Saques dos Depositos Judiciais
Como o governo do Estado se socorre com saques dos depósitos judiciais
Desde 2004, o que era para ser mecanismo de emergência virou prática comum. A conta já chega a R$ 8,3 bilhões e não tem data para ser quitada
Foto: Zero Hora
Eles ganharam fama desde que a crise nas finanças estaduais se agravou. Primeiro, em situações de emergência. Depois, sistematicamente. Ano após ano, os depósitos judiciais passaram a ser usados para financiar o rombo nas contas públicas do Rio Grande do Sul.
Agora, assumem a forma de um “mal necessário”: um remédio tomado em doses excessivas, com efeitos colaterais sérios, do qual o Estado se tornou dependente. Sem alternativas diante de uma contabilidade combalida, o governo José Ivo Sartori cogita ampliar o uso do artifício, mesmo que, para isso, acabe se endividando ainda mais. Se fosse um paciente enfermo, estaria próximo da intoxicação.
A polêmica em torno dos depósitos não para por aí. Os recursos em questão não pertencem ao Tesouro estadual. São valores de terceiros, sob a guarda do Poder Judiciário. Em sua maioria, originam-se de pessoas e empresas que entram com ações na Justiça e esperam as sentenças. Sempre que se apropria dessas verbas, o governo toma emprestado dinheiro dos outros para tapar buracos no cofre.
“O Estado está intoxicado pelos depósitos judiciais”, diz secretário da Fazenda, Giovani Feltes
O mecanismo começou a funcionar em 2004. Por 29 votos a 12, com aval do Tribunal de Justiça (TJ) e oposição da bancada do PT, foi aprovado na Assembleia Legislativa. Funcionou como uma boia salva-vidas, até hoje flutuando em mar revolto.
– Vivíamos uma situação dificílima. Não havia outra opção, tanto que não tivemos grande dificuldade para aprovar o projeto – recorda o ex-governador Germano Rigotto (PMDB).Ação no supremo contesta lei do RSInicialmente, o Piratini foi autorizado a sacar até 70% do valor disponível. Em 2006, o teto foi ampliado para 85%. Os saques só tiveram trégua nos últimos anos do governo Yeda Crusius (PSDB) e nos dois primeiros de Tarso Genro (PT). A partir de 2013, a administração petista abandonou as resistências partidárias do passado e deu início a uma série de retiradas, que somaram 2,7 vezes mais do que os dois mandatos anteriores juntos.
O volume levou a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) a questionar a validade da legislação no Supremo Tribunal Federal (STF). A entidade reclama de não ter sido ouvida em 2013 e entende que a apropriação viola o direito de propriedade e põe em risco o cumprimento das sentenças – outro motivo de controvérsia.
– Estamos convictos de que teremos êxito. A ação recebeu parecer favorável da Advocacia-Geral da União e do Ministério Público Federal e deve ser julgada a qualquer momento – diz o presidente da OAB no Estado, Marcelo Bertoluci.
Enquanto isso, os saques continuam. Dos R$ 9,8 bilhões depositados em juízo, R$ 8,3 bilhões foram sugados pelo Estado nos últimos 11 anos e não devolvidos, incluindo R$ 640 milhões na era José Ivo Sartori (PMDB).
Sobre os empréstimos, o Tesouro já desembolsou R$ 2,9 bilhões em juros, e o custo vai aumentar em pelo menos mais R$ 1 bilhão até o fim de 2015 – mais do que Sartori poderá resgatar da conta para não afundar de vez.
Sartori avalia aumentar limite do saque
O secretário da Fazenda, Giovani Feltes, reconhece que seguir dilapidando os depósitos judiciais só vai aumentar as dívidas do Estado, mas argumenta não ter alternativa. Por conta disso, está em discussão a possibilidade de ampliar para 90% das reservas o limite de uso pelo Estado. A medida teria de passar novamente pela Assembleia.
O desembargador Túlio Martins, presidente do conselho de comunicação social do TJ, sustenta que, do ponto de vista de quem aguarda decisões nos tribunais, não haveria com o que se preocupar. Das 291,1 mil ações com depósitos judiciais, 71,29% envolvem valores de até R$ 500 mil. Como há saldo de R$ 1,5 bilhão na conta, seria possível honrar os compromissos.
– Para ampliar o limite dos saques seria importante fazer um novo estudo com os dados dos últimos 12 meses apenas para nos certificarmos de que não ficaria muito estreita a margem de garantia. Hoje, não vejo problemas – pondera Martins.
O presidente da OAB, Marcelo Bertoluci, não só discorda como levanta uma outra questão: o potencial de danos às finanças estaduais.
– É uma medida de aparente solução, mas é ilusória – resume ele.
Especialistas em finanças públicas como Darcy Carvalho dos Santos concordam com a visão da Ordem.
– O dinheiro fácil vem saindo caro. Se fosse usado em investimentos, ainda poderia ser positivo, só que acaba custeando a máquina. Vai tudo pelo ralo e só aprofunda a crise – avalia.
Professor de Administração Pública da Universidade de Brasília (UnB), o economista José Matias-Pereira classifica o expediente como “mero paliativo”.
– Usar esse dinheiro é o pior que pode acontecer, e a partir do momento em que o uso se torna excessivo, vira uma roleta russa. Quanto maior o teto, mais balas – diz o professor.
O governador Sartori tem diante de si uma escolha de Sofia. O dilema, por enquanto, está longe da solução.
Um pouco da história
- Até 2001, o dinheiro dos depósitos judiciais ficava retido em contas esparsas, em diferentes bancos.
- A correção do saldo era feita pela poupança, mas os valores retidos eram aplicados pelos bancos, que lucravam com a operação.
- A partir de 2001, com a aprovação da Lei estadual nº 11.667, no governo Olívio Dutra (PT), foi instituído o
Sistema de Gerenciamento Financeiro dos Depósitos Judiciais do RS.
- O Judiciário tornou-se responsável pelo sistema, que passou a ser gerido pelo Banrisul.
- Com isso, a diferença dos rendimentos (poupança e Selic), que antes ficava com os bancos, passou a alimentar o Fundo de Reaparelhamento do
Poder Judiciário.
COMO FUNCIONA O SISTEMA
1) O sistema funciona como uma caixa d'água, alimentada por uma tubulação e ligada a duas torneiras.
2) Pela tubulação, entram os depósitos que, todos os dias, se acumulam no reservatório.
3) Sempre que precisa, o governo pode abrir um dos registros e usar até 85% do estoque, desde que pague juros sobre os saques (12,75% ao ano, equivalente a R$ 80 milhões mensais).
4) Os 15% restantes não podem ser retirados, para garantir que os valores das ações sigam escoando pela outra torneira (para pagar as sentenças).
Quanto o Judiciário ganha com o sistema
- Todo o mês, o Fundo de Reaparelhamento do Judiciário recebe a diferença entre os juros pagos pelo Estado e a correção dos depósitos pela poupança.
- Isso equivale a mais de R$ 40 milhões mensais. Desde 2004, o valor chegou a R$ 1,5 bilhão.
- O dinheiro vem sendo usado para melhorar a estrutura do Judiciário, com novos prédios e equipamentos e para pagar advogados dativos (desginados para defender réus onde não há defensores públicos).
- O mecanismo é questionado pelo Supremo Tribunal Federal.
Secretário de Tarso defende mecanismo
O governo Tarso Genro (PT) foi o campeão em saques nas contas dos depósitos judiciais. Entre 2013 e 2014, resgatou R$ 5,6 bilhões, cifra que até hoje não foi devolvida. Secretário da Fazenda na gestão petista, o economista Odir Tonollier não só defende o uso do recurso como rebate as críticas de adversários políticos e de entidades como a OAB.
Segundo Tonollier, o Estado não teria conseguido destinar mais de 12% da receita à saúde sem os depósitos. Ele ressalta que, até então, o percentual mínimo exigido pela Constituição para a área nunca havia sido atingido no Rio Grande do Sul:
– Os depósitos judiciais cumprem um papel importante desde o governo Rigotto. No nosso caso, por que deixaríamos o dinheiro parado se o Estado sequer cumpria as exigências em relação à saúde? Não faz sentido.
Tonollier diz que os depósitos também ajudaram a aumentar os pagamentos de precatórios e requisições de pequeno valor (RPVs) em R$ 3,2 bilhões. Ele discorda de que a decisão de usá-los até o limite permitido por lei tenha contribuído para deteriorar as finanças estaduais, deixando os sucessores sem alternativas.
– A afirmação de que todas as fontes (de receita) se esgotaram não pode ser aceita. Se tivéssemos sido eleitos, encontraríamos saídas – afirma.
Quanto ao peso do juro, o economista sustenta que a maior parte é revertida ao Poder Judiciário para investimentos que, em última instância, beneficiam ao cidadão. Além disso, Tonollier argumenta que, se não houvesse esse repasse, o Tesouro acabaria arcando com os custos da Justiça do mesmo jeito.
– Os depósitos foram um achado. É dinheiro barato para o Estado – conclui.
Rigotto pagou os servidores
Assim que a medida foi aprovada, o governador Germano Rigotto (PMDB) fez saques para honrar a folha de pagamento dos servidores. O drama persistiu durante todo o mandato.
– Chegamos à conclusão de que recorrer aos depósitos seria uma alternativa segura e econômica para o Estado. Usamos esse recurso com responsabilidade – afirma Alberto Oliveira, chefe da Casa Civil à época.
Rigotto não gosta de lembrar do período e se sente injustiçado. Diz que fez o possível para cortar despesas, que enfrentou as duas piores secas da história e que foi um dos primeiros a buscar a renegociação da dívida com a União.
– Não posso ser responsabilizado pelo endividamento do Estado – afirma o ex-governador.
Yeda evitou retiradas
A ex-governadora Yeda Crusius (PSDB) foi a que menos utilizou os depósitos. Os saques ocorreram no início do governo.
– Nosso objetivo sempre foi chegar ao déficit zero, gastar apenas o que arrecadávamos. Em dois anos, atingimos a meta, mas, até lá, tivemos de usar o que havia disponível – diz ela.
Yeda deixou R$ 615 milhões em saques não devolvidos. Secretário do Planejamento à época, Mateus Bandeira lembra que havia a convicção de que o paliativo deveria deixar de ser utilizado por “mascarar o déficit”. A partir daí, os depósitos se acumularam.
– Foi por isso que esses recursos cresceram tanto, até serem sacados pelo governo seguinte – diz Aod Cunha, ex-secretário estadual da Fazenda.
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