Papel educacional dos pais
Papel educacional dos pais está em crise, dizem especialistas
Agressão a professora de Canoas por mãe de aluno é caso extremo de um fenômeno generalizado de famílias incapazes de estabelecer limites
Atualizada em 27/03/2015
Foto: Fraga / Arte ZH
Um aluno do 6º ano do Ensino Fundamental comparece à sala de aula com 30 minutos de atraso. Em observância às normas da escola, a professora orienta-o a ir até a direção para solicitar uma autorização de entrada. Minutos depois, a garoto reaparece, acompanhado pela mãe. A mulher mete o pé na porta, entra na sala, xinga a professora do filho, puxa-a pelos cabelos e a arrasta pátio afora. O aluno, horrorizado, suplica que a mãe cesse as agressões.
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Esse episódio grotesco ocorreu no dia 4 deste mês, na Escola Municipal Irmão Pedro, em Canoas. Trata-se de um caso absurdo e despropositado, mas não completamente desvinculado de um fenômeno que tem preocupado os especialistas. A agressão no colégio da Região Metropolitana parece ser uma manifestação radical e extrema de uma crise no papel educacional desempenhado por pais e mães.
No dia a dia, esse fenômeno se manifesta em uma série de eventos prosaicos, como no caso do pai que quer ser o melhor amigo do filho, do casal que leva a criança de três anos para escolher a escolinha que quer frequentar, da vizinha que fala que o filho de quatro anos tem uma personalidade tão forte que "não tem mais jeito" de educá-lo, da mãe que chega exausta depois de um dia de trabalho e decide não insistir com a filha para que ela coma algo saudável, porque afinal tem pouco tempo para "curtir". Em comum, essas situações mostram pais desnorteados em relação ao seu papel, oscilando entre a omissão (que pode sobrecarregar a escola) ou a superproteção (potencial geradora de conflitos com professores).
— Claro que a gente não conhece a situação específica dessa mãe de Canoas, mas podemos falar genericamente, de um fenômeno de grupo. Os pais estão completamente perdidos. Eles têm muita dificuldade de tolerar a frustração. Então como é que vão colocar limites adequadamente? Uma coisa que se verifica nos últimos tempos é que não são mais as crianças que têm o adulto como modelo, mas o contrário. Nesse episódio, não é a mãe quem tem noção de realidade, mas o filho, que pede para ela parar a agressão — analisa Tania Marques, professora de psicologia da educação da Faculdade de Educação daUFRGS.
Psicóloga fala em "ditadura da criança"
Incapazes de estabelecer limites e ansiosos por evitar qualquer conflito com os filhos, mas prontos a comprar brigas por eles, os pais enfrentam uma crise de autoridade. Vivem também uma inversão de papéis no interior da família, quadro tão alastrado que há quem entenda que estamos vivendo uma "ditadura da criança", como define a psicóloga Aidê Knijnik Wainberg.
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Essas mudanças tornam mais complexos os processos educativos tanto em casa quanto na escola, levantando a pergunta: afinal, quem educa quem? Aidê lembra que, depois de gerações crescendo com o discurso de "liberdade total" na educação, agora a escola de psiquiatria francesa volta a recomendar mais repressão e hierarquia.
— Antes havia uma geração em que nada era permitido, depois veio outra em que tudo é permitido. E agora volta a ideia da repressão. Então os pais ficam atrapalhados. Até os especialistas ficam perdidos. O que vale mesmo? — questiona.
Para em seguida completar:
— O que vale é o bom-senso.
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O difícil é encontrar bom-senso entre adultos cada vez mais atordoados com sentimentos como culpa, ansiedade e insegurança. Com pouco tempo para ficar com os filhos, frequentemente os pais jogam para a escola a responsabilidade de educá-los, numa tentativa de terceirização. Uma missão fadada ao fracasso por vários motivos, especialmente porque o sistema de ensino tradicional também está em crise.
