Esquina dos contrastes
Vizinhas de rua em Porto Alegre, escolas particular e estadual têm realidades distantes
Colégio Israelita Brasileiro e Instituto Estadual Rio Branco sintetizam abismo entre ensino público e privado
Apenas uma rua de paralelepípedo separa o Colégio Israelita Brasileiro e o Instituto Estadual Rio Branco, mas é como se a esquina da São Vicente com a Avenida Protásio Alves, no bairro Santa Cecília, em Porto Alegre, sintetizasse o abismo que há entre as escolas privadas e públicas do Rio Grande do Sul.
Ambas oferecem da Educação Infantil ao Ensino Médio. O Israelita, 93 anos, ocupa a 379ª posição no último ranking nacional do Enem. O Rio Branco, 85, é o 6.762º colocado.
A particular tem quase a metade do número de alunos da pública (739 de um lado, 1.432 do outro), mas conta com praticamente o mesmo número de professores (115 a 130) – a proporção no Israelita é de 25 alunos por sala, e no Rio Branco, de 35, em média.
No lado do Israelita, protegido por um muro de aproximadamente quatro metros de altura, direção e equipe de docentes se dedicam a equações para se adaptarem às exigências do mundo dos melhores. Todos estão vibrantes com o projeto Israelita 3.0, inspirado em instituições do Canadá e da União Europeia, e que se sustenta sobre pilares que envolvem investimento em professores – todos com inglês fluente e formação sólida –, tecnologia da informação e problematização dos conteúdos. Neste ano, os alunos do 1º ano do Ensino Fundamental já estão sendo instruídos sob esses princípios.
– Há muito tempo, o Rio Grande do Sul perdeu os melhores lugares na educação. Então, não adianta ser uma das melhores de Porto Alegre. Precisamos nos alinhar às novas tendências no mundo. É outra lógica. Os alunos de hoje têm um novo jeito de pensar – diz a diretora Mônica Timm de Carvalho.
Rosane de Oliveira: RS tem 12,7 alunos por professor
Do outro lado da rua, atrás do muro grafitado pelos próprios alunos em atividades da oficina de arte urbana, a diretora do Rio Branco, Elsa dos Anjos Costa, ainda não encontrou tempo para discutir o projeto pedagógico que deve gerenciar as ações em 2015. Em frente a sua abarrotada mesa de trabalho, ela tenta atender a uma demanda frenética de problemas, mas celebra um começo de ano letivo mais tranquilo do que em outros tempos:
– Graças a Deus, não estamos com falta de professores. Alguns saíram, passaram em concursos, mas já temos substitutos.
Elsa não economiza elogios à vizinhança abonada. Já recorreu ao Israelita em momentos de apuros. Anos atrás, ganhou da escola particular as mesinhas e as cadeirinhas da Educação Infantil, e muitos estudantes da instituição judaica atravessaram a rua para fazer atividades voluntárias com as crianças do Rio Branco. Há o entendimento das realidades distintas, nunca a comparação. Com uma risada quase nervosa, a incansável diretora Elsa reconhece:
– Como é que vamos comparar? Não tem como.
Uma minicidade e um ginásio interditado
O Israelita tem uma infraestrutura que inclui salas com lousa eletrônica, área de esportes, laboratórios e refeitório acima do padrão. Os alunos também contam com uma minicidade, a Ir Ktaná, em que aprendem cidadania, política e economia na gestão do município fictício. Tem prefeitura, câmara de vereadores, loja, rádio comunitária, banco e uma incubadora de projetos, que instiga o empreendedorismo na gurizada.
– Eles fazem tudo, criam o projeto, buscam os recursos e têm de pensar numa contrapartida social. Lidam com percalços e frustrações. Esse é o aprendizado – diz a professora Sulima Pogrebinschi, gestora do Núcleo Educacional de Empreendedores da Ir Ktaná.
Percalços e frustrações têm dimensões diferentes no Rio Branco. Em vez de serem lições de aprendizado e crescimento, são limitadores do ensino. Desde 2008, o ginásio de esportes está interditado, por risco de desabar. No pátio e na área que deveria ser a mais graciosa da escola, a da Educação Infantil, há estruturas precárias, brinquedos tomados pelo cupim, quadras pouco amistosas e um exército de professoras comprometidas que faz o trabalho de pintores, marceneiros e decoradores.
– Não vou deixar tudo sujo. Os pais doaram a tinta e eu estou pintando. As cortinas, trouxe de casa, e outra professora doou um fogão para a nossa cozinha – enumera Liege Dal Molin, professora da Educação Infantil, enquanto se dedica às tintas para deixar o mobiliário da sala mais agradável ao olhar de seus alunos.
A realidade das famílias também bate à porta das instituições e reforça as diferenças. Se no Israelita a sociedade mantenedora é formada por pais de alunos ou ex-alunos que se empenham e participam do desenvolvimento da escola, no Rio Branco não raro as professoras assumem o papel que lhes é delegado à revelia pelos pais. Muitos alunos não têm o respaldo familiar, chegam ao convívio escolar com deficiências de valores e educação. Isso, garantem as professoras, impacta diretamente. O laboratório de informática, com máquinas novas e modernas, foi inaugurado em 2014. Já passou por três reformas porque os maus estudantes quebraram os equipamentos. Não há monitores para acompanhar as atividades. A direção não tem outra saída se não manter o laboratório fechado, para desconsolo dos alunos que querem utilizar o local. A escola conta com apenas 12 funcionários, que se dividem entre cozinha, secretaria, monitoria do pátio e limpeza. Lixeiras já foram usadas como vaso sanitário, e o banheiro exige atenção redobrada – para evitar que os grandes o depredem.
Os professores ressaltam que não é a condição financeira das famílias – a maioria da periferia – que determina essa falta de limites. Fosse assim, o Rio Branco não contaria com alguns pais participativos e presentes, como os que doaram tintas para a recuperação do mobiliário infantil. A professora Salete Maria Pigatto, do primeiro ano do Ensino Fundamental, pôs em prática um projeto com a ajuda da avó de uma aluna, que fez as sacolinhas de TNT em que os estudantes levam um livro para ler em casa, antes de debatê-lo em aula. Mas, via de regra, esse apoio familiar fica aquém, diz a supervisora Luciana Goulart:
– Muitos pais querem que a gente faça pelos filhos o que eles não fizeram.
Sem convívio na hora da saída
Na hora da saída, parece que há uma cortina invisível que separa os estudantes na Rua São Vicente.
– Não sei, mas sempre foi assim: eles ficam de um lado, nós do outro – diz o estudante Gabriel Kripka, 16 anos, do Israelita.
A turma do Rio Branco sai em algazarra, é expansiva, toma conta da calçada e lota o ponto de ônibus da Protásio Alves, identificado como parada Israelita. Os alunos do Israelita se detêm ao portão para aguardar a chegada dos pais, sob olhares de seguranças.
Quando os dois universos estudantis se cruzam, isso acontece ou por ações de voluntariado do Israelita na instituição pública, ou pelos casos isolados em que alunos do Rio Branco conseguiram bolsas de estudo na escola privada. Ou, mais raro ainda, quando um aluno sai do Israelita para estudar no Rio Branco.
Leonardo Macedo Tajes, 19 anos, era bolsista no Israelita e, após uma reprovação, perdeu o benefício e foi para o Rio Branco. Sofreu com a falta de professores e de infraestrutura e acompanhou a batalha de colegas pobres que tentam vaga na universidade. Alguns venceram e, como Leonardo, hoje são calouros de universidades públicas. O recém-aprovado estudante de Relações Públicas da UFRGS reconhece que sua formação curricular tem mais créditos da escola privada do que da pública, mas sair da proteção dos muros azuis implicou outro tipo de amadurecimento.
– Isso abriu a minha mente para a realidade. Eu conheci outro mundo.
http://zh.clicrbs.com.br/rs/vida-e-estilo/noticia/2015/03/vizinhas-de-rua-em-porto-alegre-escolas-particular-e-estadual-tem-realidades-distantes-4720756.html