Havia capataz que tinha família e seus escravos. Havia peões índios, que não podiam ser escravizados por lei.
Quais são os livros básicos sobre os Farrapos?
O Assis Brasil foi o primeiro gaúcho a escrever – A República Rio-Grandense -, e ele me deu uma pista quando disse que a revolução não foi um movimento democrático, mas liberal. Só que ele não explicou o que era o liberalismo da época. Esse livro parou no primeiro volume. Eu considerei quatro livros fundamentais: do Assis Brasil, do Alfredo Varela, embora não concorde com a tese dele, do Araripe, que traz a visão do Império, e do Aurélio Porto. O Araripe sustentou que nunca houve tratado de paz, mas pedido de anistia, e eu encontrei no Arquivo Histórico esse pedido de anistia, que já vinha pronto, faltando só o oficial colocar o seu nome.
Não houve um documento assinado pelos pelas duas partes?
Não, porque o Império nunca reconheceu como nação. O Paraguai mandou embora o embaixador da República Rio-Grandense para não ter que prendê-lo a pedido do Império brasileiro. Foram feitos seis tratados, quatro com o Uruguai, um com a Província de Corrientes, que era separada da Argentina, e outra com Buenos Aires. A Rio-Grandense foi a primeira república organizada no Brasil, que funcionou, com ministérios, secretarias, com serviços de polícia, correios – em Pernambuco houve um movimento republicano que não chegou a instalar uma república. Isso é um fator importante porque a Rio-grandense facilitou depois o golpe de 15 de novembro de 1889. Não houve reação do Rio Grande do Sul porque existia aqui um ideal republicano, que já havia pelo mundo. E, ao contrário do que se pensa, não houve influência da Revolução Francesa. A Constituição da República Rio-Grandense é baseada na Constituição dos Estados Unidos. E da Constituição espanhola.
Havia um clima de insatisfação geral…
Desde de 1828. O jornal O Recopilador Liberal já fala que se trama uma revolução republicana. O grupo Farroupilha foi fundado em 1832. Mas já tinha um movimento entre intelectuais que defendia uma república independente. A ideia do quadrilátero de José Artigas, que envolvia o Uruguai, Rio Grande do Sul, Entre Rios e Corrientes. E isso voltou em 35.
O Bento Gonçalves estava nesse grupo republicano?
Acontece que a família do Bento Gonçalves detinha postos chaves na província, o pai dele era tesoureiro geral do Rio Grande do Sul, os irmãos eram comandantes da Guarda Nacional, todos estancieiros. Então a família dele dominava desde Torres até a região de Melo, no Uruguai. Os parentes, tios, primos, todos ocupando posições. Aí os liberais caem do poder lá no Governo Federal, e o Fernandes Braga assume aqui, por indicação do próprio Bento, mas passa para o lado dos conservadores, convencido pelo irmão, Pedro Chaves. Com a morte do pai do Bento, a família perde o poder. Bento Gonçalves é enviado para o comando da fronteira de Jaguarão, longe do poder de Porto Alegre.
Bento tinha muita ligação com os uruguaios, morou lá, casou…
Sim, inclusive foi alcaide em Melo. O sogro dele foi o maior contrabandista de gado do Uruguai. Bento era de família riquíssima, poderosa, mas que em dado momento, o novo presidente Fernandes Braga que era liberal republicano muda de partido e passa para os conservadores. Bento e seus parentes e amigos perdem o poder.
Quando tomam o poder, os revolucionários pensam separar o Rio Grande?
Não, aí o 20 de setembro é um saco de gatos. Havia os descontentes com uma gama imensa de coisas e o Bento Gonçalves declarava fidelidade ao Império para unir todos esses descontentes. Havia os que queriam a separação, outros a República, mas outros queriam somente a troca dos postos de comando da Província. A comunicação com o Rio de Janeiro era muito difícil. Era mais fácil com Montevidéu. E havia uma centralização muito forte do poder no Rio de Janeiro, como hoje há em Brasília. Um país supercentralizado. E muita gente queria uma federalização, à semelhança dos Estados Unidos. Leis regionais. Tinha jornal que dizia que a lei que vale em Pernambuco não poderia valer no Rio Grande.
O que levou Neto a proclamar a República Rio-Grandense?
Porque ele era um republicano, com ideais. Mas nunca foi abolicionista. Ele tinha fazenda no Uruguai, no Quequay. O pai do Carlos Gardel foi lugar-tenente do Neto. Então ele traz vários uruguaios em sua tropa para lutar nos Farrapos. Inclusive ele tinha filhos escravos, das mulheres negras. Ele nunca foi abolicionista. Há uma carta de um filho dele, Moisés, pedindo a liberdade porque lutou e o seu pai, Neto, iria manter ele escravo. Essa era a base de poder deles. Possuíam exércitos particulares. E, por isso, a dificuldade de vencer os Farrapos, porque eles possuíam comandantes separados, cada um com seu exército, e Bento como um comandante geral.
O Bento não foi pego de surpresa com a proclamação do Neto?
Não, Bento sabia. Só que ele estava aqui naquele morro da Cruz, em Viamão, próximo a Porto Alegre nas mãos imperiais. E o Neto estava na região da Campanha, onde os farrapos tinham mais força. Então Neto fez a proclamação para manter viva a ideia da revolução, que era uma república. O problema é que havia a turma que queria a federalização, mas com o Império, e estava se retirando do combate porque estavam satisfeitos com a demissão do Braga e posse do novo presidente Araújo Ribeiro, primo do Bento Gonçalves. Então aquela proclamação da república era para levantar uma nova bandeira. E trazer para perto dele, Neto, maior apoio, porque o pessoal de Piratini e Canguçu não queriam o Neto. Estavam caindo fora da revolução. E o Lucas de Oliveira alertou o Neto de que a república iria mobilizar as forças novamente.
Quem era o grande general?
O grande estrategista foi o Bento Manoel Ribeiro. O Bento Gonçalves era comandante de guerrilha, como o Moringue, que montou um exército ali na região em que Bento tinha a estância, em Camaquã.
A Constituição da República Riograndense ficou no projeto…
Demorou bastante, e mesmo assim ficou só no projeto.
Quem elaborou?
Os que haviam sido eleitos deputados. Foi assinado em 3 de fevereiro de 1843 por Domingos José de Almeida, José Pinheiro de Ulhoa Cintra, Francisco de Sá Brito, José Mariano de Matos, Serafim dos Anjos França. O projeto foi impresso para ser discutido, mas não chegou, e nem votado.
Não deu tempo?
É que o Bento Gonçalves não quis perder seus poderes. Aí ele se desentende com seu primo Onofre, que lidera a oposição ao Bento. Nessa época foi morto Paulino da Fontoura. Ele voltava para sua casa, na rua da Igreja, em Alegrete, e foi atacado a espada e tiro. Seus escravos anda tentaram o salvar. Dizem que foi a mando do Bento, se não foi, sua morte favoreceria muito o Bento.
Isso, um pouco antes dos primos duelarem?
Sim, mas eles não brigaram por causa de mulher coisíssima nenhuma. Foi porque Bento não queria perder seus poderes discricionários. Ele, inclusive, manda que o projeto da Constituição seja submetido a ele antes que fosse levado à votação na Assembleia, em Alegrete, em 1843. A questão é que o projeto da Constituição reproduzia a ideia da república federativa, o modelo de Constituição dos Estados Unidos, e a ideia do liberalismo, com um Legislativo forte. É o sistema parlamentar. Isso vem do pensador inglês John Locke.
Bento era muito autoritário?
Sim, um ditador. E sua família uma das mais poderosas da província. Seu irmão, Roberto, era o padre lá naquela região de São Lourenço. Ninguém escreveu uma biografia do Bento, apenas glorificaram ele.
Ele ficou órfão de mãe muito cedo.
Isso era um problema na época. As mulheres morriam de parto. Havia o costume de não poderem se lavar durante 30 dias após o parto, inclusive o recém-nascido. Daí o tal mal de sete dias, que é a infecção umbilical. Costume medieval.
Havia pontos polêmicos no projeto da Constituição dos Farrapos?
Todos. Começa que o Artigo 1º – “República do Rio Grande é associação política de todos os cidadãos rio-grandenses.” O problema é que os cidadãos eram os proprietários, a minoria, portanto.
Era abolicionista, pelo menos?
Não, a República Rio-Grandense era escravocrata. E, em nenhum momento do texto do projeto é mencionada a questão dos negros ou escravos. A base se espelha com a constituição do Império, com as modificações republicanas, claro. Por exemplo, o Artigo 6º – “São cidadãos Rio-Grandenses todos os homens livres nascidos no território da República…”. Se consta a expressão homens livres é porque existem nessa república homens que não são livres.
E as mulheres nessa nova República?
Não tinham direito algum. Eu não invento nada. Minhas fontes são os jornais da época. Inovaram no sentido de fazer uma federação. Como eles não conseguiram fazer a federação no Império, tentaram a separação. Antes, como hoje, as decisões do governo eram muito centralizadas. Não se faz nada se não tiver o beneplácito lá do centro. Hoje, lá de Brasília. O que está errado se levar em conta o tamanho do Brasil. Nós não somos uma federação, embora carregue o nome de república federativa.
Bom, depois do tratado de paz, os chefes revolucionários ainda conseguiram assumir seus postos de oficiais.‘
Não houve um tratado de paz, mas um acordo, com pedidos de anistia que deveriam ser assinados pelos líderes Farrapos. Em dezembro de 1844, o Caxias recebeu ordens do ministro da Guerra para conceder as anistias, que já veio impressa. Era a única forma de acabar com a guerra e Caxias percebeu isso logo depois da traição em Porongos.
David Canabarro traiu os negros, afinal de contas?
Caxias tinha ordens de não dar liberdade aos escravos que estavam lutando. Então, ele combinou com o Canabarro, comandante do Exército da República Rio-grandense, e o único general ali no acampamento porque o Bento já havia se recolhido para sua estância, e o Neto, que estava no acampamento, se retirou com seu exército para o Uruguai, antes do ataque.
Uma combinação para por fim à guerra.
Na realidade, o acordo para por fim a guerra foi em 1843, pouco antes do combate do Ponche Verde, onde os Farrapos deveriam ser derrotados e, então, seria concedida a anistia aos oficiais. Mas a combinação não deu certo, porque os Farrapos estavam em bom número e melhor posicionados, então sustentaram a luta. À noite, ambas as forças se retiraram da batalha. Em Porongos, Canabarro mandou retirar à noite as pedras de pederneiras dos fuzis da infantaria, formada por negros. Mais de cem foram mortos. Não foram lanceiros os mortos ali. Os lanceiros negros foram traídos também, mas quando foram entregues aos imperiais depois da guerra, lá na fazenda dos Cunhas, onde os farrapos entregam todo o armamento.
E a carta não foi falsificada por Moringue?
O Francisco de Abreu atacou apenas um dos três acampamentos, deixando o dos brancos e dos índios fugirem, pois conforme ordens de Caxias, eles poderiam ser úteis mais tarde. Canabarro fugiu, deixando para trás sua carretilha com todo o arquivo, mas que foi devolvido a ele.
Por que isso foi uma condicionante para a paz?
Esse acordo imposto pelo Império e por Caxias não agradou Bento nem Neto, que saíram. Canabarro ficou com 800 homens, contra 12 mil do Império. O que lhe restava?
E a carta que é atribuída a Moringue, professor?
É do Caxias mesmo. A correspondência era manuscrita. O Caxias pode ter feito um rascunho, chamado borrador, e seu secretário, que era um sobrinho, passou a limpo. Fizeram uma cópia para deixar no arquivo do Caxias, escrito no alto da folha a palavra cópia, e enviaram a original para o Moringue. Eu esmiucei isso aí. Essa cópia foi escrita em livro, não foram folhas avulsas. E há uma sequência, uma ordem no livro, não tem como embutir no meio das outras. O Caldeira, que era comandante dos lanceiros negros, sustentou que houve a traição do Canabarro. O Domingos José de Almeida confirma que esteve com o Moringue e este lhe mostrou a carta original do Caxias.
Com a paz e a anistia, veio o silêncio sobre os Farrapos.
Imposto pelo Império.
Os jornais foram calados. Nem a morte do Bento Gonçalves foi registrada, só uma notinha em um jornal de Pelotas.
A nota e um pequeno poema, publicado em um ou dois exemplares adiante. Só bem mais tarde, o Apolinário Porto Alegre é quem vai resgatar os Farrapos. Ele iniciou um movimento de libertação de escravos e um movimento republicano. Ele e o irmão, Aquiles, fundaram o primeiro clube republicano do Rio Grande do Sul, com o nome de Bento Gonçalves. E, mais tarde, é que o Júlio de Castilhos, acho que o pior ditador que já tivemos, vai dominar o Partido Republicano Rio-grandense e afastar o Apolinário do movimento.
Assim renasceram os Farrapos.
Visando o movimento republicano. E isso veio de encontro ao ideal de August Comte que defendia pequenas repúblicas, reunidas em uma federação. Só que, no final do século, o Partido Liberal, que depois se transforma no Partido Federalista, reivindicou a herança dos Farrapos, por ter sido um movimento revolucionário que queria a federação. Esses dois partidos se enfrentam em 93.
A Revolução Federalista.
Nesse momento, Castilhos acha que o Rio Grande do Sul é um país à parte. Os republicanos que vão lutar contra os estrangeiros, os maragatos, que eram gaúchos também. E vem daí essa coisa do gaúcho se dizer um povo diferente, essa dicotomia entre o bem e o mal que até hoje só trouxe prejuízo à população. Porque se tu não é do meu time ou do meu partido, não é necessariamente meu inimigo.
E a fusão da cultura gaúcha com a saga farroupilha?
Aí é João Cezimbra Jaques. A Revolução se tornou símbolo do Rio Grande do Sul. E como símbolo, ela foi mitificada. O tradicionalismo. Daí a dificuldade até hoje de se tratar de algumas questões. Mudaram até o sentido da palavra gaúcho. Porque, antes, eram os rio-grandenses. Gaúcho era um bandido. Os jornais que defendiam o Império dos farroupilhas usavam gaúcho para ofender alguém. O significado da palavra gaúcho, na sua origem, é de um marginalizado, cachorro sem dono, como disse um colunista da época. Para mim, vem do francês gauche, a margem esquerda do rio Sena, onde moravam os artistas, os marginais. Do italiano sinistra, do latim, sinistru, esquerdo, assustador, desajeitado. Foi adaptado para o espanhol, então ficou gaucho, e aportuguesado para gaúcho, com o novo sentido, de um povo independente, corajoso, que já se separou do Brasil. E a nossa constituição estadual de 1891 determina que a bandeira do Rio Grande do Sul seja a usada pela República Rio-grandense.
Sim, aí entra também o hino.
Não, o atual hino não tem nada a ver com o que o maestro Mendanha compôs a mando dos Farrapos e tocado em Caçapava, nova capital, no baile de aniversário de um ano da vitória na batalha de Rio Pardo. Nem a letra, nem a música. A edição de O Povo, de 4 de maio de 1839, traz a letra. A música provavelmente o Mendanha rasgou a partitura porque ele era imperial. Quando foi libertado, vem para Porto Alegre, para o coral da Cúria Metropolitana. E é ele quem inaugura o teatro São Pedro com música.
E a influência da Maçonaria na República Rio-grandense?
Conversa. Todos oficiais do lado dos republicanos e dos imperiais eram maçons.
Mas há símbolos maçônicos no Brasão.
Isso sim. É do Bernardo Pires, estancieiro e chefe de Polícia de Piratini e maçon.
Mas há uma ata, do gabinete de leitura Continentino, assinado pelos revolucionários no dia 19 de setembro de 1835…
É falsa. Foi feita bem depois. Certa vez o coronel Caminha, do Exército, me enviou uma cópia dessa ata. Há cinco palavras ali que não eram empregadas na época. Por exemplo, o sistema imperialista. Essa expressão não era usada. Outra vez fui fazer uma palestra e um maçon me confessou que um companheiro dele da loja foi quem escreveu aquela ata.
Com tudo isso, ainda há pesquisas a serem feitas sobre a Revolução Farroupilha?
Sim, toda documentação que está lá no Arquivo Nacional. Eu abri alguns documentos e descobri, por exemplo, que o Araújo Ribeiro, presidente da Província a partir de 36, era primo do Bento Gonçalves. O Corte Real foi morto por um primo. As pessoas se conheciam e quem não era parente era compadre.
Há um quadro de autor desconhecido no Museu Julio de Castilhos que seria o mais fiel retrato do Bento. Há outros que são do Guilherme Litram.
O Litram é do tempo do Borges de Medeiros, então não conheceu o Bento. O mais fiel é um retrato falado, uma descrição do rosto do Bento feita pelo seu filho, após a morte do pai.
Nesta série sobre a República Riograndense, estamos reunindo textos de outras publicações nossas sobre o tema. Os textos foram devidamente revisados e atualizados e enriquecidos com três entrevistas que apontam um novo rumo da historiografia, num caminho de enriquecer o discurso histórico com uma perspectiva menos idealizada, mais concernente com as necessidades do presente. As fontes serão referidas no final.
Confira a série completa clicando aqui.