— Muitas vezes, a escola culpa a família, e a família culpa a escola. Isso é preconceito, não contribui. Escola e família precisam trabalhar juntas. Mas também existem muitos professores desmotivados, e se estão desestimulados, provavelmente sua autoridade vai estar comprometida. Quem só reproduz conteúdo, em geral vai enfrentar problema de autoridade, porque ensinar é quase como um traço autoral — alerta Luciana Fevorini, doutora em psicologia escolar e diretora do colégio Equipe de São Paulo.
Dilemas cotidianos, aprendizado diário
Fora da imagem idealizada da família de comercial de margarina, pais, mães e outros agregados enfrentam uma série de dilemas cotidianos, como aprender a dizer não, impor regras e limites. Uma missão nem sempre simpática. Mas necessária.
— Quem educa vai ter de fazer papel de fada e de bruxa ao mesmo tempo. Só que as pessoas têm receio em exercer o papel da bruxa. Às vezes é chato dar limites, isso vai frustrar o outro. Mas frustrar é necessário para educar. Impor limites é cuidar do outro — observa Tania Marques.
Filhos mimados, pais superprotetores
A dificuldade dos adultos em encontrar seu papel educacional tem gerado situações insólitas de dependência por parte dos filhos. No último fim de semana, o jornal Folha de S.Paulo retratou o aparecimento de uma geração de universitários mimados, desprovidos de autonomia. A reportagem falou de pais que acompanham os filhos em atividades acadêmicas, que procuram professores para reclamar de notas ruins e que controlam a agenda de estudos e provas do estudante. Uma faculdade chegou a convocar uma reunião para pedir aos pais superprotetores que relaxem e tenham confiança no trabalho da instituição.
Para a professora Tania Marques, essa superproteção é uma forma de omissão às avessas:
— O superprotetor não dá limites e faz tudo pelo filho. Nesse sentido, ele se omite da obrigação de educar. Para cuidar, para ser um bom pai e para ser um bom educador tem de dar afeto, mas também tem de dar limite. Quem dá só o afeto está se desviando da função.
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O problema retratado pela Folha de S.Paulo é visível principalmente em cursos privados, onde surge outra barreira ao exercício educativo, a concepção de que o aluno é um "cliente" e por isso não poderia ser contrariado. Se antes os docentes eram automaticamente vistos como autoridade, hoje eles têm essa autoridade enfraquecida pelo discurso de pais e alunos de "eu paguei, eu mando", repetindo o que a sociedade do consumo ensina. O caso de uma quadrilha que vendia gabaritos de provas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e de vestibulares desbaratada em Minas Gerais é sintomático: interessados em vagas de Medicina pagavam entre R$ 70 mil e R$ 200 mil pelos resultados.
— Isso não é dinheiro que um adolescente tem. De onde vinha o dinheiro? Dos pais. O que esses pais estão ensinando para seus filhos? — questiona Márcia Stengel, professora do Programa de Pós-graduação em Psicologia da PUC Minas.
Adultos passaram a se espelhar nos jovens
Se antes os adolescentes tentavam imitar os adultos, hoje ocorre o inverso. Em uma sociedade que cultua a juventude eterna, os adultos cada vez mais estão se espelhando nos jovens, em negação do envelhecimento. Uma das consequências diretas é a dificuldade à frustração por parte do adulto também, o que reproduz o ciclo da crise da autoridade.
— Os pais sempre dizem que os problemas dos filhos são as más companhias, mas nunca aparecem essas más companhias. É uma ferida narcísica para os pais, que têm dificuldade de enxergar que o filho "mal educado" é sua responsabilidade. Já tive casos de pais que trouxeram a criança ao consultório, e eu disse: a criança vai para casa, e vocês vão ficar aqui. Os pais é que precisam ser tratados, têm muita culpa e não sabem como lidar — adverte a psicóloga Aidê.
Por mais que as configurações familiares e educativas sigam em transformação, o doutor em família Marco Antonio Fetter garante que uma premissa não muda:
— O filho é o currículo dos pais.
* Zero Hora
http://zh.clicrbs.com.br/rs/vida-e-estilo/educacao/noticia/2015/03/papel-educacional-dos-pais-esta-em-crise-dizem-especialistas-4726961.html#cxrecs_s
